Divergente - por Tobias Eaton escrita por Willie Mellark, Anníssima


Capítulo 24
Capítulo 24


Notas iniciais do capítulo

Em primeiro lugar, desculpas pela demora, mas é que o tempo tá corrido.

Vcs foram incríveis comentando e, nossa!, as três recomendações que tivemos foram a cereja do bolo e a explosão de fofura que fez os corações da Willy e o meu baterem mais fortes!!! Muito Obrigada ThamyLomiel, Sarah e LayHerondale, mas como prova de nossa imensa alegria e gratidão, cliquem nas letras azuis logo abaixo.



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Assim que a simulação é encerrada, Tris se abaixa e percorre as mãos pelo seu corpo a fim de se certificar de que tudo que teve de enfrentar em sua paisagem do medo não lhe causou danos físicos. Isto é comum até para ela que é divergente. Tudo dentro daquela sala parece ser tão real que não me admira que ela esteja tremendo e com os músculos tensionados. Eu, por outro lado, estou relaxado e quase confortável recostado na beirada da porta a observando.

Verifico o relógio e constato que menos de dois minutos se passaram e ela já está fora da sua paisagem. Sete medos é a constatação de que ela é a mais corajosa dentre os iniciandos. Pensando bem, ela poderia muito bem ser definida como a pessoa mais corajosa que conheço.

Sei que o fato dela ser destemida nada tem haver com minha instrução durante esses dias, mesmo assim, não posso deixar de sentir uma ponta de orgulho pela minha garota.

Acompanho os outros líderes e adentramos a sala. Por mais que eu tente ficar impassível, não consigo tirar o relutante sorriso de meu rosto por conta dos únicos sete medos que ela teve de enfrentar. Apenas três a mais que eu.

Contudo, ainda penso sobre aquele medo que fizeram os líderes rirem jocosamente diante do que viam. O que poderia ser tão engraçado? Quando eu tiver uma oportunidade eu lhe perguntarei ou ela mesma me contará. Afinal, ela sabe todos meus medos. Não haveria mal algum que ela me contasse os seus, considerando que muitos eu já presenciei quando lhe administrei as simulações.

Tris ainda está na defensiva e nos recebe com marcas quase invisíveis de lágrimas em seu rosto. Por isso, assim que seus olhos encontram os meus eu sorrio para ela como forma de garanti-la de que está tudo bem agora.

"Parabéns, Tris." - Eric diz. - "Você completou sua avaliação final."

Sim, eu penso, como se você estivesse realmente satisfeito que outro careta tenha ficado tão bem colocado no Destemor.

"Obrigada." - ela responde de forma contida.

"Tem mais uma coisa antes que você possa ir se aprontar para o banquete de boas-vindas." - ele diz e acena para Sue que lhe entrega uma seringa idêntica àquelas que há que algumas horas atrás foi utilizada para aplicar rastreadores em todos os membros do Destemor.

Ainda me lembro da expressão de Zeke ao saber que todo o complexo precisava ser inoculado com rastreadores enviados hoje mais cedo pela Erudição. Estávamos todos no refeitório ainda rindo de Guigo, quando os lideres se levantaram e fizeram o comunicado de que todos deveriam se dirigir à enfermaria para que recebêssemos a dose.

Eu ainda pensei em questionar o porquê daquilo. Não me agradava nada que aplicassem em meu corpo, substâncias vindas da Erudição. A maior concessão que eu fazia era quanto ao soro da simulação para que pudesse atravessar minha paisagem do medo, mas eu sabia que não valeria a pena levantar este ponto e chamar a atenção de mais líderes. Já bastava Eric no meu calcanhar.

Passo a mão de leve no local onde recebi a dose da injeção e torno a me concentrar em Tris. Ela que já não estava em seu melhor dia, perde completamente a cor do rosto ao ouvir as palavras de Eric. Seu rosto é uma máscara de angústia e desconfiança.

