História de Um Grande Amor escrita por Acyd-chan


Capítulo 5
Capítulo 5




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Uma semana depois, o sol brilhava, radiante. Serena e Hotaru, sentindo falta dos freqüentes passeios no cam­po, decidiram passar a manhã explorando a cidade, a come­çar pelo distrito das lojas.

-# Eu não preciso de outro vestido — Serena protestou, enquanto andavam pela rua com as criadas a uma distância respeitável logo atrás.

-# Nem eu, mas é divertido ver vitrines. Além disso, po­deremos comprar algumas quinquilharias com os trocados que juntamos. Ah, seu aniversário não vai demorar e não seria má idéia comprarmos um presente...

-# Pode ser.

Percorreram lojas de roupas, chapelarias, joalherias e doceiras, antes de Serena encontrar um estabelecimento que lhe atraísse a atenção.

-# Veja só este lugar. Não é magnífico?

-# O que há de tão extraordinário? — Hotaru espiou dentro da elegante livraria.

Serena apontou um requintado exemplar de Le Morte d'Arthur, de sir Thomas Malory. Era um volume ricamente encadernado e ela não desejava mais nada a não ser sentir o aroma que emanava do livro.

Pela primeira vez na vida, via algo que realmente desper­tava seu desejo de possuir alguma coisa, de esquecer a eco­nomia e o lado prático. Deu um suspiro profundo.

-# Acho que agora entendo quando a ouço falar sobre sa­patos.

-# Sapatos? — Hotaru repetiu e olhou para os pés. Serena não se preocupou em dar explicações, embeveci­da pelos filetes de ouro que enfeitavam as páginas.

-# Nós já lemos esse livro — Hotaru alegou. — Creio que foi há dois anos, quando a srta. Lacey, que foi nossa preceptora, indicou. Não se lembra? Ela ficou horrorizada quando soube que ainda não o tínhamos lido.

-# Não se trata apenas de ler — Serena falou com o nariz colado no vidro. — O livro, veja, não é a coisa mais linda do mundo?

Hotaru fitou-a com expressão de dúvida.

-# Bem, não exatamente.

Serena sacudiu a cabeça e olhou para a amiga.

-# Suponho que isso deve ser como a arte. O que faz uma pessoa ficar enlevada não desperta interesse em outra.

-# Mas é apenas um livro.

-# Não, é uma obra de arte.

-# Parece velho.

-# Eu sei. — Serena suspirou, feliz.

-# Pretende comprá-lo?

-# Se eu tivesse dinheiro suficiente...

-# Pois acho que deveria fazê-lo. Vem economizando há anos, guardando o dinheiro dentro do vaso de porcelana que Darien lhe deu como presente de aniversário há cinco anos.

-# Seis.

-# Cinco ou seis, tanto faz. — Hotaru exasperou-se com a exatidão da amiga. — O ponto primordial é um só. Se o dinheiro que tem guardado é suficiente para comprar o livro que tanto deseja, deve adquiri-lo para celebrar seu vigésimo aniversário, Nunca a vi pensar em nada para si mesma.

Serena afastou-se da tentação da vitrine. O livro fora colocado num pedestal, aberto na página central. Uma ilus­tração ricamente colorida retratava o rei Arthur e Guinevere.

-# Deve ser muito caro — alegou com tristeza. Hotaru deu-lhe um empurrão discreto.

-# Se não entrar e perguntar, nunca saberá!

-# Tem razão.

Serena fitou a amiga com um sorriso que traduzia a excitação e o nervosismo que a acometiam e entrou na loja. A aconchegante livraria era decorada em tons sóbrios, com poltronas de couro em lugares estratégicos para aqueles que preferiam sentar-se e folhear os volumes.

-# Não vejo o proprietário — Hotaru sussurrou.

-# Ali. — Serena apontou com a cabeça para um homem idoso e calvo. — Ele está ajudando um cliente a encontrar um livro. Vamos esperar que ele desocupe. Não quero inco­modar.

As duas esperaram, pacientes, por alguns minutos en­quanto o vendedor estava ocupado. De vez em quando ele olhava as duas com cenho carregado, o que deixou Serena perplexa. Bem-vestidas, elas não deixavam dúvida de que poderiam comprar a maioria dos livros ali existentes. Fi­nalmente o livreiro terminou de atender o cliente e dirigiu-se a elas.

-# Eu estava pensando, senhor... — Serena começou.

-# Esta é uma livraria para cavalheiros - anunciou o homem, hostil.

-# Ah. — Ela recuou, desconcertada pela atitude.

Mas desejava desesperadamente o livro de Malory. Por isso engoliu o orgulho, sorriu com doçura e continuou: — Peço des­culpas, eu não sabia. Esperava que...

-# Eu já disse que esta é uma livraria para cavalheiros! — Ele estreitou os olhos miúdos. — Tenham a bondade de retirar-se.

Serena irritou-se com a insensibilidade do homenzinho.

-# Vamos embora. — Hotaru puxou-a pela manga. — Serena não se mexeu.

-# Eu queria comprar um livro.

-# Não duvido — o sujeito declarou com voz desagradável.

-# A livraria das damas fica a duas quadras daqui.

-# Naquela loja não tem o que eu quero. O homem deu um sorriso pretensioso.

-# Então posso afirmar que a senhorita não deveria ler o livro.

-# Não creio que a sua função seja fazer tal julgamento — ela enfrentou-o com frieza.

-# Serena! — Hotaru sussurrou, com olhos arregalados.

-# Espere um pouco, Hotaru — pediu sem desviar o olhar do sujeito repulsivo. — Eu lhe asseguro, senhor, que tenho dinheiro. Se o senhor me permitir examinar Le Morte d'Arthur, talvez eu possa comprá-lo.

O sujeito cruzou os braços.

-# Não vendo livros para senhoras.

Mas que afronta!

-# Como é que disse?

-# Saiam ou mandarei tirá-las à força.

-# Eu garanto que cometeria um grande erro, senhor — Serena contestou com rudeza. — Por acaso sabe quem somos? — Ela não tinha por hábito exibir a posição social, exceto quando a ocasião exigia.

-# Não me importo com isso. — Ele não pareceu impres­sionar-se.

-# Serena! — Hotaru implorou, constrangida.

-# Sou a srta. Serena Tsukino, filha de sir Kenji Tsukino, e ela — Fez um gesto floreado com a mão —, é lady Hotaru Chiba Bevelstoke, filha do conde de Rudland. Por­tanto sugiro que reconsidere seus pontos de vista.

O livreiro enfrentou a pose altiva com outra em igual me­dida.

-#Eu não me importaria nem que fosse a maldita princesa Charlotte em pessoa. Agora saiam da minha loja.

