Mantendo O Equilíbrio - Terceira Temporada escrita por Alexis terminando a história


Capítulo 37
Capítulo 36


Notas iniciais do capítulo

Terceira temporada entrando em reta final, gentes.

Preparem o coração (vai um lencinho aí?), respirem pausadamente e, acima de tudo, se mantenham firmes.
Esse capítulo foi... Nossa, lembro que a inspiração veio na hora de dormir e acho que até sonhei com a cena rs Mal acordei no outro dia pulei da cama pra escrever enquanto tudo tava fresquinho. Não minto não, foi difícil, cada um teve seu momento de me emocionar e, oh God, bate certo no âmago de muita coisa. Aqui vos mostro uma faceta que quase não é possível ser vista, e é ela quem muito ajuda na hora da compreensão. E - esperamos - do difícil perdão.

Enjoy.



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Quando me deitei, estava temorosa. A chuva ora aumentava, depois diminuía, e aumentava, assim sucessivamente. Pelo friozinho que estava, o clima do meu quarto estava a 26º que determinei no ar-condicionado. Enrolada nas cobertas eu não conseguia dormir. Não sabia qual era dessa insônia que veio numa hora que eu só devia deitar e apagar. Irritada, levantei, ia dar uma arejada, tomar água e voltar para cama. Só que eu nem cheguei a pegar a água, nem mesmo voltara para minha cama. Não tão cedo.

Guiando-me pelo corredor no escuro com o celular, cheguei à cozinha. Estava “tudo” bem, na medida do possível. Passei pela bancada central para ir na estante pegar um copo, e foi bem nessa hora que eu vi. Uma luz. Um raio. Cortou o céu. Eu sabia o que aquilo significava.

Não deu para ter controle sobre meus impulsos. Logo eu estava no chão, num canto, encostada na bancada da pia, encolhida em mim mesma. Aquele feeling ruim estava me tomando, vinha de dentro, algo que nunca em todos os anos eu consegui explicar, senão que era despertado toda vez que algum trovão se propagava pelo céu. Pelas leis naturais eu sabia que o raio já havia caído, aquele estrondo era só a zoada que chegava atrasada por a luz ter uma velocidade maior que a do som. Algo nesse som, por mínimo que fosse, me aterrorizava, desde que era criança.

Não era inteligível de forma alguma, só era assim e toda vez que acontecia, eu me abria em crises nervosas, crises que me envergonhavam, que me acabavam, que me faziam odiar tudo e a todos... Me tornava menor do que eu já era. Uma de minhas maiores fraquezas, minha parte humilhante, minha destruição emocional. Abracei com força os joelhos, a prenuncia de um trovão tinha sido dada, logo ele estaria dando o ar de sua graça. Na realidade, nem demorou mesmo, veio vagaroso, mas veio.

A essa altura eu me apertava tanto em mim mesma que quase nem tinha espaço nem para o choro emergente sair. Estava tudo escuro. Ao puxar ar, senti o pano de minha calça quase em minha língua, era difícil respirar. Quase enterrada em mim, meu rosto se apertava às minhas pernas abraçadas, onde tão logo senti que se molharam na região onde meus olhos enroscavam-se.

Outro trovão desceu, ainda no nível “leve”, o que não me importava muito, pois sentia meus nervos entrando em frangalhos pelo medo irracional. Devia ser forte, devia me aguentar. Devia me levantar e encarar normal uma noite de chuva, relâmpagos, trovões. Por que eu não conseguia? Por que não era tão simples assim? Por que não pra mim?

E eu sabia que não era só isso. Eu estava em casa com meus familiares. Sabia que eles viriam atrás de mim, eles sempre vêm. E como eu odeio isso. Odeio que me vejam nesse estado, que sintam essa necessidade de me proteger, de cuidar de mim. Eu não preciso! Ou preciso... mas não de seus olhares impotentes, piedosos, apreensivos, que tanto eu como eles sabem que não podem fazer nada. Que me deixassem. Se era pra ficar desse jeito, antes sem todos esses olhares ou toques.

Tremia e não era de frio. Me aguentava para pelo menos chorar baixinho. A chuva fina lá fora parecia em concordância. Já meus poucos espasmos iam aumentando desproporcionais. Outro mais despencou pra me humilhar.

– Ela está aqui.

Vinícius? Não, sai daqui. Sai daqui, sai daqui, sai daqui, me encolhi mais em mim como se fosse me esconder. Sumir era minha vontade.

Passos, passos nervosos aproximavam-se.

– Milena.

