Usuário Final escrita por Ishida Kun


Capítulo 31
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— Cinco minutos até a próxima reorganização — anunciou AIDA, mas Adam não prestou muita atenção. As garras do Devorador rasparam em seu pescoço quando ele desviou da investida, atirando logo em seguida. As balas quebraram parte da cabeça da criatura enquanto a gravidade fazia as capsulas subirem para uma das paredes.

Os Helldivers haviam adentrado assim que Beatriz dera a ordem e tão logo penetraram no edifício, já foram atacados, por sete, talvez oito Devoradores, era difícil dizer com clareza dada a agilidade das criaturas. A entrada para o prédio dava num enorme corredor bege, repleto de mobílias antigas como sofás, vasos ornamentais e quadros de paisagens. O caminho descia como um duto, mas a força gravitacional estava tão desorientada, que puxava qualquer coisa para as paredes, tornando o local numa espécie de tubo giratório, dada a possibilidade de andar pelas laterais. Um marcador visual indicava a direção para o final do corredor, numa porta simples de madeira avermelhada, 100 metros até o objetivo.

As armas cuspiam as balas ruidosamente, estilhaçando a madeira e os seres velozes, que corriam pelas paredes, esperando o momento certo de atacar. Hector saltou com a espada decapitando uma das criaturas que avançava, acompanhado por Valéria que vazou o corpo do Devorador com sua lâmina negra. Beatriz estava logo atrás dos dois, girando com o compacto rifle de assalto FN-P90 nas mãos, Carla dava cobertura repelindo os demais Devoradores que se aproximavam pelas laterais. Nesse meio, Adam sentia-se perdido numa verdadeira zona de guerra, com criaturas afiadas cheias de tentáculos, atacando mais rápidas do que os olhos eram capazes de identificar. O capacete dava um auxílio fundamental na batalha, travando alvos em cada um dos Devoradores, fazendo com que suas mãos se movessem de maneira automática para cada um deles. Desviou-se de mais uma investida das criaturas e saltando para uma das paredes, disparou uma rajada com uma das pistolas e com a outra, estraçalhou as pernas de mais um Devorador que se aproximava.

— Sua munição está baixa. Recarregue sua arma.

As mãos foram ágeis em descer com as armas até os pentes de munição, que se desprendiam automaticamente dos suportes nas costas, a tempo para Adam acertar mais um Devorador, antes de tentar avançar até os outros Helldivers, desviando de uma série de tentáculos que giravam fora de controle, destruindo as paredes e a mobília antiga. Diferente da primeira missão, de alguma forma ele parecia saber exatamente o que estava fazendo, como se uma voz em sua cabeça indicasse para onde deveria apontar as armas, ou a hora certa de desviar. Parecia uma lembrança escondida em algum lugar, que vinha à tona no exato momento em que ele precisaria dela.

Os Helldivers agiam coordenadamente, enquanto Carla dava cobertura com as rajadas do rifle, Hector e Valéria corriam entre os disparos incapacitando o Devorador, seguidos por Beatriz, que saltava por cima como uma acrobata, atravessando o núcleo com um golpe certeiro, então a dança recomeçava, vez após outra. Os movimentos eram suaves e precisos, passos milimetricamente cronometrados, disparos rigorosamente traçados para que não houvessem erros e por mais velozes que as criaturas fossem, elas não tinham a mesma capacidade de trabalho em equipe que os Helldivers tinham.

Adam se aproximou de Beatriz disparando com as duas pistolas semiautomáticas em um Devorador que se aproximava pela esquerda, juntando-se a ela para atacar outra criatura que surgia pelo chão. Beatriz segurou sua mão e o lançou para uma das paredes e como se pudesse ouvi-la, ele soube que deveria puxá-la a tempo dela desviar de uma investida e contra atacar em seguida.

— Isso não está nos levando a lugar nenhum! — gritou Beatriz entre um disparo e outro.

Olhando para trás, Adam havia percebido que não tinham avançado nem até a metade do corredor e que a maioria dos Devoradores estava se regenerando — Não dá pra matar todos! Helldivers, avançar! — ordenou.

— 50 segundos até a próxima reorganização — alertou AIDA. Haviam perdido tempo demais no mesmo lugar.

