inCOMPLETO escrita por Lorenzo


Capítulo 4
O balde de nêsperas


Notas iniciais do capítulo

Nêsperas são frutas naturais da China e são também chamadas de ameixa-amarela (ou ameixinha) no Brasil. Em geral são muito suculentas e com uma determinada acidez e doçura muito específicas.



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Sáb. 19.05.2012

Já estou olhando para minhas pernas na cama fazem algumas horas. Tenho o costume de acordar cedo e ficar pensando na vida até a hora de tia Jaque acordar e me tirar daqui. Faz um tempo que ela já não deixa a cadeira perto da minha cama, pois já tentei sair sozinho algumas vezes e o resultado não foi muito agradável. Digamos que ficar com a cara sangrando no chão enquanto tenta gritar não é uma experiência muito interessante. Ao menos se os meus braços servissem para algo...

Fico pensando em como algo pode fazer parte do seu corpo e ao mesmo tempo não fazer... Digo, é curioso, não é? Se você perguntar para o meu sistema nervoso ele te dirá que não conhece essa de “pernas”. “O que são ‘pernas’?” – diria meu sistema nervoso. Porém se você perguntassem ao meu sistema cardiovascular, ele com certeza seria bastante irônico e diria algo como “Ah! As ‘pernas’! Aquela parte inútil que sou obrigado a desperdiçar meus recursos pra alimentar aquele saco de células inúteis?”.

Com meu polegar faço um carinho de leve na minha coxa. Ou no meu projeto de coxa. Eu gostaria de sentir mais do que este toque fantasma que minha mente cria. Mas é o que temos pra hoje.

. . .

Tia Jaque chega alguns minutos depois, já sorrindo o seu velho sorriso cansado. Em suas mãos um prato pequeno com mamão cortado em cubinhos e um copo de algum suco laranja-amarelado que deduzo ser de maracujá ou laranja.

– Bom dia, querido! – ela estende o prato e em seguida coloca o copo sobre o criado mudo.

– Bom... – interrompo e em seguida tento processar que cheiro é aquele e logo tenho a infeliz resposta: cigarro. – Bom dia, tia Jaque. – deixo evidente que algo me incomoda.

Ela me encara, tentando sondar o motivo da minha reação. Me sinto nu com seus olhos pousados sobre mim. Como se me vigiasse para poder me ajudar caso eu não fosse capaz de comer direto.

– Você pode ir agora. – digo áspero. Eu odeio quando ela fuma. Eu odeio.

– O que está acontecendo? – ela pergunta já se sentindo culpada.

O que está acontecendo? – repito a mim mesmo mentalmente. Está acontecendo que a minha tia está se matando. Não bastasse ter perdido o marido com câncer nos pulmões ela está repetindo o mesmo erro que o dele. Puxa! Isso é tão inteligente! – neste instante sinto que a minha expressão se modificou um pouco.

– Não acordei de bom humor. – resumo. Ela é adulta e dona da vida dela. Se ela morrer será por suas próprias escolhas. Não quero interferir na contagem do universo.

– Jura? – ela cheira sua mão direita de forma quase artística de tão bem disfarçada.

– Eu não minto, tia. – dou meu mais inútil sorriso amarelo e volto meus olhos a comida. Comida essa que agora me parece tão sem graça e inútil. Pra quê alimentar alguém como eu? Tantas pessoas fortes e capazes por aí precisando de alimento e eu aqui desperdiçando comigo mesmo. EU; NÃO; MINTO – Frase pesada. E eu não menti. Realmente não acordei de bom humor.

Ela sai do quarto e vejo que está se preparando para checar o cheiro de seu hálito.

. . .

No meio da tarde sou surpreendido por uma terrível vontade de escrever. Mas não quero apenas desenhar palavras aleatórias num pedaço de papel. Eu quero tragar a vida em sua essência bruta e refinar isso em algo bonito. Quero ser uma planta, uma planta que com terra fresca, água e luz do sol gera suculentos frutos.

Com cuidado levo a Mandie até o meu quarto e pego o diário que tia Jaque me deu três dias atrás. Coloco ele e uma caneta tinteiro sobre minhas coxas atrofiadas e vou com cuidado até a cozinha pegar algumas frutas. Aqui em casa temos um verdadeiro pomar nos fundos. Árvores de acerola, amora, manga, goiaba, carambola, nêspera e abacate. Temos também algumas plantas rasteiras na pequena estufa que fica por detrás do pomar: melancias, morangos e melões. Além de plantas frutíferas temos algumas ervas que dão um aroma indescritível a nossa casa, e algumas plantas para fazermos infusões. Pego meu baldinho de frutas na pia e o equilibro sobre o diário de couro, abro a geladeira com um pouco de dificuldade e o encho de nêsperas que deram fora de época. Tio Alfredo que me deu este baldinho. Ele o reaproveitou e decorou pra mim escrevendo meu nome e fazendo alguns desenhos no metal bem polido.

