A Sereia escrita por Santori T


Capítulo 2
Capítulo 2


Notas iniciais do capítulo

- Sem recomendações.



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Acordei desenterrando-me da lama à beira do lago. Um misto de sangue e terra molhada entraram por minhas narinas e um gosto ácido escorrera por minha língua. Havia grama em meu cabelo e nenhum sinal de minhas roupas. Examinei a jaqueta cor de ferrugem que vestia. Não era minha, e aquilo me remetera aos acontecimentos da noite anterior. Eles vieram a minha mente como se puxados por uma correnteza irrefreável.

Levantei-me e cambaleei para longe do lago, mergulhando na floresta gelada àquela hora da manhã. Os pássaros me observavam do alto das copas das árvores e sua cantoria serviu de companhia durante a caminhada para casa.

Quando avistei o velho chalé corri para ele, aliviada. Tranquei a porta depois de entrar e caminhei pela sala passando as mãos pelos cabelos grudentos. Olhei-me no espelho, perto da janela, e meu reflexo mostrou uma moça jovem, pálida e cansada. Os olhos fundos, cor de mel, contrastavam com a pele translúcida, e os cabelos que deveriam ser longos e acobreados estavam imundos, tingidos de lama. Não havia emoção naquela moça jovem refletida no espelho e a única cor que coloria seu rosto eram as manchas vermelhas ao redor de sua boca, que desciam ao longo do pescoço.

Depois de um banho, o cansaço encontrou seu caminho até mim. Larguei-me na cama e adormeci imediatamente. Mas eu sabia que não conseguiria escapar tão fácil dos acontecimentos da noite passada. Eles me torturaram durante todo o período de sono. Flashes do que eu havia feito apareciam e se dissipavam diante de minhas retinas, o castigo ideal para minha alma perdida. Eu não podia fugir do meu próprio destino, assim como não podia fugir de quem eu era.

Acordei depressa quando captei as batidas na porta. Meu sistema nervoso me deixou instantaneamente alerta e uma onda de tensão correu meu corpo. Como não havia recobrado força suficiente, tudo em mim doía em decorrência dos esforços sem limites das últimas horas. Arrastei-me até as escadas com cautela, espiando pelos vãos do corrimão a porta de entrada. Meus pelos se eriçaram e minha espinha, antes arqueada, estalou baixinho e acentuou-se de forma ereta. Dava para sentir em cada pedaço de pele que revestia meu corpo a presença além da porta.

Encostei-me ao carvalho, deslizando a mão pela madeira e segurando firme a maçaneta. Colei o ouvido na porta e pude ouvir as batidinhas ritmadas do coração do outro lado. Não havia mais fome em mim depois do banquete durante a madrugada. Mas ainda assim a forma como aquele coração saudável e pulsante me chamava era inegavelmente sedutora.

Bateram mais duas vezes antes de eu conseguir agrupar a força de vontade necessária para manter um mínimo de diálogo naturalmente coeso. Afastei as mechas lisas de cabelo do rosto e respirei fundo, tentando não deixar transparecer as dores que me percorriam desde as unhas dos pés até o couro cabeludo.

O sol vazou pela fresta da porta e um homem moreno, com distintivo e um chapéu da polícia materializou-se em meu campo tênue de visão.

— O que deseja, senhor? — Perguntei amansando a voz o máximo que pude.

— Ahn! — O homem coçou a testa por baixo do chapéu e forçou a vista pela fresta de minha porta, buscando vislumbrar um rosto. — Senhora... Senhorita... Bom dia. Eu sou James Mcckeen, xerife da cidade...

— O que o xerife da cidade faz em minha porta? — Interrompi com delicadeza, observando sua jugular latejar diabolicamente diante dos meus olhos. Aquilo era um convite muito insinuante, mas mantive a linha, controlando meus instintos dentro de casa. — Não me recordo de ter pedido a ajuda da polícia para nada.

— Bem, claro, ahn, sim, entendo — O homem gaguejou e se engasgou com a própria língua. Nervoso como estava, eu via o suor descer por suas têmporas. Fazia calor àquela tarde e seu corpo, sufocado dentro da farda pesada, minava água como uma nascente — Na verdade, senhora... Hum... Como devo chama-la?

— Claire — Menti, num tom ainda mais ingênuo. Com a porta impondo os limites de que eu precisava para me manter longe dele, deixei entre nós espaço para que visse apenas metade de meu rosto; mais especificamente meus olhos. — Me chamo Claire. Mudei pra cá há alguns anos.

— Ah, claro, Srta. Claire — Ele abriu um risinho apreensivo, esticando o pescoço para além do vão entre nós. — B-bom, o assunto que me traz aqui hoje é...

Eu observei seus lábios se moverem, formarem as palavras, mas fugindo a minha própria regra, ignorei o que me dizia. Cada veia, cada artéria e cada músculo do corpo de James Maccken se insinuava para mim de forma atrevida, sem pudores. Eu via o suor escorrer por sua garganta, a pele me parecia tão macia... tão...

— A senhora entendeu a pergunta, Srta. Claire?

— Me desculpe — baixei os olhos para meus pés descalços. — O que disse?

— Ah, eu é que peço desculpas, acho que falei um pouco baixo demais – Ele pareceu quase empolgado em falar de novo comigo. Coçou a nuca, ajeitou o chapéu e suspirou — Nós estamos à procura de Shawn Natburn, filho do dono do bar Natburn, no começo da estrada que traz a região dos lagos. Ele saiu do bar ontem pela madrugada, mas deixou o carro no estacionamento — ele deixou escapar uma risadinha nervosa. — a senhorita, entende, não? Dali do bar, à pé, não há muito para onde ir. Ele pode ter entrado na floresta e... Talvez... A senhorita pode tê-lo visto ontem à noite... Rondando sua propriedade, quem sabe?

— Desculpe, xerife – Eu empurrei a porta só um pouquinho, delimitando ainda mais nosso contato — Eu não vi ninguém. Estou um pouco doente, não saí de casa nos últimos dias.

— ah, entendo – Ele pareceu preocupado — claro, claro, eu entendo. A Senhorita mora bem fundo na floresta, então... É uma longa caminhada até aqui. Não acho que o jovem Natburn tenha tido essa disposição, afinal. Com certeza vai dar as caras em um ou dias, fedendo a uísque. De todo modo, obrigado por sua atenção e melhoras, Srta. Claire.

Bati a porta e corri para as escadas, respirando longa e profundamente. O cheiro daquele homem ainda estava lá, entranhado em mim, em minha casa, como uma armadilha, pronta para me capturar. Não, um xerife chamaria muita atenção. Destruiria tudo o que ainda me restava. Eu precisava me controlar. A tempestade da noite anterior dera cabo de todos os detalhes, menos o mais óbvio. O carro de Shawn havia ficado no estacionamento. Era uma prova incontestável de seu desaparecimento. Mas sem um corpo ou pistas que levassem os policiais até ele, o que mais poderiam fazer além de dar o caso como encerrado?

 


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