A Filha de Ártemis escrita por Karol Mezzomo


Capítulo 14
Minha visita ao mundo inferior – parte 1


Notas iniciais do capítulo

Aproximei-me da cela e senti minhas pernas bambearem. Sem conseguir resistir cai de joelhos e me segurei nas frias barras de ferro que compunham a cela. Percy e Annabeth logo me acudiram, mas eu não lhes dava atenção. Lágrimas começaram a escorrer de meus olhos quando os olhos azuis do homem encontraram os meus.



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Eu caminhava lentamente sobre a grama, acima de mim a lua e as estrelas brilhavam intensamente. O lugar estava silencioso, tranquilo e vazio. Apenas uma brisa leve tomava conta do espaço. A luz da lua era o bastante para iluminar o caminho a minha frente, tornando possível enxergar várias pedras ao meu redor. Aproximei-me e reparei que elas possuíam inscrições em grego antigo, assim como desenhos variados de animais, florestas e pessoas.

Na verdade aquilo não eram pedras, mas sim ruínas de algum templo. Continuei olhando ao redor e vi uma coluna de mármore com aproximadamente vinte metros de altura, algo nela me puxou até que parei a centímetros de tocá-la. Como as outras colunas que estavam caídas, essa também possuía desenhos e inscrições. Lembrava-me muito das antigas colunas gregas usadas na sustentação dos templos dedicados aos deuses.

Comecei a sentir uma força esquisita que parecia vir de dentro da coluna, logo depois uma canção em grego antigo começou a tocar e eu não pude resistir. Ergui a mão e estava prestes a tocar a coluna quando uma voz às minhas costas me fez parar.

– Ainda não minha filha. Somente no momento certo.

Virei-me e vi Ártemis. Ela me olhava fixamente. Não havia expressão em seu rosto, mas não era isso que tinha me chamado a atenção. Pela primeira vez havia escutado Ártemis chamar-me de filha.

– Você tem que acordar. – disse a deusa. No momento em que ela falou isso tudo ficou escuro e eu abri os olhos.

Minha cabeça estava encostada na janela do trem, que sacudia fortemente. Endireitei meu corpo sobre o assento e olhei para o lado. Annabeth remexia em sua mochila e a vi olhar-me pelo canto do olho. Percy olhava para fora da janela.

Havia sido somente um sonho, eu não me encontrava em um campo verde cheio de ruínas, mas sim em um trem a caminho de Los Angeles.

Observei a cidade pela janela, sem dúvida estávamos chegando. Era impossível não reconhecer os cassinos, as luzes de neon (ligadas mesmo de dia), as pessoas com roupas esquisitas e os letreiros enormes, como não sendo o típico estilo de Los Angeles.

Eu sentia-me feliz, havíamos finalmente chegado. Este era exatamente o último dia de nosso prazo e iríamos conseguir cumprir a última tarefa a tempo. Peguei o pergaminho das tarefas da mochila de Annabeth e o li.

“12º tarefa: capturar Cérbero, o cão de três cabeças e guardião de Hades.”

Tínhamos que trazer Cérbero do mundo dos mortos e para isso tínhamos que falar com Hades, o deus do submundo, irmão de Zeus e Poseidon, e um dos Três Grandes, ou seja, um dos deuses mais poderosos entre os doze olimpianos.

Quando Hércules realizou essa tarefa, Hades permitiu que o herói levasse seu cão de guarda desde que conseguisse dominar o animal sem usar as armas. Hércules com a força de seus braços quase sufocou Cérbero, o dominando completamente e levando-o a Euristeu.

Eu ri levemente tentando ignorar o fato de que não fazíamos ideia de como tirar Cérbero do Mundo Inferior. A única coisa que eu sabia era que o enorme cão de três cabeças era responsável por guardar a entrada do Mundo dos Mortos, permitindo a entrada de todos, mas não deixando ninguém sair. Isso me fazia imaginar se teríamos alguma chance de sair do mundo de Hades, e me dava calafrios ao pensar na resposta mais provável.

O trem começou a parar e eu guardei o pergaminho. Estava chegando a hora que decidiria meu destino.

Descemos na estação de Los Angeles e me vi perdida. Havia pensado tanto sobre o Mundo Inferior nas últimas horas que havia me esquecido o detalhe mais importante, onde encontrá-lo.