Serena estreitou os olhos antes de se mexer. Já fora péssimo ter sido insultada. Mas denegrir a memória da prin­cesa era insuportável.

-# Ainda vai se arrepender disso!

-# Fora!

Serena segurou o braço de Hotaru, puxando-a. Depois de saírem, bateu a porta com força.

-# Pode acreditar numa coisa dessas? — falou, sem conter a raiva. — E espantoso! Isso é um crime. Isso é...

-# Uma livraria para homens. — Hotaru completou.

-# E daí?

Hotaru empertigou-se com o tom beligerante.

-# Existem lojas para cavalheiros e outras para damas. É como são as coisas.

Serena fechou as mãos.

-# Pois eu lhe digo que isso é uma estupidez absurda!

-# Não fale assim!

Serena corou pelo linguajar de baixo nível que usara. —Ele me deixou realmente alterada. Já me viu usar essas palavras antes?

-# Não, e também não quero saber quantas imprecações estão passando pela sua mente.

-# É asinino! — Serena não se conformava. — Um ab­surdo sem tamanho! Ele tem algo que eu desejo comprar e tenho o dinheiro. É tão simples.

-# Por que não vamos até a livraria das damas? — Hotaru sugeriu.

-# Era o que eu faria em circunstâncias normais. Preferia não gastar nem um níquel na loja daquele homem horroroso. Mas duvido que eu possa encontrar outro exemplar do livro. Tenho certeza de que é único. — Ergueu a voz diante da injustiça. — O pior...

-# O que é?

Serena fitou a amiga com raiva, como se a outra tivesse culpa.

-# Mesmo que houvesse duas cópias, embora eu tenha certeza de que uma segunda não existe, a livraria das se­nhoras provavelmente não teria, pois ninguém imaginaria que uma mulher quisesse ler tal livro!

-# Acha que não?

-# Sem dúvida. A livrara para mulheres deve estar cheia de livros de Byron e de romances da sra. Radcliffe.

-# Pois eu gosto dos dois autores. — Hotaru pareceu ofen­dida.

-# Eu também, mas nem por isso deixo de apreciar outro gênero de literatura. E eu não acho que aquele homem — ela apontou a vitrine da loja—tenha capacidade para decidir o que devo ou não ler.

Hotaru fitou-a por alguns segundos.

-# Terminou?

Serena alisou as saias e suspirou.

-# Terminei.

De costas para a livraria, Hotaru segurou o braço da amiga e olhou por sobre o ombro.

-# Pediremos a papai ou a Darien para comprar o livro.

-# O problema não é esse. Não posso acreditar que não esteja tão aborrecida como eu.

-# Quando foi que se tornou uma paladina? Sempre me considerei a mais intransigente das duas.

O queixo de Serena já estava dolorido de tanto apertá-lo.

-# Nunca aconteceu algo que me deixasse tão alterada.

-# Terei de me lembrar para não provocar você no futuro.

-# Vou conseguir aquele livro.

-# Ótimo, então vamos...

-# E ele saberá que a obra está comigo. — Serena olhou para trás com expressão combativa, seguindo para Rudland House.

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-# Não se preocupe, Serena — Darien disse com boa vontade. — Eu comprarei o livro para você.

Ele havia lido o jornal e pensava na vida como homem sem compromisso, quando Hotaru irrompeu na sala e explicou que a amiga precisava desesperadamente de um favor.

Havia sido tudo muito engraçado, principalmente o olhar mortífero que Serena lançara para a amiga pela ênfase no uso do advérbio.

-# Não quero que compre o livro para mim — ela resmun­gou. — Quero que vá comigo para eu comprá-lo.

Darien recostou-se na poltrona.

-# E isso fará diferença?

-# Uma diferença enorme.

-# Enorme — Hotaru repetiu, rindo.

Darien desconfiou que a irmã também não entendera. Serena fitou-a com olhar faiscante e Hotaru recuou.

-# Por que está com raiva de mim? Eu a estou ajudando!

-# Mas não me deu razão no ponto principal dessa história toda. — Serena fitou Darien com ferocidade. — Não poder comprar um livro em determinada loja só porque sou mulher? Darien sorriu sem se alterar.

-# Querida, há certos lugares onde damas não podem entrar.

-# Não estou pedindo para freqüentar um dos seus pre­ciosos clubes. Quero apenas comprar um livro. Não vejo ne­nhuma inconveniência nisso. Além do mais, trata-se de uma antigüidade.

-# O dono da loja pode decidir para quem quer ou não vender.

Ela cruzou os braços.

-# Pois ele não precisava ser tão arrogante. Deveria haver uma lei que impedisse aos livreiros barrarem a entrada de mulheres nas suas lojas.

Darien encarou-a irônico.

-# Por acaso andou lendo Mary Wollstonecraft?

-# Mary quem? — perguntou, distraída.

-# Ainda bem.

-# Por favor, não mude de assunto, Darien. Concorda ou não que eu deveria poder comprar aquele livro?

Ele suspirou, exausto pela inesperada teimosia, ainda mais a respeito de um livro.

-# Por que as mulheres deveriam entrar numa livraria destinada aos homens? Vocês nem mesmo votam.

-# Isso é outra coisa! — Ofendida, sentiu o rosto corar de tamanha irritação.

Darien entendeu que havia usado a tática errada.

-# Por favor, esqueça o sufrágio. Iremos juntos comprar o livro.

-# Irá mesmo? — Os olhos de Serena brilharam de en­tusiasmo. — Obrigada!

-# Vamos na sexta-feira? Não tenho compromisso à tarde.

-# Eu também quero ir — Hotaru interveio.

-# De maneira nenhuma — Darien disse com firmeza. — Não tenho paciência para lidar com as duas ao mesmo tempo. Meus nervos não suportariam.

-# Seus nervos?

Ele olhou para Hotaru com a autoridade de irmão mais velho.

-# Estão abalados por sua causa.

-# Turner! — Hotaru exclamou. — Serena!

-# Não podemos ir agora? — Serena ignorou a discussão. — Não quero que o livreiro se esqueça de mim.

-# A julgar pelo relato de Hotaru sobre o incidente, duvido que isso aconteça.

-# Por favor, não podemos ir hoje? Por favor.

-# Já percebeu que está implorando?

-# Não faz mal.

-# Talvez eu possa usar essa situação em benefício próprio.

-# O que está querendo dizer com isso?—Serena fitou-o, inexpressiva.

-# Nunca se sabe o que poderá ser pedido em troca.

-# Como eu não tenho nada que possa lhe interessar, avi­so-o para esquecer seus planos funestos e levar-me até a livraria.

-# Está bem, vamos embora.

Darien percebeu que ela se conteve para não pular de alegria.

-# Não é longe daqui — disse. — Podemos ir a pé.