Avançaram numa corrida desenfreada até o fim do enorme corredor, as armas eram velozes acertando qualquer coisa que chegasse perto o bastante, garras cortavam o ar, os tentáculos estalavam feito chicotes e os Helldivers corriam, andando pelas paredes como se descessem numa escada em espiral, atirando e atirando, uma nuvem de estilhaços e fragmentos, cristais negros que esvoaçavam perdidos no fluxo gravitacional errôneo.

— 10 segundos, 9 segundos, 8 segundos — AIDA começou a contagem, estavam perto, muito perto. Talvez até tivessem conseguido se um enorme Devorador não tivesse se colocado entre eles e a porta, os obrigando a desviar de sua rota.

— Reorganizando. — anunciou AIDA e no mesmo instante a mensagem de “SISTEMA INDISPONÍVEL” apareceu num dos cantos da interface visual.

Tarde demais. A porta avermelhada simplesmente explodiu, como se fosse feita de peças de lego, pixels que se desmontavam e remontavam incessantemente, o chão tremeu e todas as estruturas quebraram, girando e virando. Era como estar no olho de um furacão e ao mesmo tempo no meio de um cruzamento movimentado, tudo ao redor era instável e quebradiço, rápido e mortal. Os Devoradores remanescentes foram pegos em cheio pelos destroços errantes, poucos conseguindo se desviar e se proteger em algum lugar temporariamente seguro. O chão se partiu sob os pés de Adam, obrigando-o a saltar para um pedaço de terreno estável, até a coisa começar a girar sobre o próprio eixo, completamente fora de controle. Valéria correu em sua direção e o agarrou pela mão, o puxando para junto de si, enquanto Carla e Beatriz travavam uma luta feroz com o enorme Devorador. Era fácil diferenciar um nível 2 dos demais, a coisa parecia um polvo, com dezenas de tentáculos, rodopiando pelo chão para desviar dos disparos e se movendo anormalmente veloz, atacando as duas garotas ao mesmo tempo.

Hector se desvencilhou de uma estante de livros que havia sido recriada em sua frente e atirou num Devorador que estava prestes a atacar Valéria e Adam. Saltando e desviando, ele fez seu caminho até chegar a batalha com o nível 2, juntando-se a Carla e Beatriz.

Estava impossível saber o que era parede, o que era chão, janelas ou portas, ou mesmo os Devoradores. Era como se alguém estivesse brincando de escolher imagens rapidamente, como Eriza fazia ao zapear com o controle remoto por diversos canais, cada objeto daquele corredor se desmontava, remontava e desmontava novamente, uma cadeira virava uma porta ou um vaso sanitário e no instante seguinte poderia ser uma janela, ou mesmo parte do piso, girando tão veloz quanto um carro desgovernado.

O cenário caótico aos poucos começava a tomar forma e o corredor dava lugar a novos ambientes, talvez um teatro antigo, uma sala hospitalar, cadeiras e mais cadeiras empilhadas. O chão começou a se dividir, formando um novo andar, esticando sobre si próprio, levantando paredes e escadarias. Precisavam ficar juntos antes que a reorganização terminasse, ou poderiam acabar se perdendo uns dos outros.

— Droga! Precisamos sair daqui! — Valéria gritou para Adam e os dois se apressaram a pular da borda do novo andar, saltando um enorme vão. Uma mancha negra cortou o ar e antes que pudessem chegar do outro lado, Adam foi atirado sobre uma prateleira derrubando uma enxurrada de livros sobre sua cabeça. A criatura sorridente saltou sobre ele e enquanto o prendia no chão, tentava a todo custo o abocanhar. Adam fazia o possível para manter as garras dela afastadas de seu corpo, tanto quanto tentava ao máximo evitar os tentáculos agitados. Ao longe, no que parecia ser um hall de entrada com duas escadarias em espiral, a luta com o Devorador seguia seu curso, com Beatriz e Carla tentando cortar os tentáculos da veloz criatura. Mais à frente Hector tentava soltar Valéria, presa entre dois pilares em formação, inadvertido da criatura que se aproximava sorrateira pelas suas costas.

Adam tentou alertá-lo, mas por alguma razão era como se as comunicações não funcionassem, ele berrou e gritou mas nada resolveu. Não havia tempo para pensar, precisava fazer alguma coisa e rápido.