– Para onde devemos ir? – perguntei.

Percy olhou ao longo da rua.

– Para o Estúdio de Gravação M.A.C. Não fica muito longe daqui. Acho que podemos ir caminhando. – respondeu ele.

Eu franzi as sobrancelhas e me virei para Annabeth procurando uma explicação.

– Estúdio de Gravação?

Annabeth olhou para mim e percebi algo estranho em sua expressão. Ela desviou o olhar rapidamente e disse enquanto fitava o chão.

– É a entrada para o Mundo Inferior.

Eu olhei para Percy.

– Por que não me disseram isso antes? Eu era a única aqui que não sabia onde a entrada se encontrava?

Percy pareceu surpreso.

– Bom, não achei que tivesse importância. Afinal, o importante é que cheguemos lá. Você iria ficar sabendo de qualquer maneira.

Eu fiquei indignada. Como assim não havia importância? Era de suma importância que eu soubesse de tudo sobre as tarefas, pois era eu a principal pessoa que deveria cumpri-las. E se alguma coisa tivesse acontecido a eles dois, como eu, sozinha, saberia onde encontrar a entrada para o Mundo dos Mortos?

Comecei a sentir a ardência no peito que eu vinha tentando evitar. Ela aumentava rapidamente. Fechei as mãos em punho e dei um passo em direção à Percy.

– Escuta aqui...

Annabeth me agarrou e eu olhei para ela.

– Gabrielle chega! Por favor, me escuta. Eu preciso lhe contar...

– Ha! Agora você quer me contar algo. Por que não deixa isso para outra hora também? – disse eu.

Percy e Annabeth me olharam confusos com minha mudança de humor. A ardência no peito diminuiu e eu percebi que havia começado a senti-la no mesmo dia em que Jéssica tinha morrido. O que será que isso significava? O que estava acontecendo comigo?

Recuei um passo e falei:

– Vamos, não temos tempo a perder.

Caminhamos algumas quadras até chegarmos a uma rua tranquila onde não passavam tantos carros e pessoas, uma coisa difícil de encontrar em Los Angeles.

Estávamos nas sombras da Valencia Boulevard. Olhei para cima e fitei as letras douradas gravadas no mármore negro: ESTÚDIOS DE GRAVAÇÃO M.A.C.

Embaixo, impresso nas portas de vidro, lia-se: PROIBIDA A ENTRADA DE ADVOGADOS VAGABUNDOS E VIVENTES.

O saguão estava iluminado e cheio de gente. Atrás do balcão da segurança estava sentado um guarda de aparência agressiva, com óculos escuros e um fone de ouvido.

Um pouco apreensivos entramos no saguão do M.A.C.

Alto falantes embutidos tocavam uma música ambiente suave. O carpete e as paredes eram cinza-chumbo. Cactos cresciam nos cantos como mãos de esqueletos.

Os moveis eram de couro preto, e todos os assentos estavam ocupados. Havia gente sentada em sofás, gente em pé, gente olhando pela janela ou aguardando o elevador. Ninguém se mexia, nem falava, não faziam nada. Se eu olhasse pelo canto do olho podia vê-los bem, mas, se me concentrasse em qualquer um em particular, eles começavam a parecer transparentes. Dava para ver através de seus corpos.

Nos dirigimos ao balcão da segurança e olhamos para o guarda.

Ele era alto e elegante, com pela na cor de chocolate e cabelo tingido de loiro, cortado em estilo militar. Usava óculos com armação de casco de tartaruga e um terno de seda italiano que combinava com o cabelo. Uma rosa negra estava presa a lapela, embaixo de um crachá de prata.

Prendi a respiração quando li, com dificuldade por causa de minha dislexia, o que estava escrito sobre o crachá: CARONTE.

Meu corpo congelou. Aquele, à minha frente, era Caronte, o famoso ser que servia a Hades. Caronte era o responsável por levar as pessoas mortas até o Mundo Inferior. Ele utilizava um barco com o qual atravessava o Estige e desembarcava as pobres almas. Os antigos gregos costumavam enterrar as pessoas colocando junto a elas algumas moedas, pois quando a alma do falecido encontrava-se com Caronte, esse deveria pagar para que o servo de Hades o levasse ao Mundo Inferior.

