Diário de Uma Semideusa escrita por Lúcia B Wolf


Capítulo 10
Coragem e Estupidez




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– Senhor? - Chamei. A forja ecoava com os sons dos martelos dos filhos de Hefesto, moldando o aço recém tirado do fogo. Não obtive resposta. – Senhor?! - Repeti um pouco mais alto, e os rapazes musculosos e de feições fechadas repreenderam-me com o olhar. Decidi que seria melhor sair dali.

Ao virar-me, porém, um grande centauro de pelo acastanhado estava de pé entre mim e a saída.

– Senhorita - disse Quíron. Engoli em seco devido ao susto. - Posso ajudar?

Fiz que não com a cabeça, sem saber muito bem como dizer.

– O senhor... já me ajudou muito. Só queria agradecer por tudo que fez por minha mãe e eu. - Quíron assentiu, quase sorrindo, e fez menção de sair. – Na verdade, senhor… - continuei, e ele voltou-se para mim - ainda tem algo que preciso saber. O que aconteceu ao orfanato depois que parti?

Ele suspirou, adquirindo uma expressão triste, da mesma forma que Logan fizera quando toquei no assunto.

– Suponho que já saiba sobre a proteção - fiz que sim. - Ela não existe mais.

– Então… o orfanato foi atacado?

– É possível.

Minha visão embaçou a medida que as lágrimas foram brotando.

– E se… e se eu fosse até lá…

– Você não sairá de Hogwarts - ele falou com voz firme. - Atrairá criaturas aonde quer que vá, e se o orfanato já tiver sido atacado não há nada que você possa fazer. Sinto muito, Cecília.

Foi como receber uma punhalada nas costas. As palavras pareceram se enrolar em minha garganta enquanto eu ficava cega pelas lágrimas. Não vi por onde passava quando sai correndo da forja, e só parei quando senti o calor do sol na pele. Sentei-me ao chão e abracei os joelhos, chorando, sem muita consciência do que acontecia ao meu redor.

Alguns minutos depois, alguém gentilmente tocou meu braço. Levantei a cabeça e deparei-me com os cabelos de algodão-doce de Lee Campbell, que secou minhas bochechas sem fazer perguntas.

***

Meu irmão e eu entramos juntos na sala de aula de Mitologia, eu ainda com os olhos inchados pelo choro. Quíron estava de pé na frente da classe, lendo distraidamente alguns pergaminhos enquanto os alunos ocupavam seus lugares. Olhando para ele ali, daquele jeito indiferente, minha tristeza passou. Foi substituída pela raiva.

O centauro não tardou a começar sua aula, mas eu não prestava a menor atenção. Minha mente trabalhava rápido, tentando processar tudo o que ouvira nos últimos dias. Logan dissera que eu era especial e que por isso, Quíron ficara de olho em mim durante toda a minha vida. Também por isso o orfanato e a casa de minha mãe tinham recebido um tipo de proteção de Apolo, mas de algum modo uma fúria conseguiu quebrá-la. Agora, ao que tudo indicava, o orfanato fora atacado quando me mudei, e só Hades para saber o que aconteceu à Irmã Lorelai e aos órfãos. Se Apolo não nos tivesse abandonado, pensei amargamente, nada disso teria acontecido. Foi então que me lembrei de algo.

Levantei a mão, atraindo o olhar do professor e dos alunos. Quíron interrompeu sua fala sobre os titãs e ergueu uma sobrancelha. Aproveitei a deixa.

– Senhor, fale sobre a última Guerra do Olimpo.

Seu rosto tomou uma expressão impaciente.

– Já tivemos uma aula sobre isso.

– Mas nós não sabemos o suficiente.

– Já disse tudo o que precisam saber.

– Não disse não. Desculpe, senhor, mas essa guerra nos afetou diretamente, e a única coisa que sabemos é que, por causa dela, Zeus decretou que os deuses deixassem a Terra e abandonassem mulheres grávidas indefesas para morrer! Ele abandonou o próprio filho, e Norma pagou com a vida para que Logan sobrevivesse! - Só tive certeza daquilo quando as palavras me escapuliram aos berros. - Tantas pessoas inocentes morreram por causa dessa maldita guerra. Nós temos o direito de saber o porquê.

A sala mergulhou num silêncio ensurdecedor. Quíron me olhava sem admitir nenhuma expressão, e fiz o melhor que pude para sustentar seu olhar sem pestanejar. Era realmente uma sorte que a aula de Mitologia não era compartilhada com os alunos da Sonserina. Depois de quase uma eternidade - ou foi o que pareceu -, Quíron disse:

– É preciso ser muito corajoso ou muito estúpido para me enfrentar desse jeito, senhorita Guérisser. Qual dos dois você é?

Engoli em seco, e já me preparei para juntar minhas coisas e sair da sala - e da escola, imaginando que seria expulsa - quando ele continuou.