Olhou para a criatura à sua frente, sorridente, abrindo e fechando a boca num estalido dos dentes pontiagudos — Você gosta de rir desgraçado? Ria disso! — e acertou-o uma cabeçada, forte o bastante para partir sua mandíbula inferior, a coisa se debateu e Adam jogou-a para o lado. Imediatamente correu na direção de Hector saltando a distância dos andares que os separavam. Alto demais, rápido demais.

— Aviso. Seu sincronismo ultrapassa os níveis seguros.

— Que se dane o sincronismo! — E com o ombro, acertou em cheio o Devorador e a pancada doeu como se tivesse batido numa parede de concreto. A criatura se partiu feito cristal, uma aglomeração de caquinhos brilhantes que pareceram entrar pelo USV, cortando-o feito uma navalha. Por que não havia pego a espada ou mesmo disparado com as armas? Por que sempre tinha que fazer coisas estúpidas como aquela? Fora de controle, Adam rolou pelo chão e por pouco não acertara uma viga de metal. Por pouco. Mal teve tempo de ver que Hector estava correndo em sua direção, muito menos que o Devorador ainda estava em seu encalço, que o diga ver a janela para qual estava indo. A janela. Aquela sim era uma péssima ideia.

Atravessou o vidro e se chocou contra uma parede, o som de algo sendo quebrado poderia indicar que ela tinha se partido, mas Adam sabia que a sorte nunca estivera ao seu lado. Caiu feito um saco de batatas e sentiu — dolorosamente — que realmente tinha quebrado alguma coisa. Outras duas pancadas e Hector e o Devorador se juntaram a cena. A janela havia desaparecido completamente, deixando em seu lugar um quadro representando uma cidade a noite.

— Fim da reorganização. — anunciou AIDA — 20 minutos até a próxima reorganização.

— Obrigado — resmungou Adam, a voz rouca devido a quantidade absurda de dor que estava sentindo. Criou uma nota mental para retirar informações óbvias da IA, ou ao menos fazer com que ela escolhesse melhor o momento para dá-las. Seu braço estava latejando de dor, algo havia atravessado o uniforme, mas caído do jeito que estava, ele não conseguia ver o quê.

Adam sentiu as mãos grandes de Hector o erguendo, fazendo com o que quer que estivesse em seu ombro, perfurasse ainda mais. Hector tinha no rosto um sorriso tão grande que seria fácil confundi-lo com um Devorador.

— Cara você me salvou! — ele falou alegremente, recostando Adam no canto da sala — Você me SALVOU!

— De... vo... rador... — Adam tentou falar num rosnado rouco e quase indecifrável, levantando o braço molemente na direção da criatura que se reconstruía numa massa disforme de fios escuros — Devorador!

— Ah aquilo. — Ele respondeu, olhando de relance para o Devorador e fazendo uma expressão de puro descaso, continuou — Vou dar um jeito.

Ele se virou no exato momento em que o Devorador saltou em sua direção, acertando-lhe um soco certeiro. Os cacos se espalharam pelo chão e Adam imaginava que talvez fossem dentes. A criatura se contorceu num canto, grunhindo e chicoteando com os tentáculos nas costas, num claro sinal de ameaça. Hector agitou os ombros e moveu os punhos, socando o ar como um pugilista e Adam percebeu que ele usava manoplas de algum tipo de material escuro que lembrava carvão, repleta de espinhos na região dos punhos. Tinha quase certeza de já ter visto aquele tipo de arma em algum livro sobre a idade média.

— Primeiro round! — gritou Hector, partindo para cima do Devorador com um gancho de esquerda. A criatura titubeou para um lado e contra-atacou, mas Hector era tão rápido quanto ela, desviando-se dos golpes e batendo logo em seguida, um, dois, três, direita, esquerda, direita. Os tentáculos passaram longe, ele agarrou e os partiu nas mãos.

O Devorador grunhiu e tão logo recebeu outro acerto e outro. O derradeiro golpe esfacelou a cabeça inteira, mesmo assim o corpo continuou em pé, enquanto dezenas de fios a reconstruíam.

— Não mesmo! — E atravessou a mão no peito da criatura, arrancando uma esfera avermelhada com força, fios que saíam dela se arrebentavam como raízes, à medida que ele puxava com mais força. Com um grito, Hector espatifou a esfera vermelha nas mãos, espirrando um líquido da mesma cor para todos os lados. O corpo do Devorador tombou pesadamente, se desfazendo assim que tocou o solo.