"Pelo menos você não tem medo de agulhas." - Eric brinca com a sua expressão, tentando manter um clima descontraído. Como ele está diante de outros líderes mais velhos, não carrega sua voz com a arrogância e a hostilidade costumeiras. Mas este não é o único motivo pelo sorriso em seu rosto. Ele a recorda indiretamente que sabe cada um de seus medos. E esta é uma desvantagem para todos nós, já que o Destemor possui um banco de dados sobre todos os membros e as gravações das simulações são anexadas aos arquivos pessoais, de modo que nossos medos podem ser acessados sem muita dificuldade.

Nunca me agradou o fato de que os líderes ou pessoas que tenham algum conhecimento em computação pudessem acessar meus dados e conhecer minhas fraquezas...

"Isso irá injetar em você um dispositivo de rastreamento que será ativado apenas se você for dada como desaparecida. Só uma precaução." - A explicação paciente de Eric me tira dos meus pensamentos.

"Com que frequência as pessoas desaparecem?" - Tris o questiona.

"Não muita." - Eric sorri presunçosamente. - "Esse é um novo método, cortesia da Erudição. Injetamos em todos os membros durante o dia, e eu acredito que as demais facções terão feito o mesmo assim que possível." - Então todas as facções terão que usar rastreadores também? Eu não havia cogitado isto. Talvez a Erudição queira localizar os membros da Abnegação quando decidirem por em prática seus planos de guerra. É algo em que pensarei mais tarde.

"Tudo bem." - Tris responde visivelmente contrariada.

Observo seu rosto enquanto ele aplica. Ela está distante e perturbada e eu me pergunto se está assim pela paisagem do medo, por temer não ficar entre os primeiros colocados ou por causa da injeção que Eric lhe aplica.

"O banquete será em duas horas." - Ele diz assim que termina. - "Sua classificação e a dos demais iniciados, incluindo os nascidos Destemor, será anunciada durante ele. Boa sorte."

Todos os líderes acenam com a cabeça e se retiram da sala, mas ainda posso ver um sorriso de escárnio no rosto de Eric e traços risonhos em mais alguns, principalmente quando passam por mim. Ignoro-os e sinalizo para que Tris me acompanhe, e assim ela o faz. Pelo caminho encontramos vários membros do Destemor em festa. Todos estão alegres e comemorando. Eu mesmo estou alegre, uma coisa distinta do que eu estava acostumado durante meu ano nesta facção; e ao mesmo tempo comum nos últimos dias. Isso me faz sorrir com mais facilidade.

"Ouvi um rumor que você só enfrentou sete obstáculos." - Digo para acalma-la e para deixar bem clara minha admiração por seu feito. - "Praticamente inédito..."

"Você... você não estava assistindo a simulação?" - Ela pergunta receosa.

"Apenas nas telas. Os líderes do Destemor são os únicos que podem ver toda a simulação." - Contenho a curiosidade de que ela me conte sobre sua paisagem do medo e rapidamente acrescento. - "Eles pareceram impressionados."

"Bem, sete medos não é tão impressionante quanto quatro." - Ela compara seu número ao meu, o que não deveria já que todos os demais membros não possuem menos que uma dezena de medos. - "Mas deve bastar." - Conclui.

"Vou ficar surpreso se você não estiver classificada em primeiro lugar." - Não disfarço minha satisfação pela sua bravura. Agora as outras pessoas saberiam, como eu, que ela é corajosa e digna do Destemor.

Ao passarmos pelo salão de vidro, Tris era recebida com vivas, apertos de mãos e até empurrões leves enquanto os membros lhes gritavam um parabéns e era impossível que ela não se alegrasse com isto. Pude notar um sorriso se espalhar pelo seu rosto e como se fosse contagioso, eu sorri também.

"Tenho uma pergunta." - Ela fala e percebo que a pele ao redor de seus olhos está levemente repuxada como um indicativo de tensão. - "Quanto eles contaram a você sobre a minha paisagem do medo?"