Murilo?

Não. Era humilhação demais. Como dizer para que me deixassem em paz? Mesmo que não houvesse paz? Precisava ser forte, aquilo ia passar. Apesar de nunca breve, uma hora iria passar. Nem que eu ficasse a noite toda naquele lugar, na mesma posição, eu o preferia do que ficar desse jeito na frente deles.

Um deles tenta me segurar a mão, eu a afasto. Me forço a respirar, segurar um espasmo. Falar era difícil, sabia que não ia sair firme. Era uma entrega do meu abatimento.

– Nã-ão.

– Milena, me deixe te ajudar.

– E-eu não preciso. Ssssou forte. Ssssai da-aqui.

– Você sabe que não vou sair. Vem comigo.

– Nã-ão. Me deixa. Eu aguento.

Era como aquela menininha perdida na praia. Murilo se oferecia para cuidar de mim e, diferente da garota, eu não queria. O ódio por tudo estava latente na minha língua, coisa que eu temia falar demais e, de alguma forma, machucá-lo. Por que ele não me ouvia? Por que não me dava esse espaço? Dessa vez, ao menos.

Para me quebrar mais, sinto um corpo ao meu lado, uma respiração. Sinto um braço passar por mim e me encobrir. Era Vinícius, ele fala comigo, baixinho, temoroso.

– Por favor, Lena. V-vem conosco.

Pra onde? Ali estava ruim o bastante.

Nem preciso dizer que mais um trovão veio, mais forte então, mais barulhento. Vinícius me apertou para si, encobrindo-me mais, que me tremia abaixo dele. Tenta me puxar, me mover dali, só que eu não conseguia sair daquela posição. Ele pediu mais uma vez, de um jeito que, sei lá, me movi. Cedi um pouco. Passei a mão no rosto, que por lá ficou, estava muito envergonhada da minha situação.

– Vem. Levanta. Estamos aqui.

Devagar ele me ajudou a levantar. O tempo todo mantinha uma mão em minhas costas, que subia e descia. Quis que só esse toque me resolvesse tudo. Infelizmente não seria tão fácil assim, nunca foi. De pé, nem precisei procurá-lo, ele veio de encontro a mim, mais uma vez me encobrindo em seus braços. Senti seu coração temoroso na minha testa, estava enterrada em seu peito, minhas mãos puxavam sua camisa com força.

Quanto mais ficava ali, desejava que aquilo fosse o bastante para dissipar aquele feeling que me quebrava. Permaneci de pé, não me movi mais, havia fincado. Ele tentou mover-me mais uma vez. Sem sucesso, ouvi seu suspiro baixo, frustrado. Beijou-me na testa, beijou-me no topo da cabeça.

– Calma, estou aqui. Vamos cuidar de você.

~;~

Não sei como me moveram, sério.

Uma hora estava na cozinha, outra no sofá da sala.

Cada movimento deles era sentido por mim, angustiante.

Vinícius estava do meu lado direito, Murilo ao esquerdo. Nada como foi o outro dia que dormimos no sofá os três depois de um filme. Agora a TV estava desligada, o cômodo estava escuro, a chuva quebrava o silêncio, o frio se dissipou pelo calor dos dois tão próximos. Apesar de ter ficado abraçada com Vinícius na cozinha, quando sentei no sofá me distanciei dele. Tentou me rodear novamente, não deixei. Nas minhas narinas seu cheiro permaneceu, que eu queria sentir de novo, mas aquela vergonha de novo bateu e me fez me afastar. Não era vergonha de ter seu corpo tão colado ao meu, era da necessidade que vinha me socar, dizer-me que eu era um nada, que precisava de cuidados. O que eu tanto repudiava. A isso eu não iria me entregar, não tão fácil.

Já havia passado muito tempo – se é que eu tinha noção de tempo – comigo nele. Aquela força de minhas mãos que apertavam sua camisa acabou migrando para meus braços, que quase o sufocaram num aperto de seu pescoço, onde eu discorria toda minha tensão e sentia a dele. Era uma coisa conflituosa, porque quanto mais sentia que ali eu deveria ficar, por outro lado o ódio me torturava por sentir que eu fazia aquilo com ele também, eu o assustava, como sempre afligi aos outros.

No sofá, me arranjei com uma almofada, abraçada por mim pra cobrir a falta que fazia de um corpo para segurar. Nela sim eu podia extravasar um pouco de minha loucura. Eles falavam comigo que eu sei, mas nada por mim se fazia ouvido. Saíam de suas bocas, andavam pelo ambiente, não chegava aos meus ouvidos, mesmo que fossem a coisa mais próxima deles.

