Diário de Uma Semideusa escrita por Lúcia B Wolf


Capítulo 9
A Tela em Branco




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Emily e eu já ocupávamos nossos lugares na sala de aula das masmorras quando Logan entrou. Era seguido por um dos poucos rapazes com quem o via conversar, um jovem alto de cabelos castanhos e expressão severa que trajava as vestes da Sonserina.

– Cê tá com saudades dele, não é? - Emily perguntou quando acompanhei Log com o olhar.

Não pude negar. Passava boa parte de meu tempo livre com John, e mal via Logan sem a companhia de Becky. Ele parecia fazer questão de me evitar quando tínhamos aula juntos, sentando-se sempre do outro lado da sala e saindo rapidamente quando éramos liberados. Eu tentava me convencer de que ficar longe dele era o melhor pra todo mundo mas, lá no fundo, sabia que não conseguiria continuar assim por muito tempo.

Foi então que algo me ocorreu. Desenrolei um de meus pergaminhos, mergulhei a pena na tinta negra e escrevi, em letras tremidas:

Depois da aula, na Torre de Astronomia?

Ps: Quase sinto falta dos choques.

A Torre de Astronomia era proibida aos alunos fora do horário de aulas, mas Log se importava com as regras quase tanto quanto eu. Na verdade, o fato de ser proibido o instigaria a ir. Fiz um aviãozinho com o pergaminho escrito e o lancei para o outro lado da sala. Log e eu costumávamos nos comunicar assim durante o ensino médio, quando os professores separavam a gente. O aviãozinho pousou ao seus pés, e ele deu um sorriso quase imperceptível ao pegá-lo. Emily me olhava com as sobrancelhas ligeiramente franzidas de curiosidade.

Alguns segundos depois, Logan lançou o avião de volta. Ele sempre pousava perfeitamente sobre a minha mesa. Abaixo das palavras tremidas, estava escrito em letras firmes:

Ok.

Ps: Eu ando treinando.

– Esse pãozão aí tem um baita senso de humor, hein!? - Emily riu, espiando por cima de meu ombro. Ri também, enquanto guardava o papel na bolsa e retirava o livro de Poções.

– Você não faz ideia.

***

Depois de um belo e farto almoço à mesa de Apolo, passei na companhia de Lee e seus cabelos azuis pelas grandes portas do Salão Principal e fomos em direção ao arsenal. Enquanto passávamos pelos jardins, porém, uma voz grave chamou meu nome: John saía do castelo e vinha em nossa direção.

– Te espero nos alvos - Lee falou num sussurro, deu um sorriso malicioso e saiu.

– Oi, ruiva - John se aproximou e beijou minha testa carinhosamente.

– Oi, capitão - respondi, sorrindo.

– Tenho um presente para você.

Abri a boca para responder, mas o bruxo me girou pelos ombros antes que eu pudesse dizer qualquer coisa. Colocando-me de costas para ele, jogou meu cabelo por cima do ombro e passou uma correntinha de ouro pelo meu pescoço. Segurei o pingente que ela carregava, um pequeno medalhão com a figura de um lobo em alto relevo. Arregalei os olhos, perplexa.

– Pelos deuses, John! Não posso aceitar…

– Pode, e vai aceitar. O lobo é o símbolo da família Reed, quero que fique com ele.

Eu não sabia o que dizer quando virei-me para ele novamente.

– Por quê?

– Porque você faz parte da minha matilha, agora.

Passei os braços pelo pescoço de John e o abracei forte.

– Obrigada! É lindo - falei, sem soltá-lo. Por mais que eu tenha adorado o presente, me senti estranha, como se faltasse alguma coisa. Mas então vi Emily em frente ao arsenal, com os olhos castanhos tristes de uma forma que eu nunca vira antes. Soltei John e virei-me para onde ela olhava: a entrada do castelo.

– O que foi? - Disse John.

– É o Finn ali?

– É - respondeu ele, acompanhando meu olhar. - Parece que ele está se dando bem, não é?

Finn saía do castelo de mãos dadas com Liz. Engoli em seco.

– Parece que sim… Eu preciso ir. Muito obrigada pelo medalhão, John, é perfeito. - Dei um beijo em sua bochecha e saí apressada. - A gente se vê mais tarde.

Andei rapidamente até Emily, que continuava a encarar Finn e Liz.

– Emily? - Chamei, mas ela nem se mexeu. - Escuta, como foi a caça à bandeira aquele dia?

Falei a primeira coisa que me veio a cabeça. Ela encolheu os ombros, parecendo estremecer um pouco mais. Parabéns, Cice, você conseguiu piorar tudo.

– Os filhos de Atena ganharam.

Foi a minha vez de estremecer. Filhos de Atena. Becky.

– Log estava no time deles, não estava?

– Sim. Foi ele quem pegou a bandeira.