"Nada, na verdade. Por quê?" - Eu pergunto com uma leve insegurança. Era impossível não notar que havia uma coisa em sua simulação que a deixou tensa e ao que parecia ela temia que eu soubesse.

"Por nada." - Ela finaliza. Analiso seu rosto e tento identificar seu tom, associando-o automaticamente com vergonha e timidez, mas posso estar enganado.

Não quero me despedir dela agora e ainda quero que ela me conte sobre sua simulação...

"Você precisa voltar para o dormitório?" - Pergunto tentando ser casual.– "Porque se você quiser paz e silêncio, pode ficar comigo até a hora do banquete." - Ela parece travar um pequeno conflito interno. Seu rosto vai da confusão à agonia e eu fico confuso. - "O que foi?"

"Vamos lá." - Ela diz e eu entrelaço meus dedos aos dela e a guio até meu quarto. Esperava que no trajeto ela contasse algo sobre sua simulação, mas nosso caminho foi tão silencioso quanto os nossos passos.

Entro em meu quarto depois dela e fecho a porta. Eu me recordo de que a última vez que Tris esteve aqui não foi bem para um encontro romântico. Na verdade, da minha parte, não houve nada além da raiva pungente de ter a garota de quem gosto em meu quarto para que não precisasse voltar para o dormitório e dividir o mesmo espaço com os imbecis que a encurralaram e a machucaram. Só de pensar nisso eu lembro também das suas palavras. "Eles me tocaram", foi o que ela disse, mas tão rápido quanto estes pensamentos surgiram, eu os afastei para longe porque aqui e agora teremos um tempo para ficarmos juntos e é melhor não maculá-lo com fatos passados.

Tiro meus sapatos e viro para ela, um pouco desorientado sobre o que poderíamos fazer enquanto não chega o momento de nos encaminharmos para o banquete.

"Quer água?" - Eu pergunto tolamente.

"Não, obrigada." - Ela está o oposto da garota de ontem. Tris está fria e totalmente distante. Talvez seja efeito da simulação, o medo de não ficar no complexo ou quem sabe esse quarto lhe traga recordações ruins como as que eu mesmo tive.

"Você está bem?" - Queria saber o que a incomoda, mas não tenho uma forma de obriga-la a me dizer.

Contorno as maçãs de seu rosto com as pontas dos meus dedos e sinto a intensa energia que atravessa meu corpo todas as vezes em que a toco. Deixo minha mão seguir em direção ao seu cabelo comprido e sorrio pensando em quantas vezes desejei poder tocar sua pele e seus cabelos. Fazer isto agora é um alívio já que grande parte dos desejos que eu tive até hoje foram reprimidos.

Traço um caminho imaginário até seu pescoço e me inclino para beijá-la. Com o corpo relaxado e o coração batendo freneticamente, um denso calor começa a mover-se devagar do centro para as extremidades do meu corpo, dilatando-se para a superfície como pequenas faíscas crepitando em nossos lábios unidos. A sensação não foi menos que incrível.

A realidade é que a minha vida inteira quis ser forte e aceito. Durante tanto tempo fui reduzido a um nada na Abnegação que passei a acreditar nisso. Já não tinha Evelyn por perto e Marcus, embora fosse meu pai, era também "o homem cujos punhos eu conhecia melhor que o abraço." Lutei contra as demonstrações de afeto de July e de outras garotas aleatórias, em encontros em grupo sem nenhuma importância, porque não era o carinho e toque delas que eu queria, mesmo que eu ainda não soubesse de quem seria.

Tris é a única que me acalma com seus lábios ao ponto de me fazer sentir como se pudesse flutuar. Contrariamente, isso não basta. Eu quero sentir mais dela, percorrer minhas mãos por seus braços, beijar suas tatuagens. É tudo tão poderoso e inexplicavelmente absurdo; ao mesmo tempo que parece não ser o suficiente. No fundo sei o que só quero sentir sua pele, como na noite anterior. Então, deslizo sua jaqueta pelos seus ombros e assim que ela toca o chão, todo o corpo de Tris retesa. Ela me empurra bruscamente e leva suas mãos para com elas esconder o rosto.