Do caminho que fizemos os trovões deram uma trégua. Infelizmente, a porra do maldito feeling não. Ficava aquela coisa do eminente, que a qualquer hora estaria ali para piorar. Era muita coisa ao mesmo tempo para me acabar. Não tardou mesmo, aquele estrondo veio um pouco mais forte. Agarrei uma mão que estava no meu braço, era a de Murilo. Ele a segurou de volta. Com a outra senti seu toque nos meus cabelos, no meu rosto. Não ousava olhar para seus olhos, sei o que veria ali. Aquilo me afastaria.

– Lena, está me ouvindo? Lena? China?

China?

Era Vinícius. Mantinha-se ao meu lado, também era meu protetor.

– Lena. Nós já conseguimos uma vez. Vamos tentar novamente, sim? Qual a capital da China?

Ele... ele não estava pensando em...? Em fazer aquele teatro de novo, estava? Não acredito que ele estava apelando. Estava tão deplorável assim?

Havia feito isso no surto que tive na casa dele. Disse-me que era questão de foco, que quanto mais eu permanecesse falando, eu iria me distraindo e aos poucos me sentiria melhor. Era uma forma estranha de desabafar.

Ele insiste, forçando-se a ser firme como percebi.

– Lena, qual a capital da China?

Acabei cedendo. Continuava a apertar os dedos de Murilo, forcei-me a falar.

– Pequim.

– México?

– Er... Cidade... do México.

– Iraque?

– Bagdá.

– Rússia?

– Mos... cou.

– Portugal?

– Lisboa.

– Itália?

– Roma.

– Equador?

– Num sei.

Acontece que eu não era tão boa assim em Geografia. Vinícius estava tentando, perguntava sobre os países, emendava sobre cultura, sobre o que eu sabia deles, etc. Ele queria me manter falando, já não dava certo. Passei a apenas balançar a cabeça. Queria cooperar, infelizmente não conseguia mais. Foi então que Murilo tomou frente, mudou o curso das perguntas. Num primeiro momento não entendi o que fazia:

– All my life?

– O-o quê?

– De quem é All my life?

– Foo Fighters?

– Sim. E It’s my life?

– Bon Jovi.

– All the small things?

– Blink… one… eight-two.

– Losing Grip?

– Avril Lavigne.

– Tarde de outubro?

– CPM... Vinte e dois.

– Semana que vem?

– Pitty.

– O dia que não terminou?

– Detonautas.

– Detonautas o quê?

– Detonautas Roque Clube.

– The Lazy Song?

– …

– The Lazy Song?

– Bruno Mars.

As opções eram infinitas. Logo Vinícius se juntou a ele, alternavam entre si as perguntas. Hábil para respondê-las, simplesmente fluíam todas facilmente do cérebro à boca. Concordo que isso ajudava no meu estado de espírito de ódio. Por debaixo da brincadeira, estava, claro, a preocupação, uma impotência, o nervoso deles. Porém, mais embaixo havia carinho. E isso eu não estava em posição de negar, não nessa noite, de nenhum dos dois.

Me perdi na tsunami das perguntas. Não sei se duraram muito, se duraram pouco. Elas me ajudaram na questão do foco, consegui respirar melhor depois de um tempo. O problema maior era quando tinha uns trovões violentos... Quando um desses descarregou céu abaixo, eu nem me toquei do que fazia, só sei que fiz. Me joguei em cima de Murilo, que facilmente me recebeu. Apesar de tudo, ele estava ali, cuidava de mim. Não parou um segundo no joguinho, era como uma metralhadora ou um lançador de bolas de beisebol, que atiram numa continuidade impressionante de munição. Não me deixavam calada um só momento.

Ao longo da noite fui amainando de acordo com o fim dos trovões. Para aqueles mais leves e baixos eu já não sentia tanta tensão. Dado um tempo, o cansaço me pegou. O choro estava só nos resquícios, os olhos ardiam pelo sal das lágrimas, as pálpebras ficaram pesadas, a fala diminuía em potência. Como estava de mal jeito, me mexi para me ajeitar. E foi então que meu irmão disse para que eu me deitasse ali mesmo. Levantei minimamente, peguei umas almofadas. Só que eu pendi para o lado do Vinícius, coloquei em seu colo uma das almofadas, abracei a outra e deitei, meio encolhida. Não sei que menção ele fez de se mexer, só sei que ouvi Murilo falar:

– Deixa, melhor que ela fique aqui.