-# Tem certeza de que não vai me levar? — Hotaru seguiu-os pelo hall.

-# Fique em casa. — Darien não se demoveu da idéia e fitou Serena, que abria a porta. — Alguém terá de chamar o vigia, se não voltarmos inteiros.

Dez minutos mais tarde, Serena parou na frente da li­vraria da qual fora expulsa pouco antes.

-# Está com uma expressão de assustar qualquer um — Darien murmurou a seu lado.

-# Ótimo. — Ela se adiantou, mas foi segura pelo braço.

-# Deixe que eu entre primeiro — ele sugeriu, divertindo-se. — A sua aparência vai matar o homem do coração.

Serena franziu o cenho, mas deixou-o passar. Dessa vez o sujeito aprenderia uma lição. Ela viera armada com um visconde e boa dose de fúria. O livro seria seu.

Uma sineta tocou quando Darien entrou na loja, seguido por Serena.

-# Em que posso ajudá-lo, senhor?—o livreiro derreteu-se em atenção.

-# Bem, estou interessado em... — Darien olhou ao redor.

-# Naquele livro — Serena disse com determinação, apontando o volume exposto na vitrine.

-# A senhorita de novo! — O livreiro espumou, vermelho de ódio. — Saia da minha loja! — Agarrou-a pelo braço e tentou arrastá-la até a porta.

-# Pare! Pare, eu já disse! — Serena não permitiria abu­so de ninguém, muito menos de um homem a quem consi­derava um idiota. Sem perda de tempo, bateu com a bolsa na cabeça do sujeito.

Darien gemeu.

-# Simmons! — o livreiro chamou o ajudante aos berros. — Vá buscar um policial. Esta jovem está louca.

-# Não estou louca, seu bode velho!

Darien considerou que o final da disputa não seria satis­fatório.

-# Sou uma cliente e tenho dinheiro! — Serena conti­nuou, acalorada. — E quero comprar Le Morte d'Arthur!

-# Prefiro morrer a passar o livro para as mãos de uma vadia mal-educada!

Vadia? Aquilo foi demais para qualquer mulher de res­peito.

-# O senhor é um homem desprezível! — Ela levantou novamente a bolsa para atacá-lo.

Darien suspirou. O sujeito realmente se excedera. Mas, apesar do insulto demasiado, não poderia permitir que ela atacasse o dono da loja. Tirou-lhe a bolsa das mãos, enfren­tando um olhar dardejante e acusador pela interferência. Estreitou os olhos, advertindo-a em silêncio para se compor­tar. Tossiu e voltou-se para o dono da loja.

-# Por favor, peça desculpas à dama.

O homem cruzou os braços com expressão de desafio.

Darien fitou Serena de revés e comprovou que ela se encontrava em pose idêntica à do livreiro. Voltou-se para este e deixou evidentes suas intenções.

-# O senhor vai se desculpar com ela.

-# A moça é uma ameaça — ele afirmou, rancoroso.

-# Ora, o senhor...

Serena teria se lançado contra o infeliz se Darien não a houvesse agarrado pelo vestido e puxado para trás. O homem fechou as mãos em punho e assumiu uma posição de ataque que não combinava com sua aparência de literato.

-# Fique quieta — Darien sibilou, começando a se enfu­recer.

O homenzinho fitou Serena com olhar triunfante. Será que o sujeito não tinha nem um pouco de bom senso?

-# Ora, isso tudo não passou de um lamentável engano — Darien contemporizou e segurou-a pelo vestido com mais firmeza, pois ela não cessava de tentar agredir o livreiro.

O adversário assumiu uma pose afetada, o que deixou Serena ainda mais irritada. Prevendo um desfecho seme­lhante a um furacão, Darien resolveu intervir com maior determinação.

Fitou o dono da loja com seu olhar mais aristocrático e gélido.

-# Desculpe-se com milady, ou eu garanto que se arrepen­derá.

O inimigo, um idiota de primeira linha, não aceitou a ofer­ta generosa de Darien. Em vez disso, ergueu o queixo para falar.

-# Não tenho nada por que me desculpar. Ela entrou na minha loja...

-# Droga! — Darien murmurou, prevendo que teria de ser drástico.

-# ...perturbou meus clientes, insultou-me...

Darien acertou um soco bem dado no nariz do homem.

-# Oh, Deus, acho que você quebrou o nariz dele! — ex­clamou Serena.

Darien fitou-a com sarcasmo antes de olhar para o homem no chão.

-# Não acho. Ele não está sangrando tanto.

-# Uma pena — ela murmurou.

Darien agarrou-lhe o braço e puxou-a para mais perto, com receio das conseqüências.

-# Nem mais uma palavra até sairmos daqui.

Ela arregalou os olhos, mas fechou a boca e permitiu que Darien a levasse para fora da loja. Quando passaram pela vitrine, Serena viu o livro que tanto queria.

-# Meu livro!

Ele se deteve de imediato.

-# Não quero mais ouvir falar sobre essa porcaria de livro, entendeu bem? Eu acabei de agredir um homem!

-# Mas admita que ele merecia ser castigado!

-# Nem pela metade do que lhe caberia, srta. Tsukino! — Serena recuou, ofendida ao extremo. E ele continuou: — Independentemente do que possa pensar a meu respeito, não passo meus dias imaginando qual será meu próximo objetivo violento!

-# Mas...

-# Nada de mas. A senhorita ofendeu o dono da loja e...

-# Ele me insultou primeiro!

-# Eu teria resolvido o problema. Não foi para isso que me trouxe aqui? Para solucionar tudo?

Ela cerrou as sobrancelhas e anuiu com um gesto seco do queixo.

-# O quê estava pensando? E se o sujeito fosse menos controlado? E se...

-# Acha mesmo que ele se conteve? — Serena fitou-o com desdém.

-# Bem mais do que a senhorita! — Darien agarrou-a pelos ombros. — Pelo amor de Deus, será que não pode en­tender um fato tão simples? Muitos homens não hesitam um segundo antes de bater numa mulher. Ou coisa pior—acres­centou, ameaçador.

Serena o olhava sem piscar, deixando a impressão de ter visto algo que ele próprio desconhecia.

-# Desculpe-me, Darien.

-# Por quê? — ele perguntou com rispidez. — Por dar um espetáculo dentro de uma livraria? Por não manter a boca fechada quando deveria fazê-lo? Por...

-# Por aborrecê-lo. Sinto muito. Foi uma atitude muito errada da minha parte.

As palavras ditas em tom suave arrefeceram a raiva de Darien, que suspirou.

-# Não faça isso novamente, está bem?

-# Eu prometo...

-# Ótimo. — Ele soltou-lhe os ombros e surpreendeu-se por ter achado agradável segurá-los.

Serena inclinou a cabeça de lado, com expressão preo­cupada.

