Contos De Gaveta escrita por Mamy Fortes


Capítulo 31
Eles pedem perdão.


Notas iniciais do capítulo

Oi. Não sei com que cara apareço aqui. Mas a Contos é algo maior que eu, e eu me sinto tão bem aqui que voltar é necessário. Meu amigo uma vez me disse que não adiantava escrever se ninguém conseguiria entender. Mas que coisa engraçada de se dizer pra quem escreve sem a pretensão de ser compreendida. Esse texto, por exemplo, é non sense e não me deixou dormir. Mas trago pra vocês, porque pode ser bom, sei lá.



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O chinelo minúsculo encaixava-se nos dedos desajeitados daquele que o apanhava do chão repetidas vezes, só para vê-lo ser novamente arremessado. A mãe se impacientava com a brincadeira, e repreendia a criança, alegando que ninguém era obrigado a ficar pegando as coisas que ele por capricho atirava, só para ter a alegação negada num “Deixa ele, moça. Eu pego”. Apesar disso, a mulher tinha razão, ainda mais visto que agachar-se no ônibus não era algo confortável, e o jovem logo se cansaria, deixando-a com o serviço.

Aliás, lembrava-se ela, logo seria sua vez de descer, e não podia perder tempo com pirraça boba. Tomou o chinelo da mão do desconhecido, e ignorou o muxoxo do bebê, dirigindo-se à porta. Tivesse ela se casado com alguém rico, e não teria de passar por isso. Mas o amor era aquela coisa idiota, e lá estava ela, com um pequeno nos braços carregados com outras duas sacolas e a bolsa, que mantinha junto ao corpo para evitar roubo. Já fora do ônibus, desviou dos buracos conhecidos da calçada, e anotou mentalmente que deveria denuncia-los à prefeitura. A rua era também dela, não podia arriscar um tropeço qualquer naquele percurso por descuido alheio.

Chacoalhou um pouco a criança, o suficiente para que ela adormecesse. Gostava de ser mãe, mais do que gostara de ser qualquer outra coisa na vida. Na verdade, se gostasse das outras coisas tanto quanto dessa, seria bem mais feliz. Por sorte, não era muito dada a remoer o mundo, então nunca se dava conta do fato de que não era lá uma pessoa tão brilhante por mais que um ou dois minutos.

A chave enganchou na fechadura quando ela tentou abri-la, como sempre, mas, apoiando o joelho na porta conseguiu, no velho macete. Era cheia deles, macetes dos mais fúteis aos mais úteis. Para não acordar o filho, por exemplo, colocava-o no berço sobre um travesseiro. Para o dinheiro sobrar no fim do mês, fazia pesquisa de custos para as compras. Para tornar a vida mais doce, café amargo. E para sorrir todos os dias, acreditar que o que era não passava de consequência das próprias escolhas. Ter o futuro nas mãos lhe agradava.

O marido chegou, a comida já estava na mesa, o vinho no decantador, a rolha no vaso que eles preenchiam com as rolhas de todas as noites. O velho capricho, ao qual não pretendiam renunciar tão cedo. O vinho mais barato pro momento mais bonito, era a regra. Falaram sobre o dia, e o homem lamentou que o filho já estivesse dormindo, mas não cogitou acordá-lo. Se fizesse, sabia que a noite seria longa e a madrugada demoraria demais a passar, embalada no choro agudo. E já bastavam os dias longos gastos longe do mundo em que queria viver. Quando viram, já era tarde, hora de voltar pro travesseiro e adormecer.

Mas antes de dormir, os olhos, aqueles olhos que pediam perdão, se olhando na cama, um par em frente ao outro. Sabiam, ah, eles sabiam que mais valia olhar e seguir na mesma direção do que cruzar, em direção oposta como agora faziam, e seguir pra longe. Por isso se fechavam. Que coisa engraçada era aquele casal vivendo naquela caixinha de fósforo de meio metro com meios sonhos completos de amor.

No dia seguinte, ela procuraria creche para o pequeno. No dia seguinte, ele seria promovido. No dia seguinte, a vida começaria a acontecer de novo. Mas agora o mundo parara pra esperar que descansassem, e eles descansavam, fazendo jus ao direito. Eram pessoas comuns, cheias de ambições e simplicidades, que não mereciam sequer uma vírgula de diferença dos outros do prédio em que moravam, mas que num instante, tinham ganhado um conto engavetado.


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Notas finais do capítulo

Gente, tô preparando coisa melhor, prometo. Vejo vocês nos reviews.



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