Eu não entendo. Já estivemos sozinhos antes e ela nunca teve uma reação como esta. Nem mesmo quando a gente se beijou pela primeira vez e olha que naquele dia eu estava certo de que ela não aceitaria meus gestos e nem me corresponderia. Por que agora que estávamos bem pelo menos era o que pensava até agora ela me rejeita? Inúmeras coisas passam pela minha mente. Ela pode ter se arrependido; não gostar mais mim, se é que chegou a gostar de verdade. Nenhuma das hipóteses que eu levantava eram capazes de me trazer alento.

"O que foi? O que tem de errado?" - Eu pergunto e ela balança negativamente a cabeça.

O que eu fiz de errado? Eu a chateei de alguma forma?

Minha mente gira como um carrossel confuso e o medo de ter feito algo errado a ponto de afastá-la ou de que ela não me queira mais faz com que o fogo prazeroso de antes se amalgamasse aos poucos em uma raiva instintiva.

"Não me diga que não é nada." - Sei que a frase soou rude, mas estou desesperado pela rejeição. Há pouco tempo a conheço e menos tempo ainda estamos juntos, mas sequer consigo cogitar que ela também não me queira. Tris é diferente e especial e talvez eu não a mereça, mas ela não pode simplesmente me deixar... Agarro seus braços de forma impulsiva.

"Ei. Olhe para mim." - Eu peço nervoso.

Ela se endireita e me encara.

"Algumas vezes eu me pergunto..." - ela começa. - "O que você ganha com isso. Isso... seja lá o que isso for."

Ela rompe o silêncio e suas palavras me atingem como um estalido de chicote.

"O que eu ganho com isso." - Não é uma pergunta. Repito apenas para tentar entender o que aquela sentença teria querido dizer.

O que, inferno, ela pensa que eu ganharei ficando com ela?

Desde que esta garota chegou aqui e mudou todas as fundações nas quais eu havia construído minha nova vida no Destemor - em um trabalho quase que metalúrgico -, eu tenho tentado demonstrar que me preocupo com sua segurança e bem-estar. O carinho íntimo que trocamos é a complementaridade e não a única coisa que importa em nossa relação. O meu gostar dela tem muito mais haver com o fato de que perto dela eu me sinto em casa. Fosse como parte desta facção ou de qualquer outro lugar para onde ela quisesse ir.

Apesar dos ensinamentos em comum, tínhamos tidos vidas diferentes. Ela, filha e irmã amada. Eu, um órfão rejeitado. Ainda assim, desde as primeiras vezes em que a vi senti como se falássemos a mesma língua e nos entendêssemos sem muito esforço porque era algo natural. O mesmo molde para uma forma de pensar, falar e agir. Temos uma familiaridade que não faz sentido com o curto período em que nos conhecemos e jamais poderia supor que ela a associasse com algum interesse escuso e impuro meu para com ela.

Eu me afasto dela porque o que antes era medo e preocupação transmutou-se novamente em raiva e estarmos próximos não ajudará em nada.

"Você é uma idiota, Tris."

Sim, uma idiota. E eu sinto tanta raiva de você neste momento que quase preferiria que nunca a tivesse visto ou que estes sentimentos jamais tivessem sidos direcionados à você, se pensa que só quero me aproveitar de uma das minhas iniciandas.

"Eu não sou uma idiota. É por isso que eu sei como isso é estranho, de todas as garotas que você poderia escolher você escolhe a mim. Então, se você está só procurando por... você sabe... aquilo...." - Ela diz e abaixa a cabeça envergonhada com o que ela acredito que quero dela. Eu concluo por conta própria o que ela pretenderia apontar ao final de sua frase e isto apenas atiça mais a minha raiva.