Ela virou-se de costas e foi entrando no arsenal. Alguns segundos depois, voltei à mim.

– Emily? - Chamei de novo, e ela se virou. - O que você acha de vir treinar comigo e Lee agora? Aprender um pouco sobre arco-e-flecha pode ser bem útil - improvisei. Ela suspirou e ajeitou a coroa de flores brancas no cabelo. - Só não vá dar flechadas em certas pessoas quando aprender a usar o arco, tá?

Meu sorriso forçado pareceu funcionar.

– Eu não tinha pensado nisso - Emily respondeu com uma leve risada, - mas até que a ideia é massa!

Contudo, ela não parecia muito animada quando a puxei pelo braço até onde ficavam os alvos. Meu irmão veio até mim com a testa levemente franzida e entregou-me um arco.

– Lee - falei num sussurro enquanto encaixava duas flechas no arco composto, - Emily vai treinar com a gente hoje. Ela precisa de uma distração.

Ele sorriu daquele jeito malicioso.

– Você está segurando isso errado, pequena Deméter - ele disse para Emily, apesar de ela segurar o arco muito bem para uma iniciante.

– Oh, eu tô?

– Está. - Enquanto Lee passava os braços em volta dela para “consertar” a posição da arma, deu uma piscadela para mim.

***

A Torre de Astronomia era a mais alta do castelo, com a melhor vista para o céu e para o campus de Hogwarts. Era o meu lugar favorito. Escorei os cotovelos na borda de tijolos e fiquei a observar, enquanto segurava o medalhão de John entre os dedos. Está faltando alguma coisa.

– A vista é mesmo linda. - Logan apareceu alguns minutos depois de eu ter chegado, escorando ao meu lado. Assenti com a cabeça enquanto acordava de meu devaneio. – O que você queria conversar? - Ele foi direto ao ponto.

– Sério? Eu não podia só querer passar um tempinho com você? - Log ergueu uma sobrancelha em resposta. Era claro que queria passar um tempo com ele, mas não era para isso que estávamos ali. Suspirei, com o sorriso sumindo do meu rosto.

– Queria te perguntar isso já faz um tempo, mas a gente não tem se encontrado muito ultimamente…

Ele assentiu.

– As vezes, sinto falta dos velhos tempos.

– Pois é, mas você está sempre com a sua sombra.

– E você com a sua.

Ele falava de John, claro.

– A questão é - falei, tentando mudar de assunto rapidamente - que você foi pra Londres só pra ficar de olho em mim. Venho pensando muito nisso, Log, e quero saber tudo. Alguém esteve cuidando de mim esse tempo todo, não sei quem ou porquê, mas tenho certeza de que é por isso que nunca fui atacada no orfanato. E desde que nós viemos pra cá… eu não recebi nenhuma notícia deles. Ninguém responde as cartas que mando. Estou com medo, Logan… Lee disse que nós, filhos de Apolo, temos uma espécie de 6° sentido, um dom pra saber das coisas. Quando estávamos indo embora de lá, sabe qual foi a última coisa em que pensei? Que eu nunca mais os veria de novo.

Logan suspirou. Não com a impaciência ou frieza de costume, mas com tristeza.

– Eu não sei a história toda, Cice. O que eu sei é que quando você nasceu, Quíron encontrou você e sua mãe. Por algum motivo você chamava mais atenção que os outros semideuses, mesmo sendo só um bebê. Ele disse que a casa estava protegida, provavelmente obra de Apolo. Mas de alguma forma, uma fúria conseguiu quebrar essa proteção e atacou vocês. Quíron soube quando ela estava se aproximando, mas chegou tarde. Encontrou você e te levou para o orfanato, que estava protegido também. Desde então, ele não parou de te observar à distância, sempre desconfiando que havia alguma coisa especial em você, e mandou que eu me mudasse pra cá e me matriculasse no Tommy High School. Era uma forma de ele ficar de olho em nós dois. É claro que eu não gostei disso, no começo. Mas… Nós começamos a ficar próximos.

– Você não queria ser meu amigo? - Perguntei, sentindo um aperto na garganta.

– Eu não tinha que ser seu amigo - disse ele, encolhendo os ombros. - Mas eu quis ser.

Foi como se um peso enorme saísse de cima das minhas costas. De qualquer forma, era muito para digerir.

– Eu me tornei sua melhor amiga, pode falar. - Logan me olhou e assentiu com aquele sorrisinho que só ele sabia dar. – Mas não acho que tenha algo especial em mim, Log. Não sou diferente dos outros semideuses.

Ele deu de ombros.

– É sim. Eu não sei o quê, mas tem algo diferente em você.

E mais uma vez, eu era a diferente. Voltei a escorar os cotovelos nos tijolos da Torre.

– Como você descobriu que era um semideus? - Perguntei após alguns minutos de silêncio.