-# Ou acho que posso prometer. Com certeza tentarei não fazer nada que o deixe aborrecido de novo.

A idéia de não aborrecê-lo deixou-o preocupado.

-# O que foi que houve? Sempre confiamos no seu equilí­brio, e Deus é testemunha de quantas vezes Hotaru se livrou de situações difíceis por sua causa.

Serena apertou os lábios antes de responder:

-# Por favor, não confunda sensatez com submissão. São coisas bem diversas e eu não sou uma pessoa submissa.

Darien compreendeu que ela não o desafiava, mas apenas atestava um fato que sua família deixara de observar.

-# Não tenha receio. Se eu achasse que era submissa, teria me, desiludido esta tarde.

Ela não se rendia.

-# Quando vejo alguma coisa errada, não posso simples­mente ficar sentada, sem fazer nada.

-# Então procure manter-se afastada de maldades óbvias. Poderia fazer isso por mim? — disse, imaginando que ela acabaria por matá-lo de desgosto.

# Não achei que isso fosse uma maldade propriamente dita. E eu...

-# Chega. — Darien ergueu a mão para silenciá-la. — Nem mais uma palavra sobre o assunto. Ficaríamos discu­tindo dez anos a respeito do caso. — Segurou-a pelo braço e tomou o caminho de casa.

O que estava acontecendo com ele? Sua pulsação conti­nuava acelerada e Serena nem mesmo estivera em perigo. Duvidava que o livreiro chegasse a agredi-la. Além do mais, por que essa excessiva preocupação com a garota? Era evi­dente que tinha carinho por ela e a via como irmã. O que o levou a pensar em Hotaru no lugar dela e imaginou que seria muito engraçado.

-# Logo mais Seiya estará aqui — Hotaru entrou no salão rosa e destinou para a amiga o mais brilhante de seus sorrisos.

Serena ergueu os olhos do livro, uma edição de Le Morte d'Arthur com folhas amassadas que em nada lembrava-a que vira na livraria. Ela o emprestara da biblioteca de lorde Rudland.

-# E mesmo? — indagou em voz baixa, sabendo muito bem que Seiya era esperado naquela tarde.

-# E mesmo? — Hotaru imitou-a. — E só isso que tem para dizer? Perdão, mas eu tive a impressão de que estava apaixonada por ele... Ah, perdoe-me, ele agora é um homem, não é?

Serena retornou à leitura e seus olhos se moviam com excessiva rapidez.

-# Eu lhe disse que não estou apaixonada.

-# Bem, mas deveria estar — Hotaru retrucou com serie­dade. — Acabará ficando, se conceder permanecer algum tempo com ele.

Serena parou de ler e ergueu os olhos.

-# Não entendi. Seiya está em Oxford, não é?

-# Sim, claro — Hotaru comentou com casualidade, como se cem quilômetros de distância nada representassem. — Mas meu irmão esteve aqui a semana passada e não a vi ficar nem um pouco com ele.

-# Isso não é verdade. Cavalgamos no Hyde Park, fomos tomar sorvete no Gunter e andamos de barco no Serpentine naquele dia quente.

Hotaru largou-se numa poltrona próxima e cruzou os braços.

-# Isso não é suficiente.

-# Ficou maluca? — Serena sacudiu a cabeça e voltou a ler.

-# Sei que acabará se apaixonando por ele. E preciso ape­nas passarem mais tempo juntos... a sós.

Serena apertou os lábios e fixou a vista na leitura. Aque­la conversa não resultaria em nenhum benefício.

-# Seiya ficará aqui apenas por dois dias — Serena co­mentou. — Teremos de trabalhar depressa.

-# Faça o que quiser, mas eu não participarei dos seus planos. — Ergueu o olhar. — Espere, mudei de idéia. Não a deixarei agir à vontade. Se eu fizer isso, acabarei arrastada para o altar sem nem ao menos perceber.

-# Um pensamento intrigante.

-# Hotaru, pare de ser casamenteira! Quero que me pro­meta isso.

Hotaru ergueu as sobrancelhas.

-# Não quero fazer uma promessa que posso não cumprir.

-# Hotaru!

-# Ah, está bem. Mas não poderá impedir Seiya de agir, se ele tiver o matrimônio em mente. E meu irmão será bem capaz de fazer isso, a julgar pela maneira como vem se com­portando ultimamente.

-# Contanto que me prometa não interferir. Hotaru deu um suspiro e procurou parecer ofendida.

-# O fato de você imaginar que eu faria uma coisa dessas causou-me grande sofrimento.

-# Ah, por favor! — Serena voltou-se para o livro, mas foi impossível prestar atenção à trama com a mente em con­tagem regressiva.

Vinte, dezenove, dezoito...

Com certeza a amiga não seria capaz de permanecer em silêncio por mais de vinte segundos. Dezessete, dezesseis...

-# Não acha que Seiya será um marido adorável? Quatro segundos. Um feito memorável, até mesmo para Hotaru.

-# Ele é jovem, é evidente, mas nós também somos. Serena ignorou-a de propósito.

-# Darien também seria um ótimo marido se Rey não tivesse acabado com ele.

Serena levantou a cabeça.

-# Não acha que esse é um comentário maldoso? Hotaru deu um sorriso matreiro.

-# Eu sabia que estava me escutando.

-# É quase impossível não o fazer — Serena murmurou.

-# Eu estava apenas dizendo que... — Hotaru ergueu o queixo e olhou por sobre o ombro da amiga. — Mas que coin­cidência! Veja quem chegou.

-# Seiya — Serena virou-se com alegria no sofá. Mas estava enganada...

-# Sinto desapontá-la — Darien afirmou com um sorriso leve.

-# Perdão. — Sentiu-se uma tola. — É que falávamos so­bre Seiya.

-# E sobre você também — Hotaru comentou. — Aliás, foi nosso último assunto, por isso o meu comentário à sua entrada.

-# Creio que deviam estar tratando de assuntos diabó­licos.

-# Com certeza — Hotaru comentou com graça. Darien sentou-se em frente a Serena, que sorriu sem descerrar os lábios. Hotaru inclinou-se para a frente e apoiou o queixo na mão, com pose de coquete.

-# Eu acabava de dizer a Serena que você seria um ma­rido terrível.

Darien recostou-se no espaldar da cadeira com o sem­blante descontraído.

-# Essa é a mais pura verdade.

-# Mas eu ia comentar que se houvesse um treinamento apropriado, você poderia ser reabilitado.

-# Estou saindo —anunciou ele, levantando-se.

-# Não vá! — Hotaru chamou, rindo. — Estou brincando. Você está além de qualquer redenção. Mas Seiya... é um pedaço de argila que poderá ser moldado.

-# Não contarei a ele esse seu comentário — Serena resmungou.

