A Sereia escrita por Santori T


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

- Estilo: Conto
- Gênero: Suspense / Ficção
- Faixa etária: +13
- Continuação? Sim.



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Tempestade. O aroma selvagem da chuva castigando a terra entrou pelas portas abertas da varanda e invadiu o quarto. Os ventos vindos da costa lamuriavam sua sinfonia triste por entre as árvores da floresta Hearthorne, sacudindo as copas das árvores, despetalando flores e trazendo seu perfume no ar. Como abelhas atraídas pelo mel, as pétalas fizeram seu caminho até mim, uma delas, ousando um pouco mais, repousou em minha bochecha. Contudo, antes do primeiro raio tocar a superfície da terra, eu já havia acordado. E não fora o medo da tempestade que me fizera levantar. Fora o ser por trás dela.
Enquanto me vestia, deixei meus pensamentos seguirem rumo próprio, me guiando até lembranças dolorosas, que deveriam ser mantidas encarceradas no fundo de minha mente, mas que eram, ainda que contra minha vontade, parte de mim. Não se pode fugir do passado. E não se pode fugir do que se é. Nunca.
As tempestades. As pessoas pouco conhecem sobre elas, mas uma coisa que eu posso garantir é que tempestades somente são geradas com um propósito. Elas não se mantém sozinhas. Não nascem sozinhas. E o propósito brilhava para mim como um grande diamante.
Entrei no jipe sem conferir as horas. Devia ser alta madrugada, não clareara ainda. Com um ronco mal-humorado, o motor pôs-se a funcionar, primeiro preguiçoso e sem força, como uma criança que se recusa a acordar cedo para ir à escola. Quando as rodas entraram pela estradinha que cortava a floresta, o carro ganhou velocidade, obedecendo meus comandos ao volante. Não precisaria ir longe, pensei. Havia o bar no começo da velha estrada Whitaker, a estrada que levava a região dos lagos. Ninguém em sã consciência usava aquela estrada. Era perigoso entrar na floresta, diziam os mais velhos da cidade. Também era perigoso chegar aos lagos.
Minha garganta ardia, árida como um deserto e minhas têmporas latejavam dolorosamente. A chuva desabava sobre minha capa, encharcava meu carro, fustigava-me a visão. Porém, nada me faria parar àquela altura. Faltava pouco e dava para sentir em cada pelo de meu corpo.
Com a tempestade inesperada, muitos haviam ficado ilhados no bar, aguardando o fluxo estiar para seguirem viagem de volta para casa. As pessoas reuniam-se nas mesas ou apenas ficavam lá, sentadas junto ao balcão, se embebedando, falando alto, gesticulando como embriagados que eram.
-Vodka e gelo – Sentei-me nas sombras, num lugar mais afastado da agitação.  Fiz um pedido a uma das funcionárias sem movimentos que pudessem atrair a atenção.
Quando a garçonete trouxe o que pedi, eu a vi inclinar a cabeça para o lado, buscando enxergar além de meu capuz. Com a visão periférica, eu a espiei rapidamente. Não devia ter mais que dezessete anos. Seus olhos azuis eram a coisa mais atraente em seu rosto, mas não era um ser humano feio. Amarrara os cabelos  negros num coque mal feito no alto da cabeça, e mesmo sob a pouca luz do bar podia-se perceber a bonita cor de pêssego de sua pele.
-Dá pra ouvir, sabia? – Disse a ela, colocando uma pedra de gelo na boca e me deixando anestesiar pelo frescor. A sensação era maravilhosa e a pedrinha derreteu segundos depois sobre minha língua.
-Desculpe, o quê? – Perguntou ela, sem entender.
-Seu coração... Bombeando sangue por todo o seu corpo – Respondi com naturalidade, pegando mais uma pedra e passando-a por entre meus dedos. – Cada pedacinho macio de carne... Cheinhos de sangue.
A garota sufocou um gritinho abismado e desapareceu atrás do balcão. Fora divertido assusta-la, mas me distraindo com ela, quase perdi o foco nos acontecimentos ao meu redor. Quando vi o primeiro homem abandonar a mesa, os amigos e o uísque, entornei a vodka garganta abaixo, larguei uma nota de dez sobre a mesa e saí para a chuva.

Desci as escadas de madeira do bar e caminhei em direção ao jipe, espiando o rapaz a minha direita esforçar-se contra a chuva para acertar a chave na porta de seu carro. E quando um raio dividiu o céu e clareou o largo onde estávamos, eu caí.
Não precisei gritar ou chorar. Ele viria a mim de qualquer jeito, porque eu o havia escolhido e nada que ele fizesse poderia mudar seu destino agora.
-Você se machucou? – O rapaz abaixou-se ao meu lado e seus dedos correram por minha perna suja de lama, como se nada na vida pudesse controlar seus instintos. No fundo ele se envergonhara por ser tão atrevido, mas em sua cabeça, não entendia e nunca entenderia o motivo pelo qual sentia-se tão faminto por uma completa desconhecida.
-Me leve para casa? – Pedi baixinho, fazendo-o mergulhar muito fundo no mar revolto de meus olhos.
Obediente, ele fez que sim, pegou-me em seus braços e acomodou-me no banco do carona. Depois, com a chave de meu jipe na mão, ele assumiu o controle do carro e rumamos pela velha estrada, indo longe na floresta, onde ninguém poderia nos encontrar.
A tempestade daria conta de apagar os rastros. Mesmo que a polícia local investigasse o caso, nunca encontrariam nada. Porque não haveria o que achar. Nunca havia. E ainda que algum detalhe viesse à tona, não conseguiriam liga-lo a mim. Eu não era como eles. Eu era pior que todos eles juntos.
-Linda noite, não acha? – Comentei, sorridente. – Sim, é uma linda noite.
Em meu interior, eu sabia que na manhã seguinte todas as lembranças dessa noite me ferroariam dolorosamente e eu passaria dias me punindo por ter sido tão fraca. Contudo, uma tempestade nunca é gerada sem um propósito. E fora aquele lado meu, o lado escuro, que a criara. E era ele quem estava no comando agora. Afinal, eu não comia há semanas. Estava faminta.


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Notas finais do capítulo

Obrigada pela visita. Espero que tenha gostado do conto e que volte para ler a continuação. Se curtiu, deixa seu comentário pra mim e o título do seu texto, que vou ler, com certeza! Até breve!



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