A Sereia escrita por Santori T


Capítulo 3
Capítulo 3


Notas iniciais do capítulo

- A solidão de Claire está com os dias contados.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/345871/chapter/3

Acordei no amanhecer do dia seguinte. Nova, limpa, renovada, como se nada tivesse realmente acontecido. As imagens de Shaw Natburn suplicando em silêncio, seus olhos saltados para fora das órbitas, enquanto eu abandonava minha pouca humanidade e me permitia devora-lo sem nenhum controle agora eram apenas sombras do passado, flashes sem rosto.

Não pode acontecer novamente”, pensei comigo durante o banho. Eu podia controlar aquele meu lado sombrio, selvagem. Estava trabalhando bem até o início da semana. Fazia meses sem qualquer recaída, sobrevivendo com a comida sem gosto do mercado. Era como estar numa dieta eterna, tinha que admitir. Para mim, comer o tipo de comida que nunca fizera parte de meu cardápio era como obrigar um humano a se alimentar de sardinha enlatada por toda a vida.

Continuei pensando sobre aquilo no caminho para a cidade. Na costa da Itália, onde eu havia nascido, encontrar comida não era nenhum desafio. Ela praticamente se atirava sobre nós, farta e suculenta. Muitos navios que partiam dali com mercadorias para outros continentes naufragavam contra as pedras ou em alto mar. Essa lembrança fez-me sentir saudades de casa. Contudo, Raven agora era meu lar. E eu nunca mais poderia voltar às lindas águas geladas da Itália.

Estacionei o jipe e entrei no minimercado da cidade. O sol subira alto no céu àquela manhã e o calor do verão rachava minha pele frágil. Escondi o rosto sob a aba de um boné e mergulhei por entre os corredores de produtos diversos. Desde a última e fatídica refeição eu não havia comido nada. Precisava, mesmo pouco tolerando a porcaria humana, me alimentar.

Foi Stevens quem me contou sobre o sumiço do jovem Natburn”, uma das beatas da igreja cochichava com uma outra quando passei por elas no corredor de laticínios.

Sim, fiquei sabendo. Mas o xerife James, pobre homem, mal sabe onde procurar”, respondeu-lhe a outra, puxando uma embalagem de presunto.

É verdade. O menino sumiu do mapa como mágica!

Vai ver deu no pé com alguma mulher...”, a mulher com o presunto na mão o recolou na mesa de frios e torceu o nariz, desgostosa.

Aquele Shaw não prestava de todo jeito. Era um arruaceiro! Quer saber? Foi bem feito que sumiu! Só assim aquele velho Natburn vai ter o que merece por sua arrogância sem tamanho!”, praguejou a colega.

Segui meu caminho, ignorando as velhas asquerosas. Humanos. Eles podem ser maldosos, principalmente com os de sua própria espécie. Isso ainda era algo que fugia meu entendimento. Contudo, eu não pararia para analisar as indiscrições deles. Restringia meu contato a poucas palavras, e somente quando não havia outra saída. Quanto mais longe eu estivesse deles e de seu mundo poluído, melhor para eles.

-Bom dia – A mocinha atrás do balcão sorriu para mim, enquanto passava minhas compras e as empacotava para viagem.

Murmurei alguma coisa para ela, sem real vontade de falar. Ela, como esperado, moveu a cabeça para o lado, curiosa para saber que rosto se escondia abaixo do boné. Quando nossos olhares se cruzaram por um segundo, eu senti o arrepio que correu pelo corpo magro dela. Um arrepio que indicava medo, puro e provocante.

-Desculpe – Murmurou, envergonhada, passando mecanicamente minhas compras para o pacote de papel. – S-são dezenove e setenta e cinco.

Larguei duas notas de dez sobre o balcão e balbuciei que ela podia ficar com o troco. Antes, porém, que eu conseguisse me salvar do contato forçado daquele dia, alguém segurou meu pulso. Uma mão muito leve e quente, a carne fofa massageou minha pele antes de me largar.

-Ei, oi! – A voz longinquamente familiar ecoou por meus ouvidos e de imediato me levou a um par de olhos azuis, brilhando na noite. – Você é a moça do bar, certo? A que mora no velho chalé, na região dos grandes lagos?

Virei-me para ela e examinei seu rosto pálido. A pele cor de pêssego ruborizara sob o sol forte e seus lábios cheios sorriam para mim.

-Como vai? – Murmurei, num misto de simpatia e antipatia. Dei-lhe as costas e caminhei para fora do mercado.

-Bem, obrigada – Ela me seguiu, para meu desespero pessoal, os cabelos longos derramando-se sobre seus ombros como uma cascata de água negra. – Ei, obrigada pela gorjeta àquela noite! As pessoas não costumam ser tão generosas – Ela apertou seu pacote contra os peitos, sem jeito para segura-los.

-De nada – Respondi abrindo a porta do jipe e atirando minhas sacolas de qualquer maneira.

-Jade.

-O quê? – Virei para ela, sem entender.

-Meu nome é Jade – Ela riu bobamente.

-Ah... OK – Murmurei, entrando no carro e metendo a chave pela ignição.

Jade mordeu o lábio e continuou parada ali, como se esperando alguma coisa.

-Não vai me dizer seu nome? – Perguntou ela, apreensiva.

-Claire – Respondi, engatando a ré.

-Ei, ahn... aquilo que você disse na outra noite no bar, sobre... meu coração – Ela virou o rosto angelical para o outro lado, mas eu vi suas bochechas afoguearem. – Era sério??

-Não – Menti. – Brincadeira.

Ela abriu um sorriso iluminado e acenou para mim, enquanto eu a deixava para trás.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Obrigada pela visita! Volte sempre! Se gostou (ou não), não esqueça de deixar seu comentário. Um abraço e até breve!