– Eu sempre soube, mas essa é outra história.

– Tenho tempo. Norma te contou antes de...? - Log nunca havia falado muito sobre os fantasmas de seu passado, mas eu sabia que ele era atormentado por eles tanto quanto eu.

– Não, quando minha mãe morreu eu era muito novo. Quíron me levou para o Acampamento Meio-Sangue e eu cresci lá, sabendo quem era.

Logan tornou a perder o olhar na vista à nossa frente, e eu fiz o mesmo. Voltamos a ficar em silêncio, agora por um tempo mais longo.

– Você devia voltar para lá - ele finalmente falou, ainda sem olhar para mim, indicando a Torre da Grifinória com a cabeça. - Antes que o Reed queira seu medalhão de volta.

Olhei de relance para a correntinha. Não tinha me dado conta de que Logan a havia visto.

– Vai ser o nosso segredo - sussurrei.

Ele deu seu meio sorriso novamente. – Mais um pra coleção.

Virei-me, sorrindo, e saí.

***

As paredes da sala de pintura eram cobertas de quadros, mas estes não se mexiam como aqueles dos corredores. Pincéis, tintas de todas as cores e telas em branco estavam espalhadas por todo lugar. Já havia algumas pessoas ali. Eram todos meus irmãos, com exceção de um bruxo da Corvinal que não tardou a sair após chegarmos. A sala raramente ficava vazia, pois era um dos lugares onde os filhos de Apolo mais gostavam de passar o tempo, assim como a sala de música e o Coral.

Vesti um avental enquanto Lee me mostrava vários quadros.

– Esses são meus - ele ia dizendo, - alguns dos meus mais recentes.

Ele apontava para vários quadros, a maioria retratando a floresta, o lago e os jardins de Hogwarts com o sol ao fundo. Outros eram caricaturas, algumas de alunos, outras de desconhecidos. As pinturas eram magníficas.

– Pelos deuses, Lee! Elas são perfeitas!

– Ele sempre deixa a gente no chinelo - riu Suzane do outro lado da sala.

– Ah, não é pra tanto - disse Lee, ficando vermelho. Ele colocou uma tela em branco num dos cavaletes, voltando-se para mim. - Esta é pra você.

– Tá legal - prendi os cabelos ruivos num coque e segurei a paleta de tintas, olhando para a tela. - Mas… O que eu devo pintar?

– Nunca pintou nada antes?

Encolhi os ombros. – Só as paredes do meu quarto.

– Não é muito diferente - respondeu Lee, rindo. - Não se preocupe, está no seu sangue.

– Já que é sua primeira tela, tem que ser especial - falou o mais velho de meus irmãos, Lorenzo, com seu sotaque italiano pouco disfarçado pelos anos que passou em Hogwarts. - Pinte alguma coisa que queira guardar, alguma lembrança.

Pensei durante alguns segundos, e a lembrança perfeita veio à minha mente. Não foi tão fácil quanto atirar minha primeira flecha, mas o pincel parecia me guiar perante a tela até que as formas rabiscadas e ilegíveis começaram a ganhar vida.

Conforme o tempo foi passando e as pessoas foram saindo da sala, apenas Lee - que já pintava sua segunda tela do dia - e eu ainda estávamos lá pouco mais de duas horas depois.

– Ai… - suspirei cansada, passando as costas da mão no rosto e manchando a testa de tinta. - Acho que acabei.

– Sério? - Lee deixou o pincel no suporte da canaleta e veio andando em minha direção. - Ainda lembro da minha primeira tela, era a paisagem da janela do meu quarto na fazenda do irmão da minha m… OH!

Ele olhava com os olhos arregalados para a tela. Ergui as sobrancelhas.

– O que foi? Está muito ruim?

– Não... ficou legal, mas… Por que você pintou o Logan?

Olhei para a tela novamente, e fiz que não com a cabeça.

– Eu não pintei o Logan. Pintei a primeira vez que o vi.

Lembrava-me daquele dia com uma clareza que não me era comum. Estava sentada sozinha quase no fundo da sala, desenhando em meu caderno enquanto os outros alunos faziam qualquer coisa até o professor chegar. Uns jogavam bolinhas de papel, outros batiam papo, havia ainda aqueles que conversavam sozinhos com uma alegria e excitação que só vendo. Logan sentava-se na fileira ao lado da minha, duas mesas à frente, e olhava pra mim por cima do ombro com aqueles olhos azuis claríssimos.

– Tive que misturar várias cores pra conseguir o tom certo dos olhos.

Lee fez que não com a cabeça.

– Se o John vir isso… Você sabe que ele morre de ciúmes do Logan.

– É só uma pintura!

– E se a Becky vir isso!? Cice, ela te mata!

Encolhi os ombros e cruzei os braços, decidida.

– Quero ver ela tentar.


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