"O que? Sexo?... Você sabe que se isso fosse tudo que eu quisesse você não seria a primeira pessoa que eu procuraria." - Despejo tudo de uma vez e depois me arrependo. Não por não ser verdade, mas porque ela se encolheu envergonhada.

No Destemor eles não possuem regras sobre abraços, beijos e até mesmo sexo antes do casamento como acontece na Abnegação. A única lição que nos dão é sobre o uso correto de proteção para que as pessoas possam ter relações sexuais despreocupadamente. Eu poderia ter tido encontros íntimos com algumas garotas que Zeke me arranjava, mas eu nunca achei certo usar o corpo delas e o meu também sem que houvesse sentimentos envolvidos.

Tris exibia um semblante magoado e quando olhei para ela, desviou o olhar para a parede ao meu lado, recusando-se a me fitar. Eu não pretendia feri-la, ainda que ela tivesse feito exatamente isso comigo ao me revelar sua desconfiança.

Depois de alguns instantes ela me encara novamente, o que quebra meu coração. Ela estava triste e eu queria poder recolher minhas palavras.

"Eu vou sair agora." - Ela vira-se em direção à porta.

"Não, Tris." - Seguro seu pulso e ela me empurra para se livrar do meu aperto, mas sou mais rápido e seguro seu outro braço trazendo-a de volta para mim.

De onde jamais ela deveria ter saído não fosse esta discussão estupida.

"Sinto muito por ter dito isso. O que eu quis dizer é que você não é igual às outras. O que eu sabia quando a conheci."

Meu Deus! É claro que eu não esperava que as coisas caminhassem assim tão rapidamente para ela. Nem eu sei muito bem o que faço quando estamos juntos. Não é como se eu passasse minhas noites em claro pensando em formas de seduzi-la e trazê-la para o meu quarto...

"Você era um dos obstáculos na minha paisagem do medo... Você sabia disso?" - Ela me diz e isto consegue me chocar ainda mais.

"O quê?" - Solto-a rapidamente. Estas palavras são piores do que o tapa do outro dia. - "Você tem medo de mim?"

"Não de você. De estar com você... com qualquer um. Nunca me envolvi com ninguém antes, e... você é mais velho e eu não sei quais são suas expectativas e...."

"Tris." - Eu a corto antes que ela prosseguisse. - "Eu não sei que tipo ilusão você criou, mas isso é novo para mim também."

Não vou negar que isto me deixa um pouco aliviado. Não é que ela não me queira ou que tenha medo de mim. Ela se sente insegura, assim como eu, com a forma com o que nossos sentimentos estão conduzindo nossas ações. O real medo era de não ser boa o suficiente ou não corresponder minhas supostas expectativas.

Eu entendo que deve ser diferente para ela porque apesar das coisas que temos em comum ela é mais nova e uma garota. Além disso, poucas semanas atrás ela obedecia fielmente os preceitos da nossa antiga facção enquanto há mais de um ano eu experimento a liberdade do Destemor. De alguma forma, a batalha que ela trava é maior que a minha, mas não posso acreditar que a intensidade dos sentimentos dela sejam semelhantes ou maiores aos que eu vivencio.

"Ilusão?" - Ela repete. - "Você quer dizer que você nunca..." - Então ela levanta as sobrancelhas em um pedido mudo para que eu lhe confirmasse aquilo que ela tinha deduzido por conta própria. Tris está um pouco corada, mas não deve chegar perto da vermelhidão que provavelmente tinge meu rosto dado ao quanto eu sinto minhas bochechas queimando. É como se todo o sangue do meu corpo resolvesse fluir para pintar minha face de escarlate.

Entretanto, se eu quero que ela se abra comigo sobre tudo, devo fazer o mesmo. A confiança deve ser mutua.

