ANTROPÓFAGO - Diário de um Canibal escrita por Adélison Silva


Capítulo 10
A culpa e o desejo


Notas iniciais do capítulo

Max se ver diante de uma tortura pessoal. A culpa o envolve, e ele sofre ao lembrar dos seus crimes.



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  Perturbei-me diante daquele sentimento de culpa. Fui afastando do corpo, aterrorizado com medo do monstro que eu havia me tornado. Já não sabia mais quem eu era ou o que eu era, ou ainda o que seria de mim. Embora, enquanto afastava aos tropeços, tivesse consciência de um tipo assustador de memória oculta, que tornava meu avanço não totalmente casual. Eu queria Érica, a desejava, não aceitava a ideia de perdê-la para o Davi. Como eles puderam fazer isso comigo?

  Saí da região em que estava deixando para trás o cheiro acusador do cadáver de Clarinha, ainda que carregasse manchado em minhas mãos o seu sangue. Adentrei na parte mais fechada da floresta, não poderia correr o risco de ser pego pela polícia. Andava por entre a mata, esbarrando nas próprias pernas, até chegar a um lago. Aos poucos fui tirando a minha roupa e entrando na água. Banhei-me tirando todo o sangue que envolvia meu corpo. Depois de banhar saí da água e me joguei de joelho nas margens do lago.  Ali agachado ao chão me derramei em prantos.

 

 

MAX

(chorando) Porque ainda me sinto tão imundo? Estou me sentindo um miserável. O que eu estou fazendo da minha vida?

 

 

 

 Em minha mente era como se passasse um flashback de todos os crimes que havia cometido. Levantei dali e fui andando até chegar à sombra de um carvalho. Onde me acomodei e descansei, estando vários metros distante do corpo de Clarinha.

  Minha mente me torturava com dolorosas lembranças. Ainda ouvia os gritos e gemidos das minhas vítimas. Lembrava também do maldito dia do acidente. Minha pele deformada, encarquilhada e decadente era testemunha do meu sofrimento. Deslizava a mão pelo o rosto e sentia as cicatrizes. As lágrimas quentes lavavam silenciosamente a minha fronte, mostrando que ainda existia algo de humano em mim. Olhava os renques das árvores no alto, que se balançavam e se acenavam em uma harmonia perfeita. Os pássaros cantavam e voavam em seus galhos retorcidos em um coro deslumbrante. Tal era o quinhão que Deus me reservou, a solidão, o medo. Me sentia desapontado, enfraquecido. Sentia-me ressequido, agarrado com desespero a lembranças de um passado que insistia em retornar a minha mente.

  Por onde andava a minha amada Érica?

  Adormeci sob as sombras gelada das árvores e acalentado pelo o som da cantoria dos pássaros. E assim sonhava e esperava, embora sem saber o que exatamente esperava. Sou despertado horas depois, por um bando de macacos que guinchavam e salteavam fazendo molecagem nos topos das árvores. Levanto meio troncho, e morto de fome, havia me alimentado mal o dia todo. Era estranho, mas não pensava em nada silvestre para comer, era carne humana que eu queria.

  Minha mente, atordoada e caótica como estava, ainda preservava o anseio frenético por sangue. E nem mesmo a culpa dolorosa que me atormentava poderia impedir meu avanço. Saí dali, ainda exausto em busca de algo para me saciar. Não sabia e nem me preocupava em saber se a minha experiência era pura insanidade, porém parecia determinado a sentir aquele sabor novamente. O regalo que estremecia a minha pele, o pecado, o proibido, o imoral. Ansiava por ver os olhares de medo, o grito espremido, e eu soberano sobre toda aquela situação.

  Cerca de duas horas devem ter se passado antes que atingisse o que parecia ser minha meta. Passando por um campo aberto cheguei até uma estrada velha e abandonada, percebi então que me aproximava novamente da cidade de Braço Forte, e se era carne humana que queria ali era o único lugar próximo que poderia encontrar. No entanto, tornou-se perigoso a minha volta, eu era alvo direto da policia, não poderia vacilar. Cortei por entre um bambuzal que cercava o Rio da Juventude, e na outra margem avistava as casas mais periféricas da cidade, algumas feitas de madeirite, e cobertas por telhas finas de fibrocimento. Não acreditava no que estava pretendendo fazer, a minha fome aumentava, e o meu desejo pelo o proibido superava a minha razão. No céu um crepúsculo se cobria dando adeus aos últimos raios do sol. Faminto escondido atrás do bambuzal, eu observava algumas crianças brincado na rua, “talvez fosse melhor esperar escurecer”, pensei.