~;~

Desde que Murilo e Vinícius se tornaram grandes amigos, uma pontinha minha desejava ser uma mosquinha que pudesse se infiltrar no meio deles e ouvir algumas de suas conversas. Quer dizer, de quando falavam de mim. Sei que falavam não só por desconfiar, mas por eles mesmos já terem mencionado isso aqui e acolá. São aliados, têm bastante afinidade. Algo admirável certamente por um lado; por outro, as coisas tendem a se perder quando limites são quebrados.

Quando fizeram marcação cerrada comigo, por exemplo, sobre a vez que descobriram os “ataques” de Filipe e o plano furado dele de deixar um vigia na minha cola, os dois se uniram. Murilo chegou umas vezes a ligar para Vini para se manter informado do que acontecia, e eu não sabia se sentia alívio por aparentar ter saído do meu pé ou se me preocupava, com medo que fizessem algo pelas minhas costas.

Sei que Vinícius o ouve muito. Tanto que tocou no assunto do meu passado uma vez, me disse para contar com ele para o que fosse, depois deu aquela cobertura básica no caso da briga com Eric. Isso sem falar das vezes que ficaram em contato durante meu tempo off com eles, quando eles insistiam em uma reaproximação comigo.

Só que eu nunca imaginei que um dia eu viria a escutar uma dessas conversas, que eu teria acesso e nem precisava ouvir atrás da porta. Estava tão fraca no momento que achei estar sonhando. Enganei-me, não era sono no fim das costas, era entorpecimento. Um cansaço que me tirava a vivacidade. O aparente sono me fez fechar os olhos numa busca pelo então fim do sofrimento. Meu corpo inerte se levava por esse torpor, por um peso que sentia nos próprios músculos. Quieta, tinha esperanças de relaxar um pouco, que as coisas se dissipassem.

Acho que eles pensaram parecido, de que eu tinha pegado no sono. Só fiquei na minha enquanto me estabilizava, para todo caso. Seria duro encará-los, como todo episódio desses se segue. Para minha surpresa, Vini é o primeiro a puxar assunto e eu senti vontade de refreá-lo, porque eu não gostava de ouvir quando falavam sobre o assunto da minha fobia. Em seu colo, encolhida, ele ainda fazia carinho em mim.

Mantinha o toque sobre meus cabelos, meu rosto, minhas mãos. Calma não era bem meu estado se meu espírito ainda se sentia perturbado. Embaixo de mim meu namorado não se mexia muito, nem aos meus pés eu sentia os movimentos de meu irmão. Até a quietude deles me era estranha.

– Vocês sabem ou imaginam a razão desse medo... medo irracional dela? Eu... queria poder fazer algo, qualquer coisa, que não fosse só consolar. Ela fica tão frágil. É um momento que fica tão desarmada que tenho medo de ela se afastar depois. Já fez isso uma vez e eu a enfrentei com o pouco que eu sabia. Na verdade, nada. Eu... não deva ter feito isso.

Soa arrependido. Menciona aquela manhã que pedi para esquecer o que havia acontecido pela madrugada de trovões, quando não tive como fugir e fui parar sob seus braços. Sob seu toque, eu me conservo inerte, como se estivesse dormindo mesmo. Atenta a minha própria respiração, para que não me entregue, faço com que suba e desça já mais sossegada. Na outra ponta do sofá, meu irmão suspira carregado por uma frustração que ambos bem conhecemos: o dia seguinte das crises. Tão ruins quanto os próprios “surtos”.

– Ela tende a ficar assim. Comigo mesmo ela às vezes mal toca no assunto. O dia seguinte sempre é de silêncio, ela fica reclusa. Temos uma teoria na família sobre a crise. Não sei se um dia ela comentou ou se um dia comentará com você, porque a verdade é essa, ela sente muita vergonha disso. Não é algo que ela possa controlar.

Aperto a almofada que tenho abraçada. De tal forma, claro, que eles não possam ver. Era estranho ouvi-los, não poderia simplesmente dar uma alerta de que acompanhava cada palavra dita. Como uma intrusa nessa bolha deles, devia ficar parada e não esboçar qualquer movimento brusco. Só que... Porra, era custoso.

E o que Murilo fala é bem verdade. Nem eu sei como será o dia de amanhã. Normalmente quando acontece em casa, assim, com todos meus familiares, Murilo sempre toma a frente de ir me amparar – e ele veio. Agradeço, pois com meus pais é pior, porque não quero os aterrorizar. Murilo já está acostumado, até mesmo em ser ignorado no outro dia. Esse não é um controle que eu possa roubar.