"Oh. Oh. Eu só presumi... Hum... Você sabe." - Os olhos dela brilhavam mais do que qualquer outra coisa que eu já tinha visto na vida. Indícios de lágrimas no canto deles a deixavam um pouco vulnerável e ainda mais bela. Nunca vi nada mais lindo do que seus olhos azuis e certamente isto é a primeira coisa que observo todas as vezes em que ela está por perto.

"Bem, você imaginou errado." - Desvio meu olhar para a parede, para qualquer lado sem um foco específico porque eu ainda sinto minhas bochechas queimarem. - "Você pode me contar qualquer coisa, você sabe." - Digo voltando-me para seu rosto e o seguro entre minhas mãos. Quero que construamos uma sólida relação baseada na confiança e por mais que os assuntos não sejam fáceis devemos nos esmerar para derrubar quaisquer muros que possam nos separar pela falta de diálogo. - "Eu sou mais gentil do que aparentei durante o treinamento. Prometo."

Os olhos dela não estão mais vazios como antes e isso dissipa toda dor, mágoa e raiva que eu senti. Ela parece estar mais tranquila e resoluta. Com cuidado, para não afugentá-la, a beijo entre suas sobrancelhas, a ponta do nariz e finalmente seus lábios em um contato delicado que gostaria que nunca terminasse.

Completamente perdido nela, experimento seu afeto e sua ternura contra os meus lábios. Os dela são quentes, macios e carinhosos acompanhando ritmicamente os meus. Deslizo minhas mãos pelos seus ombros nus, movendo meus dedos por eles. Sinto duas linhas cruzadas de esparadrapo em sua pele.

"Você está ferida?" - Pergunto um pouco preocupado, interrompendo o beijo e me afastando dela.

"Não. É outra tatuagem. Está curada, eu só... quis deixá-la coberta."

"Posso ver?" - Eu pergunto.

Tris concorda e puxa a manga de sua camisa para baixo a fim de revelar seu ombro. E antes de eu me focar na figura gravada em sua pele sob as bandagens que, afinal, é a justificativa para que eu esteja olhando parte de suas costas, percorro distraidamente seu ombro com as pontas de meus dedos enquanto observo o arrepio formado nas linhas invisíveis que tracei. Ela é macia e suave. Paro minha mão na dobra do curativo e o puxo. Sorrio ao ver a figura ali formada.

Claro. Abnegação.

Agora Tris possui as chamas do Destemor de um lado e as mãos unidas da Abnegação de outro, como um contrapeso, um equilíbrio entre o altruísmo e a liberdade; os dois desejos do seu coração.

"Eu tenho o mesmo. Nas minhas costas." - Digo rindo pelo quanto podemos ser parecidos às vezes.

"Sério? Posso ver?" - O rosto dela se ilumina. Eu sei que o pedido dela foi inocente, mas não posso deixar de pensar que ela quer que eu me mostre para ela. Minha tatuagem ocupa toda a extensão das minhas costas e será necessário eu despir meu tronco para que ela a veja. O nervosismo me atinge.

"Você está me pedindo para tirar a roupa, Tris?" - pergunto enquanto ajeito o curativo em seu ombro.

"Só... parcialmente." - Ela responde sem graça, com uma risada.

Concordo com a cabeça e continuo olhando em seus olhos enquanto abaixo o zíper do meu suéter e o retiro. Estendo-o próximo e puxo minha camiseta sem olhar para ela em nenhum momento. Com certeza isto é estranho e desconfortável.

Ela olha com atenção a primeira tatuagem que fiz. As chamas do Destemor, resultado de um jogo do qual Amar e outros membros me convenceram a participar quando eu era um iniciando. Eles afirmavam que seria um dos meus primeiros atos de bravura, o que não fazia sentido. A dor da agulha com tinta poderia ser incômoda, mas nada que exigisse tanto esforço e coragem assim.

