Em Família escrita por Aline Herondale


Capítulo 19
Mau Tempo


Notas iniciais do capítulo

Me desculpem pela demora. Pretendo que isso nunca mais aconteça.
Espero que gostem.



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Ridiculamente, adocei. E sem saber o porquê.

Banhos de chuva, caminhar na mata de madrugada vestindo poucas roupas e dormi tarde não são nada comparado às horas sem comida e bebida que eu passava com o meu pai, quando caçávamos. Talvez fosse mais uma coisa sobre mim que eu nunca entenderia; que as aberrações adoecem sem motivo.

Precisei de dois dias para conseguir respirar direito e engolir sólidos. Minha mãe culpou o mal tempo e eu me culpei.

Porem o que mais me preocupou foi a fato de eu faltar às aulas. Não que eu precisasse assisti-las – já havia passado de ano sem precisar fazer as provas finais – mas pela coincidentemente eu ter sido a última pessoa com quem Whip fora visto pela última vez. Vivo. Eu seria a única pessoa da escola inteira que saberia dizer exatamente o que aconteceu com Whip. Obviamente algumas pessoas – seus amigos mais próximos – se questionavam aonde ele estava e bem provável que seus pais já tivessem acionado a polícia, e eu sabia que seria uma questão de tempo até alguma viatura parar em frente à mansão.

Respirei fundo e tentei afastar as suposições que se acumularam na minha cabeça e comecei a tocar. Já fazia dias que eu não tocava e hoje eu decidira preencher a casa com algum som. Era final de semana e mamãe havia ido à cidade para andar entre as lojas e comprar outra peça de roupa. Eu, estando doente, ela se quer havia tido o trabalho de me convidar, mesmo sabendo que eu diria a mesma resposta de todos os anos.

– Yann Tiersen. Boa escolha. – Uma voz forte soou no cômodo ao lado. Não me dei o trabalho de virar a cabeça, apenas continuei tocando.

Charlie deu mais alguns passos e se sentou na poltrona que havia no canto daquela sala. Pelo canto do olho o vi cruzar as pernas e levar os dedos de uma mãos aos lábios.

Somente uma vez virei para olhá-lo e ele tinha os dedos roçando nos lábios, me encarou da forma intensa que sempre fazia. Tornei olhar para as teclas e não desviei meus olhos mais de lá.

Me concentrei para certificar de não errar nada e quanto terminei o ato olhei reto, inspirando fundo, um pouco cansada.

– Você toca muito bem. – Ele disse depois de um tempo. – Gostaria de fazer um dueto?

– Não. – Respondi rápido demais, virando o rosto mas sem olhá-lo. O escutei abafar um riso.

– Aceita uma xícara de chá?

Foi inevitável. Precisei fitá-lo após essa pergunta. Eu sabia que Charlie era um tanto quanto atrevido – do seu modo – mas no decorrer da semana que fiquei doente o almoço e jantar da casa haviam, estranhamente, se concentraram em apenas pratos líquidos. E eu estava com tanta dor de cabeça que nem a suposição de alguém estar interferindo na cozinha durante esse tempo me veio em mente. Só agradeci a coincidência e ainda assim conseguia comer pouco das refeições. Por conta dos remédios eu dormia muito durante o dia também, e sempre que acordava havia uma bandeja de prata com uma xícara de porcelana com chá, sobre minha escrivaninha. Todo dia um sabor diferente e nos últimos dias ele vira acompanhado de uma bolacha doce, a qual comida bebericando o delicioso chá.

Acreditava estar sendo mimada pelas funcionárias da mansão. E se a Senhora Deville estivesse viva eu teria certeza de que tudo era feito por ela.

Mas no fim fora ele. Sempre fora ele.

Não respondi a pergunta.

Quando tomei a atitude errada de levantar meus olhos, não pude desviar dos deles e não consegui pensar. Seus olhos cinzentos haviam tomado uma cor de um azul límpido e eu estava fadada a encará-los sem escrúpulo ou discrição.

– Senhorita Evie. – Uma funcionária que ainda estava na mansão chamou do outro lado da sala. Tomei um susto e abaixei a cabeça, piscando freneticamente.

– Sim?

– Com licença... – Ela deu uma olhada para onde Charlie estava, então abaixou a cabeça e mexeu os papéis que tinha em mãos. – há algumas contas que sua mãe deixou de pagar e...bem...vencem hoje então...pensei em avisá-la.

Não era uma novidade mamãe esquecer de pagar algo aqui ou ali. Quando isso acontecia papai era o responsável em se certificar que, dessa vez, nada ficasse faltando. Mas, bem. Papai não estava mais lá.

Me levantei do banco do piano e andei até a funcionária, pegando os papéis da sua mão.

Conta de água, do plano de saúde, duas multas e uma caridade para a igreja local. Não era muita coisa, afinal.

– Obrigado. – Disse e ela me mostrou um pequeno sorriso antes de se virar e ir embora.

Me virei e imediatamente dei um passo para trás, tomando um grande gole de ar. Charlie estava a centímetros das minhas costas.

– Posso levá-la para pagar todas. Se quiser. – Acrescentou falando devagar.

O fuzilei irritada

– Não precisa, obrigado. – E o contornei, caminhando para subir as escadas.

Coloquei um vestido rosa bebê de alças finas com as bordas de renda francesa e fiz uma trança de peixe. Calcei meus oxfords preto com branco e peguei minha bolsa transversal marrom.

