Cam e eu nos entreolhamos antes de explodir em risos. Os meus, nervosos e frenéticos, enquanto sua risada rouca tilintava suavemente se propagando pelo ar ao redor. Apertei os nós dos dedos, os estralando enquanto batia as asas várias vezes tentando me manter quase no mesmo lugar.

-O que foi, Givens? –Ele ergueu uma sobrancelha grossa e negra para mim.

O rosto angelical de Cam trazia uma profunda marca cravada na testa causada pela desconfiança e ele franzia os lábios rosados. A pele dourada estava marcada com recém-adquiridas marcas de batalha sendo que só podiam ser feitas apenas por uma seta estelar, descendo por seu pescoço.

As encarei por alguns segundos até perceber que ele me observava, quando senti o rubor pintar meu rosto.

-Nada. –Me virei e segui o caminho para o Colorado em longas batidas de asa.

Seguimos algum tempo em silêncio. Cam tentou começar um assunto umas cinco vezes, embora eu respondesse em monossílabos e este morria rapidamente.

Quando trinta minutos se passaram, já sobrevoávamos uma montanha de neve no Colorado. Me encolhi dentro do cardigan, apertando as bordas da manga por dentro e recolocando freneticamente o gorro de panda na cabeça, mesmo sabendo que eu ficava ridícula com ele.

Ouvi a risada rouca de Cam a alguns metros atrás.

-Que foi? –Me virei, checando antes se não bateria minhas asas nele.

-Nada. Gostei do gorro. –Ele murmurou, dando de ombros.

Mostrei a língua e ele cerrou os olhos me fazendo corar.

-O que é agora?

-Você é linda. Só isso.

-Vai dar o...

-Epa, epa. Anjos não falam essas coisas. Principalmente você, Gabbe. –Ele me interrompeu sorrindo de forma provocante.

Dei de ombros sentindo minha testa se franzir. Ele tinha razão. Eu jamais havia xingado, não planejava começar agora. Mas algo em Cam me fazia querer ser diferente da simples Gabbe perfeitinha e idiota, embora eu jamais fosse admitir.

-E demônios não paqueram anjos. –Grunhi olhando para baixo. –Chegamos no Colorado. Fale o que tem pra falar logo.

Cam hesitou.

-Tá com frio? –Disse, por fim, tirando o casaco de gola alta pela cabeça e me entregando.

Encarei suas mãos antes de pegar o casaco. Estavam levemente molhadas. Eu não podia acreditar que Cam suava falando com garotas. Garotas? Havia algo estranho em tudo aquilo, mas do que eu podia sequer me obrigar a imaginar. Ele não estava suando por causa de mim. Eu tinha a maior certeza que se pode ter quanto a isso. Mas havia algo muito mais importante por trás de tudo aquilo.

-Tem um casebre lá embaixo de um amigo meu...

-Você tem um amigo nessa área polar? –O interrompi, irônica.

 -É. –Ele disse, indiferente. –Se não se importar em ficar em algum lugar que não seja cinco estrelas...

Encarei o casebre a cerca de cinqüenta metros abaixo de nós. Feito com madeira de mogno brilhante, era como uma visão quente e aconchegante no meio do gelo. Mergulhei antes que Cam se desse conta e senti o ar congelar meu rosto e meus olhos lacrimejarem.  Quando cheguei à porta do casebre, esperei por alguns segundos pela entrada triunfal de Cam, quem deslizou os pés sobre o gelo pousando delicadamente e enrolando as asas novamente para dentro de sua pele. Comecei a fazer o mesmo quando senti a mão de Cam acariciando a borda de minha asa. Era ótimo. Meus lábios não conseguiam se mover e eu me encontrava ligeiramente paralisada. Os calafrios percorriam toda a minha espinha enquanto os dedos de Cam deslizavam de uma borda à outra e seus lábios tocavam alguns pontos das asas. Quando fomos interrompidos pelo suave girar de uma chave do outro lado da porta de madeira escura do casebre. Cam pulou mais rápido do que eu podia imaginar ser possível, se afastando enquanto eu enrolava as asas da melhor maneira que pude de volta e a porta se abria lentamente.

-E aí, anjinhos? Querem entrar?

Um rapaz alto e esguio me encarava. Sua face cheia de sardas sorria enquanto os olhos verdes se apertavam sob os cabelos ruivos.  Os lábios vermelhos estavam ligeiramente arroxeados e os olhos eram adornados por longos cílios ruivos. Usava roupas de pele que eu esperava serem sintéticas e grandes galochas amarelas.

-Claro, Sam. –Eu pude sentir a pontada de ressentimento na voz de Cam.

-Que bom, eu fiz chocolates quentes. –O rapaz não tirava os olhos de mim.

-Ah, obrigada! Sou Gabbe.

Sam estendeu uma mão para mim, mas eu o puxei suavemente para perto e beijei sua bochecha, como fazia de costume. Isso fez com que o rapaz adquirisse uma cor mais vermelha do que o normal e com que eu sorrisse por dentro.

-Sam Jerkins. Prazer. –Ele sorriu.

-Tá, tá. Temos assuntos importantes, crianças. –Cam falou, já dentro do casebre e pendurando sua jaqueta em qualquer lugar.