Não deixo de pensar que requer muito mais coragem me colocar nesta incômoda situação que é estar exposto dessa forma e ter uma pessoa me observando assim, ainda mais sendo Tris... Seus olhos geralmente me acalmam, porém me sinto extremamente nervoso e ansioso.

"O que foi?" - Ela deve ter percebido minha tensão e pergunta franzindo o cenho.

"Não costumo me exibir assim para muitas pessoas. Na verdade, nunca me exibo para ninguém."

"Não consigo entender porque não." - Ela diz com uma voz carinhosa. - "Quero dizer, olha só para você."

Tris caminha a minha volta e para, pretendendo analisar as tatuagens que se estendem por grande parte das minhas costas. Ela está diante dos símbolos do Destemor e da Abnegação como os que ela mesma ostenta. Mas deve estar se perguntando sobre a razão dos demais símbolos da Franqueza, da Erudição e da Amizade...

"Eu acho que cometemos um erro." - Eu lhe esclareço. - "Todos nós deixamos de lado as virtudes das outras facções no processo de reforçar as nossas próprias. Eu não quero fazer isso. Eu quero ser corajoso, e altruísta, e inteligente, e amigável, e honesto. Eu continuamente luto com a parte de ser amigável."

Parece ser um consenso entre todos os meus amigos e as garotas com as quais me encontrei que não sou muito simpático. Talvez, mas só talvez, fosse bom eu trabalhar nisto. Em ser amigável.

"Ninguém é perfeito." - Tris sussurra. - "Não funciona dessa forma. Uma coisa ruim vai embora e outra fica em seu lugar."

Ela tem razão. Eu, por exemplo, me sentia sozinho no mundo e desde que parei de negar meus sentimentos por ela eu me sinto mais vivo, mas em contrapartida nutro uma preocupação contínua com sua segurança e isto me atormenta. Além ou até mais do que meus quatro medos, Tris é um ponto fraco. Então, embora ela tenha preenchido meu vazio, ela me deixou mais vulnerável.

Ela toca minha espinha no local onde o símbolo da Abnegação está gravado e eu estremeço. Não sei se algum dia irei me acostumar com isto ou se com o tempo o fogo arrasador que se alastra correndo por todas as direções do meu corpo cada vez que ela me toca irá abrandar ou cessar. Só sei que não tenho pressa em descobrir porque cada segundo que passo com ela é um microinfinito.

"Nós precisamos avisá-los, você sabe. Em breve." - Ela diz e eu entendo que se refere ao perigo a que estão passando os membros da Abnegação. Também me preocupo muito com isto, principalmente porque algo grande será feito em breve e temos que pensar sobre a melhor forma de ajuda-los. Mas será mais fácil agora com o fim da iniciação. É um alívio que a terei para dividir estas aflições. Seremos dois tendo acesso a setores distintos da facção, a depender da profissão que ela escolha e, portanto, com liberdade maior para investigar e traçar um plano.

"Eu sei, nós vamos."

Viro-me para ela e seu olhar se concentra em mim. Sua mão já não está em minha pele, pois está apertada em punho como se ela quisesse refrear-se de tornar a se aproximar de mim tamanho é o magnetismo que envolve todo o espaço quando estamos num mesmo lugar. Sei como é. Sinto sempre o mesmo.

"Isso está assustando você, Tris?" - Pergunto com receio de que ela me afaste novamente.

"Não." - Ela diz baixinho. - "Na verdade não. Eu só... Tenho medo do que eu quero."

Sua resposta me surpreende já que ela parece estar a ponto de sair correndo do meu quarto...

"E o que você quer?" - Paro um segundo e reformulo a pergunta para esclarecer todas as minhas dúvidas. - "Você me quer?"

Tris não é do tipo de pessoa que se possa realmente chamar de tímida, mas ela está extremamente constrangida neste momento. Eu poderia facilitar as coisas para ela e deixar passar, mas é importante, para mim, que eu saiba até que ponto ela está comprometida nisto.