— Nocaute! — Hector gritou levantando as mãos para o alto numa pose de vitória — Ao vencedor, as palmas e a garota!

Largado no canto da sala, Adam o olhava indeciso entre pânico ou admiração, fosse pela imprudência daquilo ou a coragem absurda que emanava dele. A forma despreocupada como Hector levava a situação, como se parecesse uma brincadeira entre amigos ou um jogo de videogame era assombrosa, seus reflexos ultrapassavam qualquer coisa que Adam já tinha visto.

— Múltiplas fraturas identificadas. Deseja que eu gerencie seu estado de saúde?

— Achei que não precisasse pedir — resmungou Adam, sentindo o uniforme apertar em seu braço. Um alívio percorreu seu corpo numa corrente fria, mas agradável.

— Acho que sua amiguinha aí ainda tem muito o que aprender hein? — brincou Hector, ajudando Adam a se levantar — A minha Blue levou um bom tempo para entender o que é uma Você tá legal?

— Na medida do possível. Onde estão os outros?

— Em algum lugar... — e fez uma pausa enquanto girava nos próprios pés — daquele lado — E apontou para a esquerda, na direção de portas duplas de mogno entalhado — Você não está vendo?

Não havia prestado atenção ao marcador com o nome “Helldivers” indicando a direção, acompanhado da quantidade de metros restantes. Na mesma posição, outro indicador, um azul, mostrava o lugar onde havia sido a última transmissão das crianças perdidas. Se ainda estavam transmitindo, possivelmente estavam vivos, o que era algo realmente bom.

— Adam, obrigado pela ajuda, ás vezes eu me distraio com a fofinha. — A tranquilidade vazava pela voz dele, cristalina como água.

— Nem esquenta. Tenho certeza que você faria o mesmo por mim.

— Pode apostar. Precisamos encontrar as meninas, seu sistema de comunicação funciona?

Adam olhou para o canto superior, onde a mensagem de “SISTEMA INDISÓNÍVEL” ainda piscava em vermelho — Não, completamente indisponível.

— Igual o meu. A Blue, minha IA, identificou poucos Devoradores por aqui, acho que conseguimos encontrá-las antes da próxima reorganização, ou então vamos nos afastar cada vez mais.

Adam assentiu com a cabeça e os dois se apressaram na direção do indicador. A batalha no corredor custara boa parte da munição de Adam, se não conseguissem restabelecer a comunicação com o Horus, ele teria problemas, afinal, ele não era tão bom sem armas quanto Hector era com os punhos. De alguma forma, aquele Devorador de nível 3 que Beatriz falara, estava fazendo com que certos sistemas caíssem, de maneira estratégica. Sem comunicação, eles não poderiam se localizar num ambiente em constante mudança, sem as armas não durariam muito tempo e sem conseguirem se desconectar do sistema, certamente estariam mortos em algumas horas.

Adentraram num grande salão antigo, o teto em abóbada era colossal, pintado como se representasse a cidade vista de cima. A pintura era tão realista que por um instante, Adam se perguntou se de fato não estavam de cabeça para baixo. Escadarias subiam espiraladas como uma hélice-dupla, rodeando o local como a cobertura bem feita de um bolo. Seguiram sem nenhum problema, atravessando o grande salão em direção as portas duplas de madeira entalhada. Um novo corredor rústico se esticou a frente deles e a corrida continuou.

— Você mandou muito bem lá atrás. — disse Adam, enquanto tentava observar uma das janelas durante a corrida.

— Aquilo? Obrigado! Se a fofinha tivesse aqui ela teria me estapeado! — e riu. Mais uma porta, dessa vez era um corredor verde, cheio de janelas cromadas — Imprudência, ela diria. Mas eu gosto de uma boa briga e como não acho ninguém disposto a isso — e olhou para Adam.

— Não olhe pra mim! — esquivou-se, sorrindo. Era raro Adam fazer piadas, ou rir de certas conversas, mas Hector dava a ele uma sensação de familiaridade muito agradável. Era como estar na companhia de Eriza — Eu não sou muito bom com brigas. Na verdade nunca me meti em nenhuma, mesmo que as vezes acho que devesse.