Caronte não atravessava quem não lhe pagasse, desse modo a alma era obrigada a permanecer no local que levava à terra dos mortos para sempre, sem nunca encontrar a paz. Imaginei se todas as pessoas naquele saguão, andando de um lado para o outro sem saber o que fazer, eram na verdade almas que não tinham como atravessar para o Mundo Inferior.

Caronte inclinou-se sobre a mesa e sorriu. Seu sorriso era doce e frio, como o de uma jibóia exatamente antes de devorar você.

– Vocês dois novamente. Será que vou ter que repetir que pessoas vivas não são bem vindas aqui? – disse ele.

Eu olhei para Percy e Annabeth.

– Por favor, Caronte nós precisamos ir para o Mundo Inferior. – suplicou Annabeth.

Caronte suspirou como se estivesse cansado se sempre ouvir a mesma coisa.

Senhor Caronte para você menininha. – falou ele.

– Por favor, senhor Caronte. – completou Annabeth.

– Assim está melhor.

Caronte desviou seu olhar de Annabeth e virou-se para mim. Um rosnado começou a formar-se no fundo de sua garganta, todas as pessoas na sala de espera se levantaram e começaram a andar de um lado para o outro, agitadas, ascendendo cigarros, passando as mãos pelos cabelos ou olhando para os relógios de pulso.

– Você. – Caronte rosnou novamente, um som profundo de gelar o sangue. Os espíritos dos mortos começaram a bater nas portas do elevador. – Infelizmente tenho ordens para deixá-la passar.

Percy e Annabeth pareceram aliviados com a notícia. Pelo menos não iríamos ser impedidos de realizar a última tarefa.

Caronte percebeu o nosso alivio e completou.

– Mas é claro que não os atravessarei de graça.

Percebi que Caronte faria de tudo para conseguir dinheiro. Colocamos as mãos nos bolsos e pousamos todo o nosso dinheiro – tanto os dólares quando os dracmas – sobre a mesa de Caronte.

– Hum. Nada mal. – disse ele. – O barco está quase cheio, mas posso encaixar vocês três.

Ele se pôs de pé e recolheu o dinheiro.

Olhei ao redor procurando por um barco, mas não vi nenhum. Meus olhos pararam sobre uma adolescente que deveria ter mais ou menos minha idade, e que parecia completamente arrasada, mergulhada em profunda tristeza.

– Venham comigo. – disse Caronte.

– Espera. – falei. – Todo o dinheiro que demos ao senhor, não é o bastante para que o senhor possa levar essas pessoas também?

Caronte fitou meu rosto, me analisando. Por fim disse:

– Não, não é. Nada de pagar para outras almas.

– Mas então elas terão que ficar aqui para sempre. – protestei.

– Sim, ou até que eu me sinta generoso. – respondeu Caronte com seu sorriso frio.

– Mas isso não é justo. – continuei.

Imaginei-me ter que ficar em um lugar como aquele para sempre. Era horrível e impossível não sentir pena daquelas pobres almas.

– A morte não é justa mocinha. Espere até chegar sua vez. Talvez não vá demorar muito se continuar no rumo que está seguindo agora.

Caronte começou a abrir caminho entre a multidão de espíritos que aguardavam, os quais começaram a puxar nossas roupas como o vento, as vozes sussurrando coisas que eu não podia distinguir. Caronte empurrou-os do caminho, resmungando:

– Parasitas. Agora, ninguém comece a ter ideias enquanto eu estiver fora, ou farei vocês ficarem aqui por outro milênio.

Ele nos escoltou até o elevador, que já estava apinhado de almas dos mortos, todos segurando um cartão de embarque verde. Caronte agarrou um espírito que tentava entrar conosco e o empurrou de volta para o saguão.

Ele fechou as portas. Enfiou um cartão-chave em uma fenda no painel do elevador e começamos a descer. Após um tempo tive uma sensação de vertigem. Não estávamos mais indo para baixo, mas para frente. O ar ficou enevoado. Os espíritos à minha volta começaram a mudar de forma. Suas roupas modernas tremiam e se transformavam em mantos cinzentos com capuz. O piso do elevador começou a oscilar.

Pisquei com força e quando abri os olhos, o terno creme italiano de Caronte havia sido substituído por um longo manto negro. Seus óculos de tartaruga haviam desaparecido. Onde deviam estar os olhos havia órbitas vazias, totalmente escuras, repletas de trevas e desespero.