Ela não emite uma palavra. Apenas assente em concordância, o que me faz assentir também. Pego suas mãos e percorro lentamente, com suas palmas, minha barriga, abdômem e peito, sentindo durante todo o processo ondas cálidas arrebentando em cada pedaço de mim que se encostava nela. Um calor gostoso tal qual lava derretida se transfere dela para mim, aumentando o fogo que sinto consumir meu interior, incinerando tudo pelo caminho.

Por mais que eu não tenha tido este tipo de experiência antes dela, quando estamos juntos somos automaticamente envolvidos e encaminhados para querermos nos aproximar mais e mais um do outro. Cada dia chegamos mais perto da beirada deste precipício intenso de sentimentos e cair é inevitável. A intimidade que existe entre nós dois já é grande, se consideramos nossas condições peculiares, e não só eu como ela quer proximidade a ponto de nos fundirmos em um só. De tantas coisas que nos distinguimos de outros relacionamentos convencionais isso é o que nos iguala a qualquer outro casal.

"Um dia, se você ainda me quiser, nós podemos... Nós podemos..." - É mais fácil manter uma linha lógica de raciocínio sobre este assunto quando a mantenho dentro da minha cabeça. Diante dela é impossível admitir em voz alta que queremos e teremos o tipo mais forte e poderoso de intimidade que um casal pode ter.

Não tenho palavras pela gratidão que senti quando ela simplesmente sorriu para mim e me envolveu em um abraço, liberando-me de continuar tentando explicar o que, afinal, poderíamos fazer algum dia. Era óbvio para ambos.

Ela descansa o rosto contra meu peito esquerdo e eu coloco meus braços ao redor dela. Pouca coisa poderia ser, na minha perspectiva, classificada como melhor do que isto. Este momento eternizado em mim.

"Você também tem medo de mim, Tobias?" - Ela pergunta decerto porque ouviu as batidas rápidas do meu coração. Eu mesmo sinto a pulsação forte em minha garganta.

"Tenho pavor." - E não deixa de ser verdade. Tenho medo de ficar com ela porque isso é novo e me sinto inseguro. Tenho pânico em me ver sem ela porque seria como perder tudo o que conquistei. Como se cada coisa que obtive antes dela, sem sua presença para com ela partilhar não fizesse sentido. E, isto é a fonte de meu maior temor nisto tudo. Sou dependente dela.

"Talvez você não continue na minha paisagem do medo." - Ela me diz e, enfim, entendo o motivo das risadas. Fiquei tão absorto em meu próprio drama por ela sentir medo de mim que não liguei tal medo ao comportamento dos líderes enquanto assistiam e depois quando passaram por nós dois. Tudo faz sentido.

Eu me abaixo para beija-la lentamente, saboreando seus lábios, seu cheiro e o som de sua respiração. Um extremo afeto emana de mim.

"Aí, todos poderão chamar você de Seis." - Digo-lhe quando interrompo o beijo.

"Quatro e Seis." - Esta constatação de nós dois como uma adição me deixa feliz e eu a beijo novamente de forma mais impetuosa e logo estávamos atordoados e arfantes. Uma vez que os pontos controvertidos que nos afastaram foram limados, temos muito tempo para acertar as arestas e decidir a forma como conduziremos e até refrearemos nossos impulsos e desejos.

Se há uma verdade em nossa relação é que não houve um instante exato em que começamos a gostar um do outro. Parece que isto que sentimos esteve durante toda vida, ali, hibernando. Como se nossa conexão tivesse sido programada para o momento em que revelássemos outra faceta que não aquela que víamos nos setores da Abnegação. O gatilho foi nossa escolha pelo Destemor. Não sei é o que chamam de destino, ou alguma forma de compensação pelos anos de maus tratos e solidão e não importa. Sei, em meu coração, que tudo me trouxe a isto. Pela primeira vez em anos eu me sinto completo. Ela era o pedaço que me faltava.


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