-# Não me diga que não concorda — Hotaru provocou-a. — Seiya ainda não teve tempo de se tornar pavoroso, como acontece com a maioria dos homens com o decorrer dos anos.

Darien fitou a irmã com indisfarçável admiração.

-# Como é possível que eu esteja aqui escutando seu ser­mão sobre o comportamento masculino?

Hotaru preparou-se para uma resposta arguta e mordaz, mas o mordomo apareceu à porta e salvou a todos.

-# Lady Hotaru, sua mãe deseja falar com a senhorita.

-# Voltarei em seguida — Hotaru avisou-os antes de sair.

-# Estou ansiosa para terminar a conversa. — Com um sor­riso malicioso e um aceno de dedos, ela desapareceu.

Darien sufocou um gemido; mais cedo ou mais tarde, sua irmã acabaria causando um ataque cardíaco em alguém. Fe­lizmente não nele. Fitou Serena, que estava sentada sobre os pés e com um livro grande no colo.

-# Boa leitura? — Darien perguntou. Ela ergueu o livro.

-# Ah. — Ele não evitou a contração dos lábios.

-# Não ria — Serena advertiu-o.

-# Eu jamais sonharia em fazer isso.

-# Também não minta, por favor — ela falou com ares de educadora.

-# Ah, isso eu não posso prometer. — Ele riu.

Por um momento Serena ficou em silêncio, compenetra­da e séria. De repente, sua fisionomia mudou. Nada dramá­tico, que causasse alarme, mas que deixou claro o debate interior.

-# O que pensa a respeito de Seiya? — indagou, de­cidida.

-# Ora, ele é meu irmão.

Ela ergueu a mão e balançou-a, pedindo a continuação da frase, fitando-o com sarcasmo.

-# Uma revelação surpreendente.

-# O que exatamente quer saber, srta. Serena Tsukino?

-# Eu queria saber o que pensa a respeito de Seiya. Darien sentiu o coração disparado sem que pudesse iden­tificar o motivo.

-# Está me perguntando — ele falou devagar — se eu acredito que Seiya será um bom marido?

Serena abriu muito os olhos, piscou e deu a impressão de coordenar as idéias antes de responder.

-# Tenho a impressão de que todos desejam nos ver ca­sados.

-# Todos?

-# Bem, principalmente Hotaru.

-# Pois ela seria uma pessoa em quem eu não confiaria como conselheira matrimonial.

-# Então, na sua opinião, eu não deveria tentar conquistar Seiya. — Serena inclinou-se para a frente.

Darien piscou atônito. Entendeu que ela não ficava na­quela posição para exibir o busto, aliás, adorável. Não im­portava. O resultado o agradou sobremaneira.

-# Darien? — Serena chamou-o em voz baixa.

-# Seiya é muito jovem — ele resmungou.

-# Para mim?

-# Para qualquer uma. Por Deus, ele mal completou vinte e um anos.

-# Na verdade, ainda tem vinte.

-# Pois é isso mesmo. — Darien gostaria que houvesse uma maneira de arrumar a gravata sem parecer um tolo. O ambiente esquentava subitamente e ficou muito difícil foca­lizar outra coisa que não fosse a maravilhosa visão daqueles seios perfeitos.

Felizmente ela se recostou, pondo um fim naquele mar­tírio.

-# Pretende mesmo conquistá-lo? — ele não resistiu à per­gunta.

-# Está se referindo a Seiya? — Serena indagou o óbvio para ganhar tempo. — Não sei.

-# Se não sabe, é evidente que nem deveria pensar no assunto.

-# Então acha que o amor deve ser claro e óbvio? — per­guntou ela, fitando-o espantada.

-# Quem foi que falou em amor?

Darien lamentou ter falado com impaciência, mas a con­versa estava se tornando cada vez mais insustentável.

-# Ah.

Ele teve a desagradável impressão de que Serena achara sua argumentação muito falha. Prova disso era ela ter vol­tado a atenção para o livro que estava lendo. Sentou-se e, como um tolo, observou-a ler o que tanto a interessava, en­quanto procurava encontrar um comentário inteligente para fazer.

Serena olhou para cima com uma irritante serenidade.

-# Darien, tem algum plano para a tarde?

-# Nenhum — respondeu vagamente, escondendo que pre­tendia cavalgar um pouco.

-# Ah, Seiya não deve demorar.

-# Já soube...

-# Por isso é que estávamos falando sobre ele — Serena explicou, como se isso importasse. — Seu irmão está vindo para o meu aniversário.

-# Sim, é claro.

Ela tornou a inclinar-se para a frente; que Deus o ajudasse a se controlar.

-# Está lembrado de que temos um jantar em família amanhã?

-# É evidente que sim — Darien assegurou.

-# Bem, obrigada pelas considerações.

-# Considerações? — Ele não entendeu. — Sobre o quê?

-# Sobre Seiya. Esse é um assunto muito sério, e a sua opinião é importante para mim.

-# Bem, agora já a tem.

-# E estou satisfeita, pois o respeito sobremaneira.

De algum forma, Serena conseguia fazê-lo sentir-se co­mo uma relíquia centenária, o que o desanimou bastante.

-# Ah, é?

-# Com certeza. Por acaso não deveria respeitá-lo, ou isso o incomoda?

-# Francamente, srta. Tsukino, na maior parte do tempo não tenho idéia do que está pensando.

-# Penso na sua pessoa... Darien fitou-a, espantado.

-# E em Seiya, naturalmente — Serena concluiu. — E em Hotaru. Ah, como se alguém pudesse viver na mesma casa que ela e esquecê-la! — Fechou o livro e levantou-se. — Creio que vou procurá-la. Hotaru e lady Rudland estão indecisas sobre algumas roupas que desejam mandar fazer, e eu prometi ajudá-las na decisão.

Turner ficou em pé, acompanhando-a até a porta.

10 de junho de 1819,

Esta tarde tive uma conversa estranha com Darien. Não pretendi deixá-lo com ciúme, mas admito que po­deria ser interpretada dessa maneira por alguém que soubesse dos meus sentimentos por ele, o que é altamen­te improvável.

Admito, no entanto, que tive a intenção de inspirar certa dose de culpa em relação ao livro Le Morte d'Arthur. Nesse pormenor, não creio que tenha sido bem-sucedida.

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No fim da tarde, Darien retornou do Hyde Park, onde fora cavalgar com lorde Westholme, seu amigo. Encontrou Hotaru no saguão principal, perto da escada que levava à cozinha.

-# Shh... — ela o advertiu.

Darien interessou-se de imediato e aproximou-se.

-# Por que temos de ficar quietos? Hotaru fitou-o com raiva.

-# Estou tentando escutar.