Por um momento achei que ele estivesse sorrindo, mas era apenas a pele de seu rosto que estava ficando transparente, permitindo-se ver o crânio.

Essa era a forma verdadeira de Caronte, a forma com a qual ele atravessava os mortos desde o começo da era dos deuses.

Quando pisquei de novo, o elevador não era mais um elevador. Estávamos dentro de uma barcaça de madeira. Caronte usava uma vara para nos mover ao longo de um rio escuro, cheio de óleo, com ossos, peixes mortos e outras coisas estranhas girando na superfície... Bonecas de plástico, cravos esmagados, diplomas encharcados com bordas douradas.

Reconheci o rio imediatamente, havia lido sobre ele uma vez. Esse era o rio Estige, o rio que levava à terra dos mortos. Mas estava diferente das características que constatavam no livro que eu havia lido. Eu não me lembrava de o rio conter tanta sujeira.

– O que houve com o Estige? – sussurrei para Percy ao meu lado.

Percy estava completamente imobilizado, era óbvio que não se sentia bem naquele lugar. Na realidade nenhum de nós se sentia assim.

– Está poluído. – disse ele. – Há milhares de anos, quando os mortos o atravessam jogam tudo nele... Esperanças, sonhos, desejos que jamais se tornaram realidade.

Eu fitei o rio.

– É deprimente.

Percy concordou levemente com a cabeça.

A névoa subia em espirais da água imunda. Acima de nós, quase perdido nas sombras, havia um teto de estalactites. À frente, a costa distante brilhava com uma luz esverdeada, a cor do veneno.

Meu corpo começou a tremer e a se arrepiar. Eu havia pensado em coisas horríveis que poderia vir a encontrar no Mundo Inferior, mas nada do que havia me passado pela cabeça chegava aos pés do que eu enxergava naquele momento.

O pânico tomou conta de mim, eu me recusava a olhar para os lados. O que eu estava fazendo ali? Aquelas pessoas ao meu redor... Estavam mortas.

Havia uma mulher com uma menininha, um casal de idosos, um menino... Todos mortos.

Comecei a rezar em silêncio. No fundo eu sabia que não estava rezando para nenhum dos doze deuses olimpianos, mas para um ser maior e mais poderoso que os deuses gregos.

Aos poucos a praia do Mundo Inferior surgiu à vista. Rochas escarpadas e areia vulcânica negra se estendiam terra adentro por cerca de cem metros até um muro alto de pedra, que se prolongava para os lados até onde a vista podia alcançar.

Ao longe se escutavam várias vozes que murmuravam juntas algo ininteligível, mas que me causava calafrios.

O fundo do nosso barco deslizou sobre a areia preta. Os mortos começaram a desembarcar e nós os seguimos, até a voz de Caronte obrigar-nos a parar.

– Hades exige que falem com ele antes de tentarem qualquer coisa com Cérbero. Portanto podem passar direto pelo velho Três-Caras, que ele não lhes fará mal.

Nós concordamos e íamos dar as costas à Caronte quando ele voltou a falar.

– Eu lhes desejaria sorte, filhotes de deuses, mas isso não existe por aqui.

Então ele virou-se, pegou sua vara e começou a empurrar a barcaça de volta ao rio.

Quanto a nós, seguimos os espíritos por um caminho já muito percorrido.

Em pouco tempo chegamos à entrada para o Mundo Inferior. Para alguém como eu, que esperava ver um grande portão sinalizando a entrada para a eternidade, foi uma surpresa ver surgir à minha frente três entradas separadas embaixo de um enorme arco negro que dizia: VOCÊ ESTÁ ENTRANDO EM ÉREBO. Em cada entrada havia um detector de metais com câmeras de segurança instaladas no alto. Depois disso, havia cabines de pedágio operadas por seres parecidos com Caronte.

Ouvimos uivos muito altos, mas não conseguíamos ver de onde vinham. Uma coisa era certa, Cérbero estava por perto.

Os mortos formavam três filas, duas identificadas como ATENDENTE DE SERVIÇO e outra como MORTE EXPRESSA. A fila MORTE EXPRESSA avançava rapidamente, as outras duas se arrastavam.

– Pode me explicar isso? – perguntei à Annabeth.