***

Logan Dempsey nasceu e cresceu em Long Island, EUA. Sua mãe, Norma Jeane Dempsey, era uma advogada bem-sucedida e de coração bondoso, além de ser muito bonita com seu cabelo loiro curto e olhos azuis. Era fácil perceber porque ela fora a única mulher de sua geração a carregar um filho de Zeus no ventre. Mais que isso: Arthur (o nome humano escolhido por Zeus) e Norma se apaixonaram.

Zeus se dedicava à ela de uma forma como nunca fizera antes, e seus deveres como Soberano do Monte Olimpo pareciam não ter mais importância. Os demais olimpianos se aproveitaram da negligência de Zeus para travarem suas guerras, e o Olimpo foi à loucura. Hera pagou pela ausência do marido com a própria vida.

Apenas com a morte de sua esposa Zeus se deu conta do erro, e voltou para seu trono no Olimpo. Quando Logan nasceu, apenas alguns meses depois, Zeus já não visitava Norma. Não tardou para que as fúrias encontrassem o bebê de apenas um mês, e assim como Carmem, a mãe de Cecília, Norma morreu para que seu filho vivesse.

Zeus se culpou pela morte da mulher, e jamais se perdoou por não ter estado lá para defendê-la. Mandou que Quíron cuidasse de Logan, e decretou que deuses jamais desceriam à Terra e se relacionariam com humanos novamente.

Logan, então, foi levado por Quíron para o Acampamento Meio-Sangue, em Montauk, Long Island. Cresceu ali ciente de quem era e da verdade sobre seus pais, aprendendo a lutar e vendo seus poderes ficarem cada vez mais fortes e perigosos. Apesar de todo o treinamento, ele mal conseguia controlá-los.

Alguns anos depois, Quíron recebeu mais uma ordem olimpiana: ficar de olho numa certa garotinha ruiva, que se mostrara muito encrenqueira e estava chamando muita atenção. Com seu mentor cada vez menos presente e seus poderes crescendo cada vez mais, Logan causava mais acidentes que qualquer outro semideus no Acampamento. Preocupado, Quíron decidiu que o levaria em suas viagens até a garota.

As viagens estavam ficando mais longas, e Logan quase não retornava à Long Island. Até que um dia, ele não retornou mais. Quíron decidiu que ficaria permanentemente em Londres, Inglaterra, e Logan ficaria em Hogwarts até que a missão de manter a menina a salvo estivesse cumprida. Mas semideuses nunca estão a salvo, e tanto Quíron quanto Logan sabiam disso.

Apesar de ainda não ter idade suficiente para se matricular em Hogwarts, ele poderia morar e treinar lá o tempo que fosse necessário. Logan morou na escola de magia e treinamento por um ano, até que Quíron lhe passou a missão de ficar de olho na garota. Ela estava matriculada num colégio para pessoas especiais, e ele seria transferido para lá também.

Logan havia abandonado sua namorada, sua casa e seus amigos nos Estados Unidos por causa dessa garota. Agora, estava deixando sua nova casa, seus novos amigos e seu treinamento por causa dessa garota mais uma vez. Ele não queria ir, não queria ser babá de uma pirralha. Logan já a odiava por tê-lo feito abandonar tudo.

Alguns meses depois, porém, aquela pirralha se tornou sua melhor amiga.

***

Já era quase meia-noite, mas John e eu estávamos muito bem acordados na Sala Comunal da Grifinória. Dividíamos a poltrona que ficava perto da porta para que pudéssemos ouvir caso alguém passasse pelo quadro da Mulher Gorda. Por sorte ninguém se deu ao trabalho. Caso contrário, garanto que não teríamos ouvido.

Seus lábios carnudos só desgrudaram dos meus para beijar minha bochecha, descendo para o pescoço, até que senti sua mão tocar meu ombro esquerdo por baixo da blusa. Um calafrio subiu pela minha espinha, e empurrei John rapidamente.

– O que foi? - Ele perguntou, confuso. Senti uma pontada de alívio: ele não percebera minha cicatriz. - O que foi, Cice?

Abaixei a cabeça, segurando o medalhão de ouro entre os dedos. Está faltando alguma coisa.

– Você não quer, é isso? - Ele continuou. Você sabe o que está faltando.

Lentamente e sem encará-lo, fiz que não com a cabeça.

John hesitou alguns segundos antes de passar o braço por meus ombros, e beijou ternamente minha cabeça.

– Está tudo bem, ruiva.

Só que não estava.

***

– Caraca, não sei como cê consegue.

– Consigo o quê?

– Ficar com a cara virada pro sol desse jeito!

O sol naquele dia brilhava como se sorrisse, mesmo estando solitário no céu azul. “Apolo está feliz hoje!”, dizia meu irmão, Lorenzo, sempre que o dia estava bonito.

– Gosto de ver o sol bonito assim - respondi, ainda olhando para o céu. Emily e eu atravessávamos os jardins para o treino do dia, e levei alguns tropeços antes que o arsenal fizesse sombra em nós.