Ele não para por aí. Há um pesar nele que nem sei bem como interpretar. Isso de não poder mover um músculo me irrita.

– Eu poderia não falar nada, mas eu quero que você saiba. Porque ao contrário do que muitas pensam, não foi só ela que ficou com essa espécie de trauma, até hoje tenho meus medos particulares e quase ninguém sabe.

– Sério?

Murilo se mexe inquieto na ponta do sofá onde está, suspira meio derrotado. Fico tensa só de imaginar o que poderia ser. Como assim quase ninguém sabe?

– O fato é que, quando a Lena tinha uns 3 anos, ela... ela... foi raptada. A mulher que a carregou trabalhava numa casa da vizinhança, parece que não batia bem da cabeça. Eu tinha mal completado 10 anos, me senti a pior pessoa do mundo porque descuidei dela. Eu devia ter sido seu responsável, seu segurança... Ela era tão pequena e inocente. Nossos pais não me culparam, mas eu vi, eu lembro bem que vi raiva nos olhos deles, coisa que eu nunca tinha visto antes, não daquela forma. Nunca esqueci essa imagem enquanto toda a família se mobilizava para encontrá-la.

Sua confissão me perturba, não sabia que era... isso.

Esse Murilo expressivo eu mesma quase não vi de todos os momentos que passamos juntos. Ele que fala que guardo as coisas, mas eu não reclamo do que ele guarda. Não sabia desse seu lado e isso me assusta um pouco. Na pausa que faz, dá um outro suspiro, daqueles que é mais um fungado para se controlar do que propriamente só um suspiro derrotado. Ele estava... chorando?

– Eles me perdoaram, claro, eu era criança e não vi os sinais certos. Desde então, não deixo nada passar sem o mínimo cuidado, fico louco só de pensar, e cheguei ao ponto de me tornar obsessivo por isso. Nunca falei isso pra ela, tenho vergonha de ter... ter sido um fraco naquela época. Eu devia, sabe, ter tido mais... mais cuida-ado. E-ela estaria dormindo tranquila esssssa noite sssse... se não fosse isso, e em todas as noites que-e houve e haverá trovões. Eu sssou o culpado.

Aperto a almofada a que me agarrava mais forte, me aguentando para não chorar junto. Deus, como era difícil manter uma respiração serena de quem estava “dormindo” quando o que mais se queria era deixar um espasmo extravasar! Sob minhas pálpebras, as lágrimas vinham novamente. Como eu iria engolir esse bolo que se fez na garganta sem que Vini notasse? Eles iriam me perceber em alerta!

Meu irmão, meu pobre irmão, estava se abrindo finalmente, quebradiço, e nem era para mim, pela mesma vergonha que sinto. Eu não aguento ver ninguém chorar sem fazer o mesmo, mas me esforço puxando o máximo de mim, por ouvi-lo desse jeito, embargado. Na minha cabeça passa muitas cenas de como ele ficava maluco quando eu dava uns sumiços, ou mesmo de quando as coisas eram tão simples e ele fazia um alvoroço todo. E eu nunca entendia o porquê daquilo.

– Que é isso, cara, você não é culpado. Aconteceu, só isso. Poderia ter acontecido com qualquer um.

– Mas eu me sinto responsável. E não é algo que eu possa evitar. Quando eu me percebo, já fiz tudo. Além do que isso me queima por dentro, tenho que enfrentar a ira dela que, eu sei, com razão ela me enfrenta. Mas... ah... eu não consigo. Brigamos tanto por isso que conta nem mais existe. E muitas outras virão. Quero tanto seu bem que não me importo de ser o vilão.

Eu não quero mais ouvir! E não sei como sair... Eles iriam saber que estava ouvindo; senão, que havia um clima estranho e pesado. Sou uma intrusa presa na conversa deles a ponto de qualquer hora me entregar num sobressalto.

– Lembro de algumas vezes ela chateada por isso. Acho que imagina ser ciúmes, como eu também pensei. E que belo par de homens ela foi arranjar, porque, não sei como dizer, mas eu nunca fui de muitos ciúmes. Com ela, sei lá, às vezes... surto. Você mesmo já me bateu uma vez. Saiba que minha intenção não é de machucá-la, mas pode bater de novo, eu aguento.

Murilo funga no meio de um riso sem vontade. Limitada ao sentido da audição, prestava atenção em cada mínima flexão e sentido de voz deles. Não queria ouvir, verdade, tinha lá minhas curiosidades, mas desse jeito... Não estava em posição de negar.