– A fila rápida leva diretamente para os Campos de Asfódelos, as outras duas vão para quem que ir a julgamento. – explicou ela.

– Julgamento? – repeti.

– Sim. Três juízes. O rei Minos, Thomas Jefferson, Shakespeare... às vezes Eisten. Eles olham para uma vida e concluem que aquela pessoa merece uma recompensa especial: os Campos Elíseos. Mas a maioria das pessoas, bem, elas apenas viveram. Nada de especial, nem bom nem mau. Então vão para os Campos de Asfódelos.

Eu me imaginei neste mesmo lugar após minha morte. Será que eu mereceria um lugar no Elísio?

Chegamos mais perto dos portões. Os uivos ali eram tão alto que sacudiam o chão. Cerca de quinze metros à nossa frente, a névoa verde tremulou. Exatamente no lugar onde o caminho se dividia em três estava um monstro enorme e indistinto.

Cérbero nos encarava. Cada cabeça sua olhando para um de nós. Era um rottweiler de raça pura, tinha duas vezes o tamanho de um mamute, e, é claro, três cabeças.

Os mortos andavam na direção dele. As filas das placas ATENDENTE DE SERVIÇO se separavam, cada uma para um lado do monstro. Os espíritos de MORTE EXPRESSA caminhavam direto por entre as patas da frente e por baixo da barriga, o que podiam fazer sem precisar se abaixar.

Cérbero farejou o ar e rosnou.

– Ele consegue farejar os vivos. – falou Percy.

– Mas ele não nos fará mal, fará? Caronte disse que ele nos deixaria passar. – disse eu.

– Eu não confiaria muito em Caronte. – comentou Annabeth.

A cabeça do meio de Cérbero rosnou para nós e depois deu um forte latido que chacoalhou o Mundo Inferior.

Engoli em seco.

– Você não teria uma bola aí, teria Annabeth? – perguntou Percy sem tirar os olhos de Cérbero.

– Dessa vez não. – respondeu ela.

Eu não sabia do que eles estavam falando, só sabia que precisávamos agir rápido.

Dei um passo à frente e ergui as mãos acima da cabeça.

– Cérbero! E aí garotão. Nós precisamos passar. Precisamos falar com Hades.

Eu sei que foi uma coisa idiota a se fazer. Cérbero me olhou ferozmente, seus olhos eram cheios de ódio. O monstro agora produzia um novo tipo de rosnado, mais profundo em suas três gargantas.

Minhas esperanças de tirar Cérbero do mundo inferior foram por água abaixo. Não conseguíamos nem chegar perto dele sem corrermos o risco de virar comida de rottweiler, era praticamente impossível convencê-lo a sair dali. Iríamos passar o resto de nossa existência naquele lugar.

De repente Cérbero começou a latir sem parar e tivemos que tampar nossos ouvidos com as mãos para não ficarmos surdos. Tão inesperadamente quanto os latidos de Cérbero uma voz irrompeu de todas as direções. Era uma voz forte e poderosa.

– Cérbero! Chega. Deixe-os passar.

No mesmo instante Cérbero calou-se e baixou as orelhas enquanto choramingava. Eu não tinha duvidas de que acabara de ouvir a voz de Hades, o senhor do Mundo dos Mortos.

Rapidamente nos lançamos pelo portão MORTE EXPRESSA e corremos para dentro do Mundo Inferior. Cérbero não tentou nos impedir.

Neste momento imagine a maior aglomeração de gente que você já viu em um show, um campo de futebol lotado com um milhão de fãs. Agora imagine um campo um milhão de vezes maior do que esse, lotado, e imagine que a energia elétrica falhou e não há barulho está tudo em completa escuridão. Uma massa sussurrante de gente fica simplesmente vagueando nas sombras sem direção.

Bom, isso são os Campos de Asfódelos. A grama era preta e pisoteada por eras de pés mortos. Um vento morno e úmido soprava como o hálito de um pântano. Árvores negras cresciam em grupos aqui e ali.

O teto da caverna era tão alto acima de nós que podia passar por uma massa de nuvens de tempestade, a não ser pelas estalactites, que brilhavam em um cinza pálido. Caminhamos em meio à multidão. Eu pensei em Jéssica, torcendo para não encontrá-la naquele lugar. Ela não merecia isso. Os rostos dos mortos tremulavam e todos pareciam ligeiramente zangados ou confusos. Eles nos viam e falavam, mas suas vozes soavam como trepidações, como o chiado de morcegos. Depois que eles percebem que você não consegue entendê-los, fecham a cara e se afastam.