— Então não se meta, é uma péssima ideia. Antes da fofinha e da Rede, digamos que eu era... envolvido nessas coisas e posso te garantir que isso não vai te trazer nada de bom.

E Adam pensou imediatamente em Mariano, Olavo e seus outros comparsas igualmente imbecis, implicando com os garotos menores, comprando briga com qualquer um por qualquer motivo estúpido. Já perdera as contas de quantas vezes engolira o orgulho para não se envolver numa confusão com eles, Hector não precisava lhe dizer aquilo, pois mesmo que se sentisse tentado, ele já sabia como as coisas funcionavam. Ceder àquele tipo de provocação apenas o levaria a ruína, seja pelo fato de que levaria uma surra, quanto pelo fato de que sabia que o sentimento o consumiria por dentro, o devoraria.

— Quando você não souber o que fazer com a sua raiva, ponha ela pra fora, não nos punhos, mas nas suas atitudes. E quando digo isso não quero dizer que você deve sair por aí xingando todo mundo igual a Carla faz, não. Mostre o melhor de você, porque todo mundo está ansioso para ver o seu pior, isso será um golpe no ego deles! Será sua vingança contra todos! Entendeu?

Ele tinha que admitir, aquele era um bom ponto de vista. Desde que conversara com Hector no dia anterior, já havia percebido como ele pensava adiante, como ele era apenas aparência. Um cara forte com cara de poucos amigos, do tipo que você não se arriscaria a olhar a menos que quisesse levar uma porrada. Mas era apenas isso. Na verdade, Hector acreditava que a mente sobressaía ao corpo, que os músculos que ele tinha naquele mundo representavam apenas a capacidade intelectual que ele possuía no mundo real, e os músculos do mundo real, representavam sua perseverança, dedicação e força de vontade. Aquilo era a prova de que ele era forte de verdade, não apenas no corpo. A mente era sua força. Adam o conhecia bem pouco, mas de certa forma o admirava. Não ousaria falar, mas sentia-se honrado por ser considerado “família” por alguém como ele.

Viraram uma esquina e atravessaram outra sala vazia, agora faltavam pouco mais de 100 metros para chegar até o marcador. Adam não parava de pensar em Beatriz, Valéria e até mesmo em Carla, se estariam bem. Se pegou com aquela estranha preocupação de uma forma que quase o obrigou a sorrir. Ele raramente se importava com alguém daquela forma.

— Elas estão bem, não se preocupe — Hector tranquilizou-o quando ele questionou a respeito — Se você tiver que se preocupar com alguém, se preocupe com os Devoradores. Eles são os únicos que correm perigo com aquelas três juntas!

Sorriu. Era reconfortante saber disso, mesmo com aquela preocupação, algo dentro dele também dizia que elas estavam bem, então parou de pensar a respeito.

— Múltiplas anomalias sistêmicas detectadas.

— De novo não... — resmungou Adam ao ouvir AIDA.

Os dois reduziram o passo e Hector fez um sinal para que Adam ficasse atrás dele. O corredor fazia uma curva logo a frente, onde o marcador indicava o caminho a seguir. Arriscaram um olhar pela esquina e se depararam com mais de dez Devoradores, rastejando de um lado a outro de um corredor de vidro, que deveria ser uma das passarelas de ligação entre os prédios do complexo. As criaturas deslizavam suavemente pelas paredes, chão e teto, soltando um ruído que lembrava um silvo, ou uma risada. Em alguns momentos se erguiam e caminhavam lentamente, a boca abria e fechava de leve, como se estivessem farejando algo, enquanto os tentáculos serpenteavam pelo ar. O indicador dos Helldivers apontava para frente, porém estranhamente, parecia estar fora do prédio.

— Droga! Estamos ferrados! — praguejou Adam — Não tenho munição suficiente para dar conta desses aí!

Hector soltou uma gargalhada quase inaudível — Eu nem tenho mais munição! — Os dois riram e ele continuou — Mas ainda fica melhor.

— Não duvido de mais nada.

— Acabei de descobrir que as garotas estão no prédio vizinho e que nosso navegador diz que a melhor rota para chegarmos até lá é em linha reta, pelo lado de fora do prédio.

— Você só pode estar de brincadeira! Até o GPS do meu celular funciona melhor do que isso!