– Nãm... eu não preciso. Espero não precisar, quer dizer. Ela sozinha já nos põe bem malucos. Mas... por que acha que tem essas crises? Digo, os seus ciúmes?

– Te confesso que já pensei muito a respeito. A única conclusão que tirei foi que... quando tudo começou, eu sempre quis a atenção dela. E, nossa... parecia que eu nunca tinha, parecia que sempre alguém a roubava um pouco de mim. Até da relação de vocês eu senti. É idiota, é irracional, eu sei, mas eu... sinto. Não queria que tudo meu com ela fosse curto... mesmo naquela situação tensa que nos colocamos, com a história de minha mãe, de Filipe, e até mesmo da Becca.

– E você sabe que não é bem assim, né? Ela esteve com você desde o começo.

– Pior é que eu sei. Bom, agora eu sei. Como você disse, eu não via os sinais certos.

– Acho incrível que ela tenha uma força tamanha de peitar todo mundo. Ela é pequena, mas não é metade. Acredita que ela já chegou a me ameaçar com um vídeo, de postar um mico meu, só para eu dar um espaço maior pra ela?

Murilo brinca um pouco, carregado pelo embargo, no entanto. Fala com admiração, busca calma para que cada palavra seja dita com firmeza. De qualquer forma, ouvi-lo no aqui e agora era algo... num sei, não consigo descrever bem. Não estava diferente deles dois, também era uma bagunça.

– Acredito porque sei que ela fez. Ela me contou. Na verdade, ela me deu uma cópia. Disse que era segredo e que tinha outras mais com outras pessoas. Não era para eu ver até que ela pedisse, só que guardasse. Acho que ela me mataria só por te falar isso.

É, eu mataria mesmo.

De fato, poderia ser uma boa hora para me levantar e fazer o serviço ali mesmo. Não era pra ele saber disso! Independente de ser uma coisa idiota, não era pra saber assim.

– É, às vezes ela consegue ser bem brava. Tenho até medo de perguntar como ela conseguiu essas imagens. Começou com uma brincadeira e se tornou coisa séria.

– Na semana desse tal dia, lembro de ela ter falado algo do tipo por alto sobre as imagens. Só fui mesmo descobrir como ela fez isso naquela festa do chá de bebê. Aquele enfermeiro, o Diogo apareceu lá, era um dos convidados. Ele insinuou uma coisa e eu... eu meio que pirei, achando que eles tinham tido algo. Uma outra vez, logo que saí do hospital, ele havia insinuado que sabia do rolo das cópias. Então ela me explicou... que recorreu a Diogo para conseguir o vídeo de segurança. Aí, depois da história da delegacia, eu perguntei por que ela tinha agido de tal forma com Filipe. Me disse que às vezes ela só fazia as coisas, sem antes pensar. Que o vídeo confirmaria.

– Legal, então você viu.

– Vi. Não sei se outros viram.

– Pois é, ela me fez prometer que ia maneirar a proteção com ela, sob a ameaça do vídeo. Eu disse que não me importaria, nem que esse vídeo fizesse sucesso no Japão, eu aguentaria a vergonha porque o importante era ela. Fiquei sob aviso, de qualquer maneira. Até achei que ela fosse postar por causa dessa confusão de agora, do Eric. Não sei se por falta de coragem ou porque me punia pela indiferença, ela não postou. Não que eu saiba.

– Não sei também.

Vinícius deu de ombros, senti. Ás vezes sentia que falava por gestos. Ainda assim, ele permanecia com leves toques de carinho em mim. Era sim reconfortante, mesmo com essa mistura de sentimentos por estar ouvindo a conversa.

– Cara, só sei que fiquei muito transtornado quando tava preso naquele trânsito e você me ligou falando de Filipe. Ainda por cima teve os trovões. Fiquei tão alucinado, mais tão alucinado, que quando cheguei na delegacia, achei que eu quem seria preso. Eu poderia ter feito muita besteira. E de quebra, ainda ficaria na mesma cela de Filipe. O cara pode ser seu pai, mas eu iria avançar nele.

– Te entendo, porque eu mesmo fiz isso, lembra? Faria de novo se preciso. Mas agora não sei, desde que conversei com ele no Natal, falei com Iara também... ela sentiu que eu tava mal com tudo que tava acontecendo. Foi estranho. Acho que estava bem estampado na minha cara que era pela Milena. Acredite ou não, ela me deu palavras de força. Disse que ia viajar de carro com Filipe e me ofereceu carona. Foi a minha chance, porque era caminho.