  Antes mesmo da luz solar desaparecer por completo no horizonte, me atrevo a procurar por alimento. Na sombra do crepúsculo galguei pelos os barrancos erodidos do rio. Então me agarrei, com perigo, às pequenas reentrâncias que me permitiram subir, indo em direção à ponte. Terrível e medonho era o meu progresso. Conforme a escuridão do alto iria aumentando, a minha ansiedade de encontrar carne humana também aumentava. Estremeci, perguntando-me a razão de estar ali. Sofria com as acusações da consciência, mas me tornava inconsequente diante do que avistava.

  Antes mesmo que atravessasse para o outro lado, vi na outra margem uma linda mulher, de mais ou menos trinta e oito anos de idade. Roupas simples, esfarrapadas, cabelos ondulados e compridos, amarrados com um lenço formando um rabo de cavalo bagunçado, e uma franja caída sobre o rosto. Subia calculadamente os barrancos escorregadios do rio, carregando sobre a cabeça uma bacia com roupas recém-lavadas.

 

MAX

(para si mesmo) Impressionante! Mesmo distante e como se eu conseguisse sentir o seu cheiro. É ela, eu preciso dessa mulher.

 

 Atravessei a ponte apressadamente, às escondidas, não queria que ela se assustasse ao me ver. Algumas mães gritavam os seus filhos para dentro de casa, alertando que já estava tarde e que eles precisavam tomar banho. Apenas um garotinho ficou empinando a sua pipa. A mulher seguiu por uma rua estreita e sem asfalto, cumprimentou alguns vizinhos que encontrava em frente as suas casas proseando, sentados no batente da porta.

 

GILMAR

— Finalmente terminou, hem Catarina?

 

CATARINA

— Nem me fala seu Gilmar, é roupa demais. Tudo bem dona Jacira?

 

JACIRA

— Eu estou bem, e você minha filha?

 

CATARINA

— Eu estou bem também. Me enrolei o dia todo tive que lavar roupa a noite. E ainda tenho que preparar a janta.

 

JACIRA

— É assim mesmo!

 

CATARINA

— Boa noite pra vocês!

 

 

  Desci um pouco a ribanceira, e fui me escondendo por trás de algumas moitas de bambus.

  Um pouco a frente, Catarina virou a esquina e subiu por outra avenida. Cautelosamente saí de trás dos bambus, tirei o meu punhal da cintura, e subi lhe acompanhando alguns metros atrás.

 

 

MAX

(tentando expulsar um cachorro) Sai daqui seu cachorro sarnento!

 

 

  Fui descoberto por um vira lata sarnento que rosnava ao meu lado, tentei expulsá-lo discretamente, no entanto as suas latidas chamou a atenção da mulher, que nesse instante já se encontrava diante do portão de sua casa. Sendo acuado pelo o cachorro fui forçado a levantar, me deixando a vista por cima do container.

 

CATARINA

(deixando a bacia cair) Meu Deus! Quem é você?

 

 

  Senti-me paralisado, mas não tanto que não fizesse um débil esforço de atacá-la. Mas precisava ter cuidado, não poderia deixar que os vizinhos me visse. Eu estava faminto e desejoso por um pedaço de sua carne. Meus olhos enfeitiçados fitavam de um modo horrendo em direção a mulher, se recusavam a desviar-se. O vira lata latia cada vez mais forte, se encorajando em minha direção, eu o afastava, assustando-o com a faca nas mãos. Tinha que pensar em uma saída rápida.

  Os vizinhos alertados pelas as latidas repentinas do cachorro se armaram de pedras e porretes de madeira e virou a esquina tomando em minha direção, gritando uns aos outros.

 

 

PEDRO

— O que está acontecendo? O que está fazendo aí rapaz?

 

JACIRA

(reconhecendo) É ele, o monstro que a policia está atrás!

 

GILMAR

(pegando uma pedra) Não vamos deixar ele escapar! Vamos pegá-lo!

