inCOMPLETO escrita por Lorenzo


Capítulo 3
O embrulho




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Qua. 16.05.2012

A segunda-feira me surpreendeu, confesso. Achei que aquilo lá fosse ser como uma reunião dos alcoólicos anônimos ou como num grupo desses de pessoas com problemas emocionais. Não foi. Não tinha ninguém nos obrigando a falar nosso nome ou nossa história. Não houveram apresentações constrangedoras e nada disso. Simplesmente conversamos. Na maior parte do tempo eu fiquei conversando com o Juan. Ele é um cara legal e tudo mais, tem o cabelo mais doido que eu já vi e é entusiástico. A sua história é como a minha, ele perdeu o movimento das pernas num acidente mas diferente de mim ele manteve sua alegria e um senso de humor fantástico. A irmã dele é linda.

– Meu bem? – Tia Jaque bate a porta da garagem e vai colocando a cabeça pra dentro. – Posso entrar? – ela sorri de leve.

– Claro. – digo despertando do meu devaneio. – Claro que pode, tia.

– Eu te trouxe um presente – ela estende, meio sem graça, um embrulho retangular em forma de livros para mim. Notei que desde a segunda-feira ela anda meio sem jeito comigo.

– Uau! – digo com uma alegria excepcional – A bola de futebol que eu tanto queria! – Eu brinco e no mesmo instante vejo um sorriso se formando no rosto dela. Eu amo seu sorriso. No fundo acho que aquela menina que ela foi um dia ainda se esconde por detrás desses olhos cansados e tão marcados por esses anos sofridos. Parte da culpa é minha, sem dúvida.

– Como foi na casa de apoio, querido? – ela começa a fazer a cama para eu dormir.

– Tia... – faço uma pausa dramática e tento forçar minha expressão mais melancólica – É mesmo uma casa de apoio ou um clube pra adolescentes festeiros? – sorrio e coloco o embrulho no colo para me mover em direção à cama com a Mandie.

– Você é muito bobo quando quer, Quinzinho. Muito bobo!

Eu sei que algo a preocupa, embora não saiba o quê. Sei que ela não fez menção a nada, então resolvo simplesmente não puxar o assunto. Tia Jaque me conta tudo no seu devido tempo, e sei que ela vai me contar quando achar que é a hora, então prefiro aguardar.

– Tia... – digo olhando para minhas pernas atrofiadas – Eu posso tentar hoje?

Sinto como se tivesse cometido um pecado crasso. Sinto-me nu em meio a uma multidão de desconhecidos. Exposto, envergonhado. O seu olhar me fuzila, me tortura. Sinto como se tivesse pedido algo inadmissível, algo sujo, imoral.

– Meu bem... – ela pausa e lubrifica os lábios com a língua. Ela geralmente faz isso quando está nervosa, então eu sei que a resposta será não. Não faz muito tempo que pedi isto a ela, e eu caí desloquei o ombro. – Você sabe que na última...

– Tudo bem, tudo bem! – digo com tom jocoso mas ainda assim entediado – Ao menos me ajuda a tirar o laço? – remexo o laço do meu presente com os dedos. Se eu pudesse apostar eu diria que é algum clássico nacional, ou então algo que ela encontrou em algum sebo virtual.

– Claro, querido. – ela deixa minha cadeira o mais perto o possível da cama e me levanta enquanto faço o meu maior esforço para manter meus livros junto a mim.

Quanto tia Jaque abre o embrulho eu sinto vontade de chorar e de dar o meu mais forte abraço na minha gordinha.

“AS INCRÍVEIS AVENTURAS DE QUIN, O GUERREIRO” – leio na capa. Tia Jaque me deu um diário em capa de couro. As páginas são amareladas, mas é possível sentir o cheiro de novo enquanto o folheio. Uma pequena frase introduz o livro, e foi ela mesma que escreveu: FAÇA A SUA HISTÓRIA, NÃO HESITE EM COMETER ERROS.

– Você merece um abraço! – digo já deitado na cama, com o diário no meu colo e encarando tia Jaque sentada na beirada.

– Mas você pode! – ela apenas sorri e eu sei na hora que aquilo é um desafio e isso fica ainda mais claro quando ela me estende um braço para que eu o agarre e tente abraça-la. E eu tento.

Uma dor lacerante invade meus braços, quando estou prestes a cair ela me puxa no mais quente abraço que já recebi. E ficamos assim até ela parecer despertar do incrível frenesi Joaquim.

– Ah! – ela diz pegando um outro embrulho. – Aqui estão pena e tinteiro para você começar a sua aventura!

. . .

Já são quase meia-noite e ainda estou acordado pensando por onde começar a minha história. Quando foi que eu virei eu mesmo? Quando foi que adquiri consciência e notei que eu existo de verdade? Então resolvo começar:

Quarta-feira, dezesseis de maio de 2012: O primeiro dia de uma talvez longa e feliz vida. Joaquim Almeida de Barros, seu pragmático autor e incorrigível sonhador.


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