– Então você tá de boa com eles? Te vi diferente com ele na rodoviária.

Eu não sabia bem dessa parte, não havia falado com Vini sobre o assunto de Filipe até então. Descobrir as coisas assim é um tanto estranho e desconfortável. Primeiro por eu ter que me segurar, segundo por depois não saber como abordar sem dizer que eu estava ouvindo pra começo de conversa. Às vezes odiava como as coisas simplesmente pipocavam para mim, respostas dadas antes das próprias perguntas. Quando digo que essas coisas aparecem pra mim, ninguém acredita.

– Não diria de booooooooa com eles. Sei lá, um recomeço, uma trégua, o que seja. Ali só estava o agradecendo... Mesmo com o “histórico” dele com a Milena, sei que ele torce pela gente. Estamos na mesma praticamente.

– Briga em família é uma coisa, viu. Eu falo por mim com ela. No outro dia de madrugada, naquele mesmo dia que você saiu do hospital... Cara, nem no escuro ela queria me ter por perto. Depois tivemos uma pequena discussão quando Flávia foi embora. Essa...

Meu irmão soa pasmo enquanto relata nossas últimas discussões, o que me lembra que numa delas ele exclamou que não sabia como “aquilo”, de ter se metido com o Eric, desencadeou “isso”, nossos problemas. E é justamente sobre essa que ele logo comenta. Sua pausa me deixa num suspense tremendo, porque escutava a decepção sob suas palavras. Aquilo estava sendo difícil de falar, e tornava tudo pior ainda quando o embargo dele parece mais forte para descrever o que aconteceu no seu lado da história.

Me perturbou bastante, devo dizer. Me manter distante dali me parecia um esforço hercúleo que nunca tive a oportunidade de fazer, e que era extremamente necessário para a situação. Ele estava quebrado. Dessa vez chorou enquanto descrevia.

– Essa briga... foi mais dura ainda. Tão dura que... num me aguentei, me meti no quarto e... ch-chorei. Estou totalmente sem o controle da situação, não sei o que-e fazer, como proce-eder. Ache-ei que ela estivesse me da-ando uma chance... No Natal tanta coisa amainou. Aí veio aque-ela história da boate e depois brigamos de novo no hospital, a história do ladrão. E-e-eu não aguente-ei. Ela me odeia. E eu me odeio por amá-la tanto assim.

Para! Para!

A cena daquela noite estava na minha cabeça novamente para meu tormento.

Em relutância, não tive muito como impedir que uma lágrima descesse. Torcia para que Vinícius estivesse tão atento a meu irmão que não sentisse a engolida forçada que inventei de dar, que não visse que uma lágrima nova estava descendo. Ele se remexe e não posso olhar como, adivinho que seja para o consolo de meu irmão.

– Hey, cara, não... Ela não te odeia. Mesmo que ela fale isso, que crispe os olhos, que te machuque assim, ela te ama. Sério. Ama tanto que talvez seja essa sua defesa. Se tiver alguém pra odiar, seria eu, que sou de fora. Mas você... nunca vi irmãos assim como vocês que me espanta saber que já tiveram uma relação sombria.

– Tá tudo tão virado de cabeça pra baixo...

– Sinceramente, eu não sei o que te dizer. Te entendo, claro, mas... eu também sou vítima de muitos cuidados, você sabe. Já discuti muito com a Milena sobre isso, ela pegava o lado da minha mãe e eu... pegava o seu. Ela sempre questionou como eu poderia ficar do seu lado uma vez que minha mãe fazia o mesmo que você comigo. Apesar de a Lena apoiar minha mãe, ela sempre... quis fazer o justo, de abrir os olhos de todos, arrumar a bagunça. Eu, no entanto, escondi por você o caso de Eric, quando, na verdade, eu deveria ter ajudado a resolver. Sei bem o que é ter marcação... eu devia te mostrar como melhorar, não como piorar.

– Não te culpo. Eu sou dono de fazer merda, ela vive dizendo isso. Devo fazer muita mesmo, porque né, eu devia ser mais controlado. Todo mundo me diz isso. Do outro dia que me tranquei no quarto, eu até liguei pra Aline. Eu tinha que falar com alguém, e não poderia ser ninguém de casa. Vez e outra alguém sacava algo estranho. Do mesmo jeito que ela escondia, eu também tenho minha vergonha.

– E o que a Aline disse?