Ele não imaginou o motivo até ouvir uma sucessão de risos melodiosos.

-# É Serena? Hotaru anuiu.

-# Seiya acabou de chegar e eles desceram.

-# Por quê?

Hotaru espiou os cantos e voltou-se para Darien.

-# Seiya estava com fome.

-# E ele precisa de Serena para servi-lo? — indagou, tirando as luvas.

-# Não, ela foi procurar os amanteigados da cozinheira. Eu ia acompanhá-los, pois detesto ficar sozinha. Mas agora que você chegou, permitirei que me faça companhia.

Darien passou por Hotaru e espiou a escada, mesmo sa­bendo que não poderia ver Serena nem Seiya.

-# Acho que também estou com fome — ele murmurou, pensativo,

-# Pois trate de abster-se por enquanto. Os dois precisam de um tempo.

-# Para comer?

-# Para se apaixonar — informou Hotaru, revirando os olhos, impaciente.

De certa forma era exasperador receber um olhar tão desdenhoso da irmã mais nova, por isso Darien a fitou com desnecessária seriedade.

-# E será possível que isso aconteça em apenas uma tarde tomando chá com biscoitos?

-# Oras, é apenas um começo. — Hotaru fitou-o como se ele tivesse uma inteligência bem inferior à média. — Tam­bém não o vi incentivando nem um pouco o namoro.

Darien disse a si mesmo que até um idiota seria capaz de enxergar que aquele seria um casamento desaconselhável. Amava Seiya profundamente e o tinha na mais alta con­sideração para um jovem de vinte anos. Mas era evidente que não era homem para Serena.

Na verdade, ele mesmo tivera maior contato com ela ape­nas nas últimas semanas, porém não havia sido difícil com­provar que era uma jovem amadurecida para a idade. Ela precisava de alguém mais velho, que soubesse dar valor às suas melhores qualidades. Um homem que soubesse domi­ná-la com firmeza, quando ela se deixasse levar pelo tempe­ramento belicoso que, na verdade, raramente aflorava.

Talvez Seiya pudesse ser a pessoa indicada... dali a dez anos.

Darien fitou a irmã e franziu o cenho.

-# Preciso comer!

-# Darien, não faça isso!

Hotaru não pôde impedi-lo. Quando tentou, ele já estava no meio da escada.

A formalidade dos Bevelstoke não era levada a extremos, exceto quando dizia respeito a convidados. Por isso nenhum dos criados se surpreendeu ao ver Seiya entrar na cozi­nha, fitar a sra. Tsukino com o mais doce dos olhares, sen­tar-se à mesa com Serena e esperar que a boa mulher os servisse com os famosos amanteigados. Assim que a travessa com os biscoitos ainda quentes foi deixada sobre a toalha, Serena ouviu um barulho às suas costas. Virou-se, piscou e viu Daarien no último degrau da escada.

Folgazão e ao mesmo tempo tímido, e pior, mais atraente do que nunca. Serena não pôde evitar um suspiro.

-# Desci os degraus de dois em dois — Darien explicou, sem nem mesmo saber o motivo.

-# Darien — Seiya resmungou uma saudação pouco eloqüente, ocupado em mastigar o terceiro biscoito.

-# Hotaru me disse que eu os encontraria aqui. Ainda bem, estou com fome.

-# Por que não come amanteigados? — Serena pergun­tou, apontando a travessa sobre a mesa.

Darien sentou-se ao lado dela.

-# Foram feitos pela sra. Graves?

Seiya anuiu. Darien pegou três e virou-se para a sra. Graves com o mesmo olhar que Seiya adotara antes. Ela adorou ser adulada e inspirou fundo.

-# Está bem, farei mais uma fornada.

Nesse instante, Hotaru apareceu à porta e fitou Darien com os lábios estreitados.

-# Darien — murmurou, sem esconder a irritação —, eu queria lhe mostrar o... livro que comprei.

Serena disfarçou um gemido; já tinha avisado que não gostaria que ninguém impusesse um compromisso em sua vida.

-# Darien — Hotaru repetiu.

Serena ergueu a cabeça com expressão de meiguice.

-# Qual livro, Hotaru? — ela perguntou, como se nem pen­sasse em provocar a outra.

A amiga dardejou chispas com o olhar.

-# Sabe muito bem qual é.

-# Seria aquele sobre o Império Otomano, sobre os caça­dores de peles do Canadá ou sobre a filosofia de Adam Smith?

-# O último — Hotaru resmungou.

-# Verdade? — Seiya olhou para a irmã com renovado interesse. Não imaginei que apreciasse esse gênero de leitura. Neste ano estivemos lendo A Riqueza das Nações, uma interessante mescla de economia e filosofia.

Hotaru sorriu com constrangimento.

-# Tenho certeza disso. Poderei dar minha opinião quando terminar de ler.

-# E a leitura está adiantada? — Darien perguntou.

-# Comecei agora e li apenas algumas páginas.

Pelo menos foi o que Serena pensou ter ouvido. Hotaru falara com a boca quase fechada e as palavras não soaram muito nítidas.

-# Quer um amanteigado, Hotaru? — Darien perguntou e sorriu para Serena como se a avisasse que estavam juntos na brincadeira.

Ele parecia mais jovem e feliz. E o coração de Serena amoleceu.

Olivia atravessou o recinto e sentou-se perto de Seiya, não sem antes sussurrar no ouvido de Serena:

-# Eu estava tentando ajudá-la.

No entanto Serena ainda procurava recuperar-se do sorriso de Darien. Sentia tontura, as pernas fracas e o co­ração tocando uma sinfonia. Ou estava apaixonada ou con­traíra gripe. Olhou de relance o perfil esculpido de Darien e suspirou.

Todos os indícios apontavam para o amor.

-# Serena!

Ela fitou Hotaru, que a chamava com impaciência.

-# Seiya quer saber a minha opinião a respeito de A Riqueza das Nações quando eu terminar de ler o livro. Disse a ele que leríamos juntas a obra. Com certeza poderemos comprar outro exemplar.

-# O quê? Ah, sim, adoro ler. — Serena entendeu com o que acabara de concordar ao ver o sorriso irônico da amiga.

-# Agora — Seiya inclinou-se sobre a mesa, tocando a mão de Serena —, eu gostaria que me contasse como tem aproveitado a temporada.

-# Estes biscoitos são deliciosos — Darien falou em alto e bom som e fez menção de pegar um, em evidente tentativa de atrapalhar o irmão. — Seiya, poderia fazer o favor de tirar o braço?

Seiya recolheu a mão. Darien pegou um amanteigado e levou-o à boca, sorrindo em seguida.

-# Maravilhosos como sempre, sra. Graves!

-# Logo mais tirarei mais uma assadeira do forno, milorde. — A sra. Graves inflou de satisfação pelo elogio.