Os mortos não são assustadores. São apenas tristes.

Continuamos seguindo a fila de recém-chegados em direção a uma grande tenda branca.

À esquerda, espíritos flanqueados por espíritos malignos de segurança marchavam por um caminho pedregoso rumo aos Campos de Punição, que incandesciam e fumegavam a distância, uma vastidão desértica com rios de lava e campos minados, e quilômetros de arame farpado separando as diferentes áreas de tortura. Mesmo de longe, puder ver pessoas sendo perseguidas por cães infernais, queimadas na fogueira, forçadas a correr nuas por plantações de cactos. E vi também torturas piores, que acho melhor nem descrever.

Fiquei pensando no que uma pessoa teria que ter feito em vida para merecer a eternidade nos Campos de Punição. Os Campos de Asfódelos eram um paraíso comparado ao que eu tentava evitar olhar.

Andamos mais alguns metros e chegamos a uma espécie de cadeia. Havia várias celas separadas por um estreito corredor que levava à próxima seção do Mundo Inferior. O mais estranho era que todas estavam vazias exceto uma. Dentro de uma das celas havia um homem agachado em um canto, suas roupas estavam rasgadas, ele estava sujo e mantinha a cabeça baixa, fitando o chão.

Aproximei-me da cela e senti minhas pernas bambearem. Sem conseguir resistir cai de joelhos e me segurei nas frias barras de ferro que compunham a cela. Percy e Annabeth logo me acudiram, mas eu não lhes dava atenção. Lágrimas começaram a escorrer de meus olhos quando os olhos azuis do homem encontraram os meus.

Reconheci seu cabelo loiro, a barba por fazer, o sorriso inconfundível.

– Pai. – sussurrei.

Percy e Annabeth se entreolharam. O homem arregalou os olhos para mim. Com dificuldade levantou-se e se agachou à minha frente. Suas mãos passaram por entre os espaços que separavam uma barra da outra e tocaram meu rosto, enquanto lágrimas escorriam por suas bochechas.

– Minha filha. Minha menininha. – disse ele.

Annabeth segurava-se para não chorar, então se levantou e se afastou de mim. Percy correu para consolá-la.

Eu tinha vontade de arrebentar aquela grade que nos separava e correr para os braços de meu pai. Eu havia sonhado tanto em conhecê-lo.

– Por que você está aqui? – perguntei.

Ele sacudiu negativamente a cabeça.

– Isso não importa. O importante é que você está aqui na minha frente, e que está viva. A última vez que a vi você era um bebê. Continua tão linda quanto antes. – disse ele.

– Pai, eu sinto muito. Sinto sua falta. – disse eu.

Ele passou as mãos pelos meus cabelos.

– Eu que sinto minha filha. Agora que você sabe da verdade, sua vida está em risco. Eu não queria isso.

Eu envolvi suas mãos nas minhas.

– Você está aqui porque se envolveu com minha mãe, não é? Eles lhe fizeram prisioneiro. Não se preocupe pai, eu vou tirá-lo daqui. – prometi.

Ele acariciou minha bochecha.

– Não minha filha. Isso é muito arriscado. Não tem que se importar comigo. – falou.

Eu supirei.

– Vou tirá-lo daqui. – repeti.

De repente a terra tremeu. Era um sinal. Precisávamos ir.

– Pai, eu tenho que ir. Mas não se preocupe você deixará esse lugar o quanto antes. – disse eu.

Ele apertou fortemente minhas mãos.

– Tome cuidado com Hades, ele se irrita facilmente. Você me lembra muito sua mãe, é corajosa e possui a mesma cor dos olhos dela. Ártemis a ama sabia? Quando você era bebê ela vivia dizendo que lhe amava. Você é a vida dela.

Eu não aguentei. Mais lágrimas insistiam em cair.

– Eu te amo minha filha.

– Eu também te amo pai.

Annabeth tocou meu ombro.

– Gabrielle, precisamos ir.

Eu continuei olhando meu pai enquanto levantava-me lentamente.