– Ela me acalmou. Disse para dar um tempo que as coisas iam se ajeitar. Que eu não fosse tão apressado ou fizesse pressão que as coisas poderiam desmoronar mais. Além de idiota, agora ela deve me ver como um maníaco. Devo tê-la assustado também.

– Talvez sim, talvez não... e é, as coisas andam meio difíceis, hein. Mas você não disse o porquê da aversão dela pelos trovões.

– Ah, verdade. É que, quando ela foi raptada, mesmo que tenha sido por dois dias, as últimas horas foram de muitos trovões. Nunca soubemos o que realmente aconteceu com ela durante esse tempo... Primeiro porque ela tinha 3 anos e não sabia explicar tudo, e segundo porque a mulher era uma louca, não dizia coisa com coisa na época. Lembro de que quando meus pais chegaram com ela nos braços, eu mal pude me conter de apertá-la comigo.

Por favor, não fale mais nada. Encerre a conversa. Encerre.

Me deixem no branco mesmo. Eu não quero saber disso.

Isso dói.

Dói por escutar, dói por me fazer de adormecida.

– ...estava naquela ainda dos meus pais, então me mantive afastado. Na madrugada não dormi enquanto não fui ao quarto que estava, no dos meus pais. Mamãe adormeceu a envolvendo. Me esgueirei e me comprimi na cama junto e foi a primeira noite de trovões que eu dormi com ela. O caso mesmo só foi começar quando ela tinha uns 9 anos... foi a primeira crise. Nossos pais tentavam conter e aos poucos foram me deixando tomar conta. Ela dizia que não tinha sonhos, pesadelos ou algo do tipo, nem a remota memória do que aconteceu naqueles dois dias de rapto, mas algo certamente ficou marcado. Se não fosse por nós que contamos, talvez ela nem soubesse que tinha sido sim levada.

– Uau. Eu nunca poderia imaginar uma coisa dessas...

– É, e se não fosse por você essa noite, e-e-eu não sei o que ela faria comigo.

– A gente vai dar um jeito, cara. Confia nisso. A gente vai dar um jeito em tudo.

– É o que espero... Melhor colocá-la de volta na cama. Lá ficará numa posição melhor, está mais estável. Podemos ficar por lá, mas se quiser subir, pode ir que eu fico com ela.

– Nam. Fico com vocês. Posso carregá-la.

Vinícius parece se ajeitar, porém Murilo o corta. Tão dolorido quanto de voz falha. Ele queria me carregar, porque para ele era questão de necessidade, principalmente por causa de tudo isso que temos vivido em brigas. Ao perceber isso, Vini cede.

– Me deixa fazer isso. Preciso.

– Tudo bem.

Quando sinto que estou sendo erguida, me mexo como se fosse um ato inconsciente. Não era. Na verdade, era algo bem pensado para ter essa aparência quando que a intenção real da coisa era me livrar dos vestígios que toda a conversa que ouvi deixou em mim. Pelo menos os mais evidentes, como as lágrimas que conseguiram descer de minha fortaleza. Não saberia como encarar qualquer um dos dois, ainda mais com todas essas informações novas, nem como deveria me comportar... Esboçar qualquer coisa sabendo de tudo isso era estranho.

Que devo fazer?

O debate na cabeça permanece mesmo quando já me colocaram na cama, na qual eu mesma finjo ter acordado minimamente para me enrolar. Murilo não me deixa um instante, senta-se e deita-se ao meu lado mesmo que fosse uma cama de solteiro. Ajeita meu travesseiro, meu lençol, minha franja. Ainda ouvia seu fungado leve, o nariz obstruído pela emoção que passou. Não sei onde Vinícius foi parar, deitada de lado não via mais que meu próprio irmão virado para mim. Só sei que amanhecia o dia porque uma pouca claridade adentrava por frestas.

Dolorida de tudo eu não imaginei que poderia chegar onde cheguei. Tampouco de que, ainda cansada e envergonhada, eu pudesse ficar encarando meu irmão olho no olho, coisa que sempre evitei fazer numa crise. Não dessa vez, algo estava diferente.

Eu estava... compreendendo-o?

– Durma. Estamos aqui. Acabou.

E eu fecho os olhos devagar, sabendo que os trovões tinham acabado, não a confusão que era novamente minha cabeça. Aquilo não tinha acabado, renovara. Antigas questões estavam, enfim, voltando.


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Notas finais do capítulo

Não sei vcs, mas "Quero tanto seu bem que não me importo de ser o vilão" foi uma das partes que mais me tocou ='/
PERDOA ELE, MILENA, PERDOA!



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