Serena esperou o fim do diálogo para responder a Seiya:

-# Os dias têm sido muito agradáveis. É uma pena que não possa ficar aqui para desfrutar os eventos conosco.

Seiya voltou-se para ela com um sorriso indolente des­tinado a tocar seu coração, mas que não surtiu efeito.

-# Eu também acho. Porém ficarei aqui por algum tempo no verão.

-# Sei que não terá muito tempo para as damas — Darien interveio. — Minhas férias de verão eram passadas em brin­cadeiras com os amigos. Nós nos divertíamos demais. Tenho certeza de que não a agradará perder isso.

Serena fitou-o com estranheza; desconhecia aquele com­portamento tão jovial.

-# Tenho certeza de que se divertia muito — Seiya respondeu. — Mas eu gostaria de também comparecer a al­guns eventos sociais.

-# Uma ótima idéia — Hotaru concordou. — Assim também poderia adquirir um pouco mais de refinamento citadino.

-# Tenho requinte em dose considerável, minha querida.

-# Não duvido, mas nunca é demais uma experiência ver­dadeira para aprimorar o que já existe.

-# Pois saiba que tenho experiência — Seiya argumen­tou com o rosto corado.

Serena arregalou os olhos.

Darien levantou-se devagar.

-# Estou desconfiado de que essa conversa vai se deteriorar e chegará a um nível não adequado para ouvidos sensíveis.

Seiya preparou-se para dizer mais alguma coisa, mas a paz familiar foi salva pela interferência de Hotaru, que ba­teu palmas com euforia.

-# Muito bem dito! Serena adorava a amiga, porém sabia que não podia confiar quando o assunto era arranjar casamentos. E o sor­riso malicioso da outra foi mais uma prova disso.

-# Serena? — Hotaru a chamou com graça.

-# Sim?

-# Lembra-se de ter me dito que gostaria de levar Seiya àquela loja de luvas que vimos na semana passada? — E dirigindo-se para Seiya, continuou: — Eles têm peças ma­ravilhosas tanto para mulheres como para homens, e nós chegamos à conclusão de que precisará de um par novo. Não sabemos se as compradas em Oxford são muito boas.

O discurso óbvio de Hotaru não enganou ninguém. Sereana fitou Darien de soslaio e ele parecia divertir-se com o im­passe. Ou estaria aborrecido? Às vezes era difícil distinguir o que se passava com ele.

-# O que me diz, meu querido irmão? — Hotaru esmerou-se na expressão encantadora. — Vamos?

-# Nada me agradaria mais — Seiya concordou, ani­mado.

Serena abriu a boca para falar, mas desistiu diante da inutilidade prevista. Torceria o pescoço de Hotaru na primei­ra oportunidade. No momento, a única alternativa seria acei­tar. Não desejava fazer nada que pudesse levar Seiya a crer que ela alimentava sentimentos românticos a seu res­peito. Contudo seria uma grande falta de sensibilidade pro­curar livrar-se do passeio na frente do rapaz.

Quando percebeu três pares de olhos que a fitavam com expectativa, nada mais lhe ocorreu dizer:

-# Podemos ir agora. Para mim, será um prazer.

-# Eu os acompanharei — Darien anunciou, erguendo-se, decidido.

Diante do anúncio inesperado, os outros três ficaram sur­presos. Darien nunca mostrara interesse em escoltá-los em nenhum passeio quando se encontravam em Ambleside.

-# Estou precisando de um par de luvas também — Darien afirmou com fisionomia tranqüila de quem dizia a verdade. Por que outra razão ofereceria sua companhia?

-# Entendi, claro. — Seiya piscou sem atinar com os motivos do irmão mais velho.

-# Sua sugestão foi ótima, Hotaru — Darien animou-se. — Obrigado, minha querida.

Hotaru não se mostrou nem um pouco satisfeita.

-# Será ótimo contar com a sua presença — Serena de­clarou, aparentando um entusiasmo maior do que pretendia demonstrar. — Seiya não se incomodará, não é mesmo?

-# De maneira nenhuma. — O rapaz pretendia ser since­ro, porém sua expressão o contradizia.

-# Já terminou de comer os amanteigados, Seiya? — Darien indagou. — Será melhor sairmos logo, pois poderá chover mais tarde.

-# Poderíamos ir numa carruagem fechada. — Seiya pegou o maior biscoito da travessa.

-# Vou buscar o meu casaco — Serena avisou e ficou em pé. — Decidam em qual veículo iremos. Vamos nos encontrar no salão rosa em vinte minutos?

-# Subiremos juntos — Seiya se ofereceu. — Preciso pegar alguma coisa na minha mala.

Serena e Seiya saíram da cozinha.

-# O que está acontecendo, Darien? — Hotaru perguntou.

-# Do que está falando?

-# Estou empenhando todos os meus esforços para unir aqueles dois e meu querido irmão mais velho arruinou tudo!

-# Não seja tão dramática. Estou apenas pensando em comprar luvas. Jamais me ocorreria impedir um casamento, ainda mais um tão festejado.

-# Se eu não o conhecesse, diria que está com ciúme. — Hotaru franziu a testa, estreitando o olhar,

-# Então, como me conhece, eu agradeceria se não fizesse acusações infundadas — respondeu ele, depois de alguns mi­nutos de silêncio.

-# Convenhamos que vem agindo com estranheza. Ciúme de Serena! Deus misericordioso, só me faltava essa.

Darien costumava tratar a irmã de várias formas. De maneira geral, empregava um certo descaso benevolente. Ocasionalmente, adotava o papel de tio, surpreendendo-a com presentes e lisonjas sempre que lhe fosse conveniente. A di­ferença de idade garantia essa postura. Contudo, na maioria das vezes a via como se fosse uma criança. Entretanto, depois das incriminações que recebera, teria de argumentar sem medir palavras nem levar em conta sen­timentos.

-# Se a minha querida irmã — disse em um tom de voz duro e mordaz —, pudesse enxergar alguma coisa além do próprio desejo de ter Serena constantemente à sua dispo­sição, teria uma clara idéia de que ela e Seiya não com­binam de maneira nenhuma.

Hotaru engasgou com o ataque inesperado, mas logo se recuperou.

-# A minha disposição? — repetiu, furiosa. — Agora quero saber quem está fazendo acusações infundadas. Você sabe muito bem que adoro minha amiga e só quero sua felicidade! Além disso, como lhe falta beleza e dote...

-# Ah! — Darien fechou a boca antes de proferir uma imprecação. — Está vendendo a própria amiga a descoberto!