Desci as escadas deslizando os dedos pelo corrimão e arrisquei olhar para a sala.

Ele não estava lá.

Abri a porta e a tranquei ao sair.

Estava terminando de rodear a casa quando Charlie entrou na minha nvisão.Ele estava ma mesma posição em que ficava na porta da minha escola, com as mãos nos bolsos da sua calça de linho, usando seu Club Master preto. O conversível estava atravessado no meio do caminho de terra.

– Vamos? – Tinha um sorriso no rosto.

– Estarei esperando aqui. – Charlie avisou antes de eu sair do conversível para subir a rua até o banco. Já havíamos passado pela igreja, onde eu havia deixado com o padre a quantia doada todo mês pela minha e seguimos para a cidade. Andei rápido e só relaxei os ombros quando virei a esquina, ficando fora do campo de visão do meu tio.

O banco estava relativamente cheio e não tive pressa em apertar os botões ou reiniciar outra sessão. Quando terminei de pagar tudo guardei o cartão e minha carteira na bolsa e enfiei as contas pagas de qualquer jeito.

Mesmo sendo quase seis horas o sol ainda estava quente então decidi comprar um chá gelado.

Que se dane minha garganta.

O único empório não ficava longe e andei olhando as vitrines das lojas até chegar lá. Peguei um chá sabor pêssego e o abri na mesma hora.

– Olha só quem está aqui.. - Escutei quando olhava as prateleiras de geléia. Engoli meu chá e torci o pescoço para minhas costas.

Pette e outros três amigos – provavelmente os mesmos que eu vira no outro dia – me olhavam com um sorriso idiota no rosto. Todos estavam de bermudas e chinelas. Provavelmente vindo da praia.

– A aberração decidiu sair da caverna? – Pette provocou mas eu tornei a olhar para frente, ignorando-o.

– Acho que ela te ignorou, cara. – Escutei um de seus amigos dizer e me permiti sorrir escondida.

– Ela não faria isso. Não com essa saia, ah? – De repente senti alguém levantar a barra do meu vestido. Imediatamente levei minha mão para abaixá-la mas já era tarde. Bem provável que alguém havia visto algo. E minhas dúvidas foram tiradas quando Pette e seus amigos começaram a rir.

– Cara você viu aquilo? Parece de vovó. – Um deles disse em meio aos risos, o que só fez com que todos rissem mais e mais alto.

Estranhamente aquilo fez algo se mexer dentro de mim. Uma fúria me apossou e eu me virei para encará-lo furiosa. Eles estavam ocupados demais rindo para perceber o olhar mortal com que os fitava e esperei pacientemente enquanto seus risos cessavam. Fiquei passando a mão freneticamente no local que eles haviam levantado meu vestido.

Pette limpou uma lágrima que escorria na sua bochecha e me olhou.

– O que foi? Ficou magoada? Não se preocupe não vamos contar a ninguém.. Talvez.

Apertei os olhos e respirei fundo para não perder as estribeiras. Quando cansaram de caçoar do meu embaraço simplesmente foram embora me chamando por apelidos medíocres.

Fui para a fila e paguei pelo chá.

Assim que saí do empório Charlie entrou no meu campo de visão. Quero dizer, seu conversível azul Royal. Ele me esperava na mesma posição que o encontrara mais cedo, porém quando me viu caminhou até mim.

Mesmo com ele usando seus óculos fitei suas lentes pretas e o vi parar colado à mim para então retirar uma mão do bolso e revelar uma caixinha branca enrolada numa fita cor de rosa.

Levantou-a na altura dos meus olhos.

Olhei para o objeto e depois para suas lentes negras novamente.

– Para você. – Ele disse com um sorriso no rosto e puxou a fita e levantou a tampa para mim. Dentro havia um grampo prateado com a imagem de uma beija-flor, incrustado de pedras roxas. Mesmo que pequeno era lindo e brilhava escandalosamente sobre a luz do sol.

Sem pedir licença Charlie pegou o grampo de dentro da caixa e prendeu na lateral da minha cabeça, pegou a fita que viera enrolada na caixinha e a amarrou na ponta da minha trança que estava sobre meu ombro. Depois simplesmente sorriu e ficou ali, ao meu lado, sorrindo para mim.

– Aconteceu algo? – Perguntou quando beberiquei meu chá, fingindo não estar desconfortável com sua aproximação. Abaixei a cabeça e olhei para a lata nas minhas mãos.

–Não. – Menti. Meu rosto ainda devia ter sinais da raiva que eu estava de Pette.

Passaram alguns segundos silenciosos e dei mais um gole na lata.

– Ele devia saber que não pode mexer com você. – Levantei minha cabeça rapidamente e olhei suas lentes negras. Não me impressionaria o fato de Charlie ter visto o que aconteceu dentro do empório mas...Teria algo que ele não saberia?! Me peguei desejando Charlie estar sem aqueles óculos. – Aposto que ainda tem aquele lápis para lembrá-lo. – Charlie falou arrastando as palavras e depois levantou um dos cantos dos lábios. Entrou no carro e o ligou.

Olhei para a fita amarrada na minha trança e depois engoli seco, suspirando fundo duas vezes.

Terminei de beber meu chá e entrei no conversível azul Royal que me esperava.


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Notas finais do capítulo

NÃO DEIXEM DE COMENTAR O QUE ACHARAM, POR FAVOR, É IMPORTANTE.
XOXO