 

 

  Naquele mesmo segundo, desabou sobre minha mente uma avalanche rápida de lembranças lancinantes. Reconheci, naquele segundo, tudo o que eu tinha sido. Lembrei-me das coisas que havia feito, das vítimas que sangraram em minhas mãos. Reconheci o que é mais terrível, a abominação blasfêmia que estava prestes a cometer. Eu era um monstro, uma fera malsã, calculando a maneira de atacar sua vítima, enquanto meus pés se afastavam lentamente escolhendo a direção certa a tomar. Catarina desesperada tentava abrir apressadamente o seu portão, mas a chave parecia emperrar na fechadura.  Ao lado os vizinhos corriam em minha direção, o vira lata pulguento não calava a boca e chamava a atenção de outros cachorros que respondia aos seus latidos. Corri em direção à mulher, enquanto voava atrás de mim pedras acompanhadas de gritos infortuneis.

 

JACIRA

— Vamos pegar o maldito, antes que ele alcance Catarina!

 

 

  Por sorte pareciam ter péssima mira, nenhuma das pedras me acertou. Cheguei ao mesmo instante em que Catarina havia aberto o portão. O pesadelo estava prestes a acontecer. Saltei para dentro da casa já com as mãos agarradas em seus cabelos. Quando ela começou a gritar eu tapei a sua boca com as minhas mãos. Senti um prazer tão perverso com aquela situação, me estremecia com o seu cheiro, via o medo em seu olhar, o seu desespero por estar presa em meus braços.

  Me fascinava com tudo aquilo, tinha medo de ser pego, mas não consegui sair dali. Joguei com força a mulher no chão, e subi-a em cima lhe dando fortes mordidas no pescoço, ela gritava se esperneando. Peguei a faca e a apunhalei suas costas extravasando toda a minha adrenalina.

  O seu sangue escorria molhando o carpete e descendo em direção a porta. Seus músculos tremiam, seu corpo se desfalecia enquanto eu arrancava a sua roupa, e me saciava com o sabor de sua carne.

  Aquele cheiro, aquela atmosfera proibida mexia muito comigo, me fascinava. Era loucura, mas me sentia erotizado com tudo aquilo de uma forma tão completa. Eu era um drogado e o meu vicio era o gosto alucinante do sangue humano, sentia convulsão, era triste o meu estado. Viajava no êxtase de estar ali naquele momento. Meus neurônios ferviam e a minha pele tremia em cada mordida que eu dava. Nada mais me importava, a não ser aqueles míseros segundos em que eu era escravo da minha triste custódia. Era desesperador o que sentia, muito mais forte do que o medo que tinha de ser flagrado pela policia. Era nojento o que eu fazia, mas a sensação era alucinante. Me condenava por saber que aquela pobre mulher não tinha culpa nenhuma do meu estado, no entanto o cheiro fétido do seu sangue me atraía, me fazia perder a razão. Chorava por senti o preço da minha culpa, não sabia mais como parar, estava afundando cada vez mais.

  Os vizinhos empurraram a porta que havia ficado entreaberta, e se chocou por me ver ali, mergulhado no sangue de Catarina.

 

 

JACIRA

(abraçando um homem ao seu lado) Minha nossa senhora!

 

 

  Alguns não aguentando o terror da cena, se afastaram e saíram correndo. Mesmo amedrontados outros insistiram em me encarar.

 

 

PEDRO

(com um porrete na mão) Eu vou matar esse desgraçado!

 

LEONARDO

— Pedro, vamos sair daqui temos que chamar a polícia.

 

PEDRO

(chorando) A Catarina Leo, ele matou a Catarina!

 

LEONARDO

Eu sei, mas agora não podemos fazer mais nada. Vamos deixar a polícia cuidar dele.

 

 

  Levantei lentamente com o punhal nas mãos, e me preparando para atacar. Minha boca estava lambuzada com o sangue de Catarina. Recebi como resposta pedras que alguns ao longe jogavam em meu rumo, coloquei o braço na frente do rosto no intuito de protegê-lo. As pedras feriam e me faziam perder o controle de mim mesmo.

 

 

LEONARDO

(tentando convencer Pedro) Vem Pedro, vamos sair daqui.