O ar do pomar está fresco e posso sentir o cheiro doce de cada fruta. Imagino os morangos suculentos na estufa, mas logo me surpreendo com um infeliz pensamento de que nunca os tirarei do pé e os comerei lá mesmo. Digo, nunca o farei sozinho. Se eu me abaixar, puf! Eu caio.

Abro o livro na página seguinte ao recado da minha tia suicida. Eu realmente a entendo. Entendo o estresse que deve ser cuidar de um aleijado pobre coitado. E penso que se eu não existisse ela poderia estar vivendo uma vida maravilhosa. Mas acontece que já tirei esta ideia da minha cabeça. Tento não pensar mais em suicídio.

Estou bloqueado. Simplesmente não me ocorre nada. Minha cabeça deletou tudo o que tinha de criativo e só me restou comer aquelas nêsperas. O baldinho já estava gelado devido a temperatura das frutas que estavam no refrigerador, mas aquilo não me incomodava muito. Nada me incomoda quando estou no pomar. O vento, o cheiro adocicado, o som dos pássaros, as frestas de luz do sol por entre as árvores, as nuvens... A possibilidade de me incomodar no jardim é nula. Ou nem tanto.

– Meu bem – minha tia coçava a cabeça, ela sempre fazia isso quando estava atônita -, nós temos visitas.

Senti como se o Big-ben badalasse diretamente nos meus tímpanos e no segundo seguinte já estava tudo bem.

– Visita? – repeti cético. – Vovô e vovó resolveram adiantar a temporada por aqui? – aquela era a única alternativa cabível no momento e resolvi me apegar àquela esperança. Era melhor isso que outro psicólogo assanhado que venha falar comigo sobre masturbação e libido.

– Na verdade... – ela ainda não havia concluído a frase quando ouvi um rangido metálico e em seguida vi uma juba vermelha e bagunçada. Era Juan. Merda! – pensei. E no segundo seguinte pedi mil desculpas a Deus por ter pensado besteira. Eu prometi a Ele que ia parar de pensar nessas palavras.

Não fosse só isso Emily vinha por detrás dele com a sua juba ruiva completamente desgrenhada e linda. Foi aí que fiquei com cara de babaca (e pedi desculpas a Deus de novo, é sério, eu já estava em débido) e travei. Ela usava uma calça bastante larga, mas isso só me fez imaginar o contorno de sua cintura por detrás daqueles panos e, por conseguinte, me lembrei do último psicólogo tarado que queria me convencer de que eu deveria ter algum tipo de fantasia. Eu juro, eu não sou desses. Sou algo como assexuado. É sério. Eu juro. Ou ao menos tento ser.

– Oi! – Juan levantou o braço numa saudação animada. Eu continuei contando cada sarda no rosto da sua irmã.

– Você me paga. – sussurrei pelo canto da boca a tia Jaque. Eu estava de pijamas, com comendo em um balde uma fruta que quase ninguém conhece nos fundos de uma casa suburbana e minha tia me esfaqueia pelas costas.

– Vai ser divertido. – ela diz enquanto beija minha testa e logo se afasta, dando espaço tanto para Emilly quanto para Juan acessarem o gramado.

– Qualquer coisa me liga, maninho. – ela beija a testa de Juan, o faz um cafuné rápido (e desgrenha ainda mais o cabelo do irmão) e em seguida me encara, dizendo um olá e se virando tentando seguir tia Jaque.

Ouço o ruído metálico de novo mas nem dou atenção. ELA; ME; DISSE; OI! – penso e logo me arrependo. Devo estar parecendo um idiota.

Juan está me encarando.

– Oi. – digo tentando buscar algum assunto.

– Oi. – ele ri e levanta os braços pra tentar colocar ordem no caos que sua irmã fez em seu cabelo. Eu sinto inveja por ver ele conseguir mexer seus braços com tamanha destreza. Isso me revolta um pouco.

– Desculpa pela minha tia – eu digo olhando pra baixo, e então volto a reparar em mim e tento me retratar – e por isso... – aponto para minha roupa com o olhar.

– Todo mundo usa pijamas – ele diz -, eu por exemplo passo o dia quase todo com os meus. – e ri a sua risada boba mas feliz. Eu sinto a sua felicidade e me inquieto com isso. Acho que às vezes pessoas felizes me assustam. Eu simplesmente não entendo.

– Então... – digo meio sem jeito.

– Você sabe jogar xadrez? – ele pergunta e em seguida gira sua cadeira de rodas para mostrar uma caixa com o enorme título “CHESS” escrito. E foi assim que passamos a nossa tarde e o começo da noitinha. Ele jogando como um mestre, e eu me sentindo um asno por não saber nem a metade. Mas eu era um asno feliz.

. . .

– Por quê ela não ficou? – perguntei.

– Ela é bastante complicada. Tem muitos segredos. – ele disse tentando me dar um aperto de mãos. – Obrigado pelas... – sua memória falhou.

– Nêsperas! – completei – Fica tranquilo, ninguém nunca lembra o nome de primeira.


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