– Eu vou tirá-lo daqui. É uma promessa. – falei.

Ele apenas fechou os olhos e disse:

– Se cuide minha menina.

Depois disso não tive outra opção. Eu queria ficar lá com ele, mas não podia. Despedi-me de meu pai enxugando as lágrimas rapidamente, e segui pelo corredor junto com Percy e Annabeth.

– Sinto muito pelo seu pai. – disse Percy.

Eu não me virei para olhá-lo.

– Não preciso de seus sentimentos Perseu. – falei.

– Me desculpe só estou... – começou Percy.

Dessa vez eu parei e fitei seu rosto.

– Eu não quero ouvir nada. É melhor você calar essa boca ante que eu cale ela para você. – disse eu enquanto colocava a mão no bolso a procura da caneta.

Annabeth colocou-se entre nós e deteve minha mão.

– Gabrielle está na hora de você me escutar. Você não está agindo normalmente desde o dia em que Jéssica morreu, e eu sei o motivo. Eu sei a causa de suas constantes mudanças de humor.

Eu puxei a mão.

–Do que é que você está falando?
Annabeth aproveitou o momento de calmaria e desatou a falar.

– Minha mão falou comigo em sonho enquanto estávamos viajando no trem. Ela me contou que a morte de Jéssica lhe afetou profundamente e a deixou fraca por um determinado tempo. Nêmesis aproveitou-se disso e implantou uma semente de vingança em seu coração. Seu peito arde quando fica brava, não é? Se não lutar contra isso, essa semente crescerá dentro de você até chegar ao ponto em que Nêmesis poderá controlá-la. É isso o que ela quer.

Eu dei um passo para trás. Tudo fazia sentido. No momento em que Jéssica morreu eu comecei a sentir um forte desejo de vingança e desde aquele momento vinha sentido meu corpo pesado e meu peito ardente. Com um nó na garganta lembrei-me de Annabeth evitando meu olhar quando desembarcamos na estação de Los Angeles. E de Atlas, quando eu estava ao lado do titã e senti aquela estranha ardência no peito, ele murmurou o nome de Nêmesis. De algum modo ele havia sentido o poder da deusa operando através de mim.

Se isso fosse verdade o controle de Nêmesis sobre mim já deveria estar em um estágio muito grande. E se não tivesse mais volta? Será que Nêmesis já me controlava?

Desesperada, olhei para meus amigos.

– Como eu tiro isso de dentro de mim?

Annabeth fez uma cara triste.

– Lute Gabrielle. Traga de volta a menina que conhecemos antes de toda essa confusão começar. – incentivou ela.

Eu olhei ao redor pensando em um modo de livrar-me do poder de Nêmesis.

Ao longe se via um pequeno vale cercado de muros, uma comunidade com portões, que parecia ser a única parte feliz do Mundo Inferior. Além do portão de segurança havia belas casas de todos os períodos da história, vilas romanas, castelos medievais e mansões vitorianas. A grama ondulava nas cores do arco-íris. Dava para ouvir os risos e sentir o cheiro de churrasco. Aquele lugar chamava-se Elísio.

No meio do vale havia um brilhante lago azul, com três pequenas ilhas. As Ilhas dos Abençoados, para pessoas que escolheram renascer três vezes, e três vezes conquistaram o Elísio. Na mesma hora eu soube que quando morresse, era para o Elísio que eu queria ir. Mas percebi como havia poucas pessoas no Elísio, como era minúsculo em comparação com os Campos de Asfódelos ou até os Campos de Punição. Portanto, poucas pessoas se davam bem em suas vidas. Era realmente muito triste.

Percy e Annabeth também fitavam o lugar. Era impossível não ficar hipnotizada com tamanha beleza.

– Este é o lugar para os heróis. – disse Percy.

Eu olhei para os portões que formavam a entrada do Elísio e algo me chamou a atenção. Havia alguém à frente dos portões. Uma menina. Seus cabelos ruivos e ondulados pareciam brilhar a luz que emanava do lugar às suas costas.


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Notas finais do capítulo

Annabeth foi avisada por Atena que Gabrielle corre grande perigo, como se não bastasse o medo que a filha de Ártemis sente agora que sabe da verdade, ela ainda tem que se preocupar com a situação de seu pai. Hades os espera pacientemente, e suas notícias não são boas...



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