Não conseguia entender por que as pessoas persistiam em enxergar Serena como a menina desajeitada de outrora. Ela poderia não possuir os atuais padrões de beleza como Hotaru, mas certamente era provida de algo muito mais pro­fundo e interessante. Era possível observá-la e entender que havia muita beleza atrás daquele olhar. Aquele sorriso aber­to nunca foi falso ou... bem, às vezes era caçoísta. Possuíam o mesmo senso de humor, e obrigados a ficar em Londres durante a temporada, certamente não faltavam situações que merecessem doses de zombaria, para o deleite de ambos.

-# Seiya seria um ótimo marido para Serena — Hotaru continuou, exaltada. — E ela para... — Deteve-se e levou a mão à boca.

-# O que foi agora? — ele indagou, irritado.

-# O problema não é ela, não é? A questão é Seiya! Você deve achar que minha amiga não é boa o suficiente para seu irmão, não é isso?

-# Está totalmente errada — negou com indignação, dessa vez medindo as palavras com cuidado. — Nada poderia afas­tar-se mais da verdade. Eles são muito novos para se casar, principalmente Seiya.

-# Isso não é verdade, nós somos... — Hotaru se ressentiu.

-# Seiya é muito jovem — Darien repetiu com frieza. — E não é preciso ir muito longe para saber por que um homem não deve se casar cedo.

A compreensão não foi imediata, mas quando percebeu que o irmão se referia à própria história, teve pena. Darien notou aquele sentimento odioso pelo olhar de Hotaru.

-# Sinto muito mesmo, não pretendi magoá-lo. — Desculpando-se, ela saiu correndo, deixando-o ainda mais nervoso.

Serena aguardou no salão rosa por alguns minutos até uma criada aparecer na entrada.

-# Perdão, senhorita, mas lady Hotaru pediu-me para avi­sar que ela não poderá descer.

Serena largou a estatueta que estava examinando e en­carou a moça com espanto.

-# Ela não está passando bem?

A criada hesitou e Serena não queria deixá-la em situa­ção difícil. Poderia falar pessoalmente com a amiga.

-# Não se preocupe. Eu mesma descobrirei...

Depois de deixar no lugar a peça decorativa, pois lady Rudland gostava de ter suas antiguidades na posição corre­ta, Serena seguiu até a porta, ao mesmo tempo que olhava para trás, checando se a estatueta estava exatamente no mesmo lugar, e acabou por bater num corpo grande, mas­culino. Soube quem era antes de encará-lo. Poderia ter sido Seiya, um criado ou até... os céus que evitassem tal ver­gonha, lorde Rudland, mas não era nenhum desses.

Pelo perfume e pela respiração quente, que sentiu por uma fração de segundo, soube que era Darien. Já tinha cons­ciência de que a atmosfera se modificava quando ele estava por perto. Foi então que teve certeza de que estar com a percepção tão aguçada da simples presença de uma pessoa só podia tratar-se de amor, um amor eterno.

Amor de uma mulher por um homem. A menina que o imaginava como um cavaleiro de armadura brilhante não existia mais. Havia se tornado mulher, conhecia as imper­feições daquele homem e, ainda assim, o amava. Era um sentimento verdadeiro e profundo, tinha vontade de livrá-lo de todo o sofrimento, desejava... Ah, nem ela sabia o que desejava. Aliás, sabia que queria tudo. Ela...

-# Serena? — chamou Darien, segurando-a pelo braço. Ela ergueu o olhar, mesmo sabendo que seria insuportável enxergar naqueles olhos azuis o que não queria ver. E, de fato, não viu amor e nenhuma revelação. Ele apertou-a de maneira desnecessária e parecia estranho, muito diferente do usual. Assim, sentiu um calor enorme tomar seu corpo inteiro.

-# De... desculpe-me — ela gaguejou e afastou-se. — Te­nho de prestar mais atenção...

Darien não se moveu de imediato. Apenas a olhou e fixou-se na boca bem desenhada. Por um segundo abençoado, ela pensou que fosse beijá-la. Arfando, entreabriu os lábios e...

O momento se eclipsou e a realidade voltou, gélida.

-# Sou eu quem lhe pede perdão — ele falou em tom monocórdio. — Eu também deveria ser mais cuidadoso.

-# Eu pretendia ir à procura de Hotaru — explicou, sem ter idéia do que deveria dizer. — Soube que ela não vai descer.

A expressão daquele rosto másculo modificou-se e com a dose exata de cinismo de quem sabia o que estava ocorrendo.

-# Não se preocupe, ela está bem.

-# Mas...

-# Pelo menos uma vez deixe minha irmã resolver os pró­prios problemas.

Serena abriu a boca, surpreendida pelo tom ríspido. Mas não chegou a responder porque Seiya acabava de entrar.

-# Está pronta? — ele perguntou, jovial e sem perceber a tensão no ambiente. — Onde está Hotaru?

-# Ela não virá — Serena e Darien disseram em unís­sono.

-# Por quê? — perguntou aos dois, estranhando o fato de eles terem falado juntos.

-# Hotaru não está se sentindo bem — Serena mentiu.

-#Que pena — Seiya afirmou, sem demonstrar contrariedade, e estendeu o braço para Serena. — Vamos?

-# Virá conosco, Darien? — Ela fitou-o, incerta.

-# Não. — A negativa foi imediata.

11 de junho de 1819,

Hoje comemoramos o meu aniversário. Um dia ado­rável e estranho ao mesmo tempo.

Os Bevelstoke fizeram um jantar em minha homena­gem. Foi uma lembrança meiga. Ainda mais que meu pai provavelmente deve ter esquecido que hoje não é apenas o dia em que um certo erudito grego chegou a uma determinada conclusão matemática, ou qualquer outra coisa importante.

De lorde e lady Rudland ganhei um lindo par de brincos de águas-marinhas. De Seiya, recebi uma caixa com lenços de renda, cada um mais bonito que o outro.

De Hotaru, uma caixa com papéis de carta estampa­dos com o meu nome.

De Darien, ganhei um frasco de perfume. Fragrância de violetas. Imediatamente lembrei-me da fita cor de violeta que ele prendeu nos meus cabelos quando eu tinha dez anos. Mas também é evidente que ele não ha­via se recordado desse incidente. Eu também não co­mentei nada. Seria muito embaraçoso revelar-me tão sentimental. Contudo considerei o presente adorável.

Não sei se conseguirei dormir. Escrevi a última frase há dez minutos e, embora esteja bocejando bastante, minhas pálpebras não estão pesadas. Talvez seja pela responsabilidade de completar vinte anos. Isto posto, poderei muito bem tomar um cálice de xerez para em­balar no sono.

Pois é isso mesmo o que pretendo fazer.

OoOoOOoOoOOooOoOoOoOoOoOoOoOoOoOOoOoOoOoOOOOoOoOoO
2 Capitulos enormes de uma vez só pra compensa meu atraso, bjs


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