Finalmente abaixei a cabeça e vi Logan escorado na entrada do arsenal, de braços cruzados, observando um duelo entre dois filhos de Ares. Não levou mais que meio segundo até nossos olhares se cruzarem. Ele acenou com a cabeça, me chamando.

– Não está se esquecendo de nada? - Perguntou quando me aproximei. Franzi a testa e fiz que não com a cabeça.

– De novo com espadas, né?

– Óbvio. Já te falei que todo semideus deve aprender a esgrimir.

Suspirei. Lee e eu já treinávamos arco-e-flecha com alvos móveis, o que eu adorava. Sem contar que espadas não eram o meu ponto forte. Lancei um olhar sobre o ombro e vi Lee fazendo que sim com a cabeça para mim. Voltei-me para Logan, que já estava impaciente.

– Está bem.

– Vamos continuar com as espadas de madeira, pra melhorar seus ataques.

– Eu vou treinar com você - continuei, - se você treinar arco-e-flecha comigo.

Ele ergueu uma sobrancelha.

– Como é?

– Você me ouviu. Nosso próximo treino vai ser com arcos.

Enfrentei seu olhar sem vacilar. Ele levou a mão ao cabelo, balançou a cabeça e disse, por fim:

– Mesmo assim nós vamos continuar com as espadas, e você vai parar de reclamar.

– É uma promessa - respondi, sorrindo.

Log assentiu com um meio sorriso antes de adentrar o arsenal. Pegamos as espadas de madeira e fomos para os fundos, onde poderíamos treinar sem ter de enfrentar olhares curiosos.

– Ataque! - Disse Logan com a voz firme, e assim fiz. Já não era tão ruim quanto da primeira vez que treinamos, mas ainda assim ele parava todos os meus ataques sem nenhuma dificuldade. Parecia saber exatamente onde eu iria colocar a espada.

– Você sempre olha pra onde vai atacar antes de fazê-lo - Log falou como se pudesse ler meus pensamentos. - Assim fica fácil para bloquear.

– Mas como vou atacar sem olhar?! - Perguntei, contrariada.

– Prática - respondeu ele, com o olhar gélido fixo no meu enquanto contra-atacava. Um de seus ataques parou em minha perna, com força suficiente para deixar roxo.

– AI! - Gritei, largando a espada e segurando a perna dolorida com as duas mãos.

– Pega logo essa espada e venha dar o troco!

Abaixei-me para pegar a arma com um suspiro cansado, e vi que algumas pessoas se aproximavam para ver a luta. Tentei não deixar que aquilo me distraísse. Com a espada empunhada novamente, avancei contra Logan, que me olhava com um sorriso frio, desafiador.

Ataquei com mais vigor. Percebi que ele fazia um pouquinho a mais de esforço para me bloquear, e até consegui parar alguns de seus golpes. Por reflexo ou sorte, talvez os dois. Minha respiração já estava ofegante e uma gota de suor escorria pela minha nuca.

– LOGAN! - O grito de Becky pegou nós dois de surpresa. Ele parou meu último golpe e segurou a ponta de minha espada, enquanto Becky continuava a gritar. - Logan! Nós íamos treinar juntos hoje!

– Mais tarde - respondeu ele, rangindo os dentes. - Se você não percebeu, estou ocupado agora.

Ela franziu a boca e voltou os olhos azuis para mim. Tinha os cabelos castanhos presos num rabo-de-cavalo, e segurava uma espada curta.

– Vou treinar com ela, então.

Gelei.

– Não - a voz de Logan soou como um trovão. - Você cresceu treinando, Becky, ela começou agora. Pare com essa palhaçada.

A moça deu de ombros. – Então ela precisa de uma boa professora.

Log passou a mão pelo cabelo, contendo a raiva, e Becky me olhava como um leão olha para um cordeiro. Me senti um lixo.

– Vamos logo com isso, então - falei. Não ia me passar por covarde na frente de todo mundo, não ia entregar a vitória de bandeja para ela, e não ia ser o cordeiro.

Logan segurou meu braço com força.

O quê?

– Eu vou lutar com ela! - Tentei me soltar, mas seu aperto não afrouxou. - Logan, é só um treino. Eu já esperava por isso.

Ele hesitou por dois segundos, tempo mais que suficiente para que eu me livrasse de seus dedos. Fui em direção às espadas de aço e peguei a menor de todas. Becky e eu vestimos uma semi-armadura leve enquanto o público ia aumentando.

Ela já empunhava sua espada e, quando me preparei, atacou.

Becky não era tão boa quanto Logan, tampouco tão ruim quanto eu. Atacava por todos os lados, e por várias vezes sua espada acertou minha armadura. Eu, porém, estava determinada a não perder para ela e me concentrei em parar seus golpes. Quanto mais a bloqueava, mais Becky ficava impaciente. Dobrou o ritmo e a força de seus golpes, de modo que fui andando pra trás enquanto tentava bloqueá-los. Até que, por fim, ela bateu o punho da espada em minha mão direita com força. Girei enquanto caía, e a espada descontrolada em minha mão perfurou quem estava mais perto.

Logan.


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