 

 

  Pedro não dava ouvido a Leonardo e continuava a me atacar. Agarrei-o pelo pescoço, enquanto os demais me atacavam com os porretes e as pedras, forçando a soltar o amigo. Eu mantinha uma baixa estrutura e o corpo um pouco raquítico. No entanto brotava em mim a força de um gigante. Pela primeira vez não tive escolha, ou eu atacava ou era massacrado pela a fúria dos vizinhos de Catarina. Com a faca estraçalhei todo o abdômen daquele homem, escorrendo partes dos seus órgãos para fora. Ele caiu de joelhos no chão, e com as mãos sobre a barriga, gemendo de dor. Ao ver o que eu acabara de fazer os outros se afastaram de medo. No entanto Leonardo se aproximou assustado tentando ajudar o amigo. Os outros vizinhos também abismados com a minha frenesi, soltou no chão os porretes enquanto gritavam:

 

JACIRA

— Fuja Leonardo, ele é um monstro!

 

GIOMAR

— O Pedro e a Catarina já eram, vamos salvar a nossas vidas, fuja!

 

LEONARDO

(gritando) Não! Meu irmão!

 

 

  Fiquei a um metro de distância de olhar fixo no Leonardo, que mesmo assustado insistia em ajudar o amigo, que logo revelou que se tratava de seu irmão. Firme em minhas mãos mantinha a faca atroz, cúmplice dos meus pecados. Pedro mesmo sem poder falar, gaguejava tentando salvar a vida do irmão.

 

 

PEDRO

(caído no chão) Fuu... ja, ele vai... Te matar ! Sai daqui Léo, fuja!

 

LEONARDO

— Eu não vou te deixar aqui.

 

 

  Fiquei paralisado diante de tudo aquilo. Era como se eu fosse vítima de um transtorno explosivo intermitente, não conseguia controlar os meus impulsos. Mas se tinha uma coisa que eu não era nessa situação toda, era vítima. Fui o culpado por cada gota de sangue que se espalhou por aquela sala, e cada gota de sangue que ainda derramaria.

  Ajeitei a faca em minhas mãos e partir para cima dos dois. Leonardo se afastava arrastando-se ao chão e levando o irmão junto, que ainda gemia de dor com os órgãos expostos. Agachei um pouco próximo aos dois, peguei um dos porretes que estava largado no chão e o inseri com violência no corte do abdômen de Pedro, que gritava. Sentia prazer em ouvir os seus gritos, forçava o porrete com tanta força que o sufocava, arrancado os últimos suspiros. Leonardo tremia tentando ajudar o irmão, mas ao vê-lo morrer ali em sua frente, resolveu fugir. Tarde demais, o agarrei pela a perna e comecei apunhalá-lo, ele gritava e me chutava tentando escapar dos golpes, a vizinhança afoita em frente a casa gritava:

 

 

 

VIZINHOS

(off) Assassino, assassino! Policia!

 

 

 

  Alguns até tentavam se aproximar, mas tinha medo de enfrentar a minha fúria. Em meu peito brotava uma aflição desesperadora, tinha que sair dali. Ainda sentia fome, mas diante de tudo o que me aconteceu era melhor me contentar com algum animal na floresta, pois o mais importante no momento era a minha fuga. Agarrei Leonardo, pressionando a faca contra o seu pescoço, minha intenção era usá-lo como refém, assim como havia feito com Clarinha.

 

 

MAX

Afastem-se, e eu o mantenho vivo. Caso contrário, o matarei assim como fiz com o seu irmão.

 

GILMAR

— Ninguém aqui vai fazer nada contra você, mas poupe a vida de Leonardo.

 

 

 

  Leonardo estava todo ferido, fraco, sem reação. A vizinhança estava desesperada, não sabia o que fazer, preferiram obedecer as minhas ordens. Desci a rua apressadamente, com o braço envolvido no pescoço de Leonardo, e a faca encostada abaixo do seu queixo. Qualquer movimento incomum seria o seu fim. A vizinhança acompanhava com seus olhares atentos e esbugalhados de medo. Ao aproximar do Rio da Juventude o larguei jogando-o ao chão e me atirei nas águas, nadando em direção a correnteza.

  Agora estava de volta ao inferno do horror que me aterrorizava, a explosão de lembranças negras, o caos e o medo da minha consciência que me torturava. E ainda sem saber como achar minha amada Érica.


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Notas finais do capítulo

Será que a fúria de Max nunca terá fim? Ele confessou que sente prazer em torturar, que é viciado no sabor do sangue humano. Quem conseguirá pará-lo?



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