— Provavelmente até um mapa de papel funcionaria. O negócio é que não temos outro caminho, se deixarmos o prédio reorganizar de novo vamos ficar ainda mais distantes das meninas e por mais que eu goste da sua companhia, eu prefiro passar o resto da noite com uma garota.

— Indiscutivelmente. E o que você sugere Sr. Helldiver?

Hector deu uma espiada novamente e chamou Adam.

— Eles são burros, sabia? Não nos percebem pois quando usamos o capacete — e deu um tapinha no próprio capacete —, isolamos nossa assinatura da Rede. Mas se um deles ver você, aí já era. Temos o elemento surpresa, mas eles têm algo contra nós também.

— Algo além da velocidade, garras afiadas, tentáculos cortantes?

— Um nível dois. Preste atenção ao Devorador que está na mesma direção do marcador, ele fica parado enquanto os outros se movem ao redor dele. Se você prestar atenção, pode perceber que ele causa uma distorção do ambiente.

Adam parou para prestar atenção na criatura sorridente. Ela estava em pé, diferente dos outros que rastejavam na maior parte do tempo. Foram necessários alguns segundos até que ele percebesse do que exatamente Hector estava falando. Ao redor do Devorador, era como se a luz se contorcesse, fazendo com que a paisagem atrás ficasse borrada, sutilmente.

— Você não estava brincando com a coisa de ficar melhor! — exclamou ele — Agora entendo a parte da anomalia. Mas isso só prova que estamos ainda mais ferrados.

— O nível dois não vai atacar, os outros é que vão. Eles irão nos testar enquanto o chefe vai ficar apenas observando. Quando ele ver do que somos capazes, vai adaptar o corpo e cair dentro. Minha ideia é que ataquemos antes que ele tenha tempo de analisar a gente.

— E como isso nos leva até as... — E antes de esperar a resposta de Hector, Adam espiou o corredor mais uma vez, o indicador flutuando do lado de fora e o Devorador bem na frente da parede de vidro. Naquela situação, se juntasse um mais um, provavelmente daria três.

Hector sorriu e assentindo com a cabeça, disse.

— São uns cinco andares abaixo, pelo que vejo no mapa, o caminho segue na outra passarela de acesso. Se saltarmos direitinho, vamos cair bem em cima dela.

— Vamos morrer! Isso é loucura.

— Isso é ser um Helldiver! Adam, escuta, eu vou correr na direção do nível dois e jogá-lo janela abaixo, você me dá cobertura com as balas restantes e salta logo atrás de mim. Se tudo der certo eles não vão nem tocar na gente.

— Hector, devem ser mais de 30 metros de altura! Nós vamos MORRER!

— Ok, entendi. Vamos no três, ok? Um... dois...

Adam não soube dizer se foi a adrenalina do momento ou se realmente Hector não disse o “três” que ele não esperava ouvir. O plano parecia estúpido e insano, mesmo que fosse o tipo de coisa que talvez ele pudesse pensar em um dos seus momentos de impulsividade. Mas agora que estava levemente racional, a ideia era suicídio.

O mundo novamente se tornou um borrão de tinta quando ele e Hector avançaram pelo corredor. Hector parecia ser feito de metal, seus passos eram pesados e Adam tinha a impressão de que causavam uma trepidação no chão. As pistolas foram mais rápidas do que Adam esperava e os Devoradores levaram preciosos segundos até perceber a presença deles. Adam atirava para os dois lados, repelindo simultaneamente as criaturas que avançavam.

— Sua munição está baixa. Recarregue sua arma.

Os pentes saltaram e ele os pegou ainda no ar, carregando as armas e atirando logo em seguida. Dois a direita, Um a frente. Esquerda. Os cristais pareciam uma chuva negra, brilhantes e pontiagudos. Em algum momento Hector estava uivando como um lobo e Adam se pegou fazendo a mesma coisa. Era loucura. Tinha que ser.

Sentiu algo raspar em sua perna, alguma coisa também acertara o capacete, mas ele não reduziu a velocidade. Quando Hector estava em cima da criatura de nível dois, Adam girou de costas para ele e atirou nos Devoradores restantes, o barulho da janela se despedaçando indicava que o parte do plano havia dado certo. Saltou. E o ar puro da noite beijou seu rosto.


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