Contos De Gaveta escrita por Mamy Fortes


Capítulo 32
O livro do Abraço


Notas iniciais do capítulo

Oi, gente. Cá venho com um texto estranho, mas do qual gosto muitíssimo. Leiam, e a gente conversa lá no fim.



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“Eu tenho é náusea”, confessou, num tom baixo, sem desgrudar os olhos da tela que iluminava mal e porcamente seu rosto. “Gerar o mundo sempre causa um desconforto”, completou. Não falava com ninguém, não tinha ambição de ser ouvido. Voltou a ler.

Tinha acabado de começar O LIVRO DO ABRAÇO, indicação de um amigo que não conhecia. Era algo em partes curtas. A função do leitor 1 lhe causou arrepios, porque Lúcia era ele, e ele nunca tinha se chamado de Lúcia em frente ao espelho, porque aquele não era seu nome, então se assustou.

De susto, correu para o banheiro, e despejou suas ânsias de uma gravidez masculina que em nada diminuía a sensação de responsabilidade pelo feto, que era também ele. Se pariria a ferros, como aquele verso de um poeta famoso de quem esquecia o nome. Nunca tinha sido bom com nomes.

O seu próprio, demorara a aprender a escrever. A professora o castigava, porque ser lerdo era um privilégio que não se podia dar naquela época. Agora compensava, aprendia tudo com rapidez, e escolhia, por privilégio, ser devagar. “Demorar é bom”, sempre dizia. “Demorar é saudável”.

Daí que seu jeito de falar era meio acariciador de palavras, como se cada qual pra sair precisasse primeiro atravessar um labirinto longo que sempre as atrasava. Era o perdão do que dizia, porque a voz humana também tinha que ser perdoada, por ter a audácia de querer narrar o inenarrável. De perdão, gravidez e demora, ele sabia tudo. De amor, bem pouco.

Tinha visto apenas uma vez, de relance, numa moça que era pedida em casamento, e desde então procurara, sem sucesso, porque também de sucesso não entendia. Tinha lido filmes, visto livros, trocado ideias e tido cartas, mas nada lhe auxiliara na difícil missão. Até encontrar Ana.

Todas as suas missões eram mais difíceis do que ele admitia, aliás. Mas agora ele já adormecia, porque isso lhe era fácil, entre todas as coisas difíceis. Sonhou que Alice lhe acordava, sentada a beira da cama, com a expressão grave que tinha, e ele temia. Alice sentia a dor de viver como ele, e o rosto dela era parte do seu no espelho, porque ele lhe herdara os olhos e as maças imponentes.

E ela apenas ficava ali, olhando pra ele, no sonho, até que o acordasse de verdade, chorando, porque Alice morrera há 3 anos, quando lhe começaram as loucuras fora do colo daquela que as acolhera por tanto tempo.

Ele não entendia quando foi que se tornara tão receoso de tudo que sentia, e tão refém também. Abriu as cortinas, e o nublado o confortou como o colo da velha Alice, porque não era como o dia ensolarado que exigia uma felicidade plastificada. Conseguiu, até, ficar feliz por isso.

A campainha tocou, os cachos foram penteados pelos dedos, na esperança de tornar-se apresentável naqueles cinco minutos e deixar todos os demônios trancados. Quando abriu, a moça sorria. Lembrou-se do motivo de tê-la salvo da chuva naquele dia. Tinha olhos oblíquos, como os de Capitu, e ele sentiu-se na obrigação de confiar nela como Bentinho jamais confiara.

Cumprimentaram-se, e ela entrou, já colocando Caetano pra tocar, e abrindo todas as janelas que faltavam. Perguntou-se quando tinha lhe dado tanta liberdade, mas notou que nunca pedira, tinha vindo com ela. Ouviu a indagação do que fazia antes de abrir a porta, ao que respondeu com “Pensava”.

“Pensar ainda vai ser sua ruína”, ouviu em retruque. “Uma bela ruína”. Sabia que tinha razão. Mas não se importou. Clarice já o tinha arruinado. Caio Fernando Abreu já o tinha arruinado. Machado de Assis. E agora ela, Ana. O pensamento seria a menor ruína que viria a enfrentar, por isso sorriu.

“Não ria. Você precisa de um gato. Assim, terá menos tempo pra pensar”, ela disse. “Ana, um gato não me fará pensar menos. E nem você.”, respondeu, e ouviu-a dizer que se preocupava. Ele sabia que ela se preocupava, e também isso lhe fazia gostar mais, porque desde Alice, ninguém se preocupava. Disse isso em voz alta.

“Por que não chama sua mãe de mãe?”. Ele não respondeu. Não podia. Não sabia. Alice era como nome de personagem importante, e sua vida era uma história em que os personagens principais eram como estrelas que não podiam ter apelidos tolos como ‘mãe’. Ele nem sequer sabia disso, mas era verdade.

Ana entendeu o silêncio. Ela gostava dele o suficiente pra entender todas as coisas sobre ele. Até o fato de que o moço não sabia amar direito, veja só. É que ele só tinha amado Alice, que era ainda mais complexada do que ele, e cometera suicídio. Ela não deixaria que ele fizesse o mesmo.

“E a náusea, tem sentido?”, a moça perguntou. Na faculdade de psicologia, tinham lhe dito que ela não deveria analisar ninguém com quem mantivesse um relacionamento. Entretanto, ele era perfeito demais pra isso pra que ela não fizesse. Ouviu sobre a noite. O abraçou no final. Abraço desfeito na corrida do banheiro. Ela precisava vomitar.

O homem não nauseou, mesmo perante ao vômito alheio. Estranhou que Ana tivesse enjoada. Ela nunca enjoava. Então, num ímpeto, se tocou. Ele ia ser pai. Nos filmes, era sempre assim. A mocinha só precisava vomitar para que soubessem que estava grávida, por isso perguntou à grande mulher de nome com três letras. Mas ela só riu. Não era um filme.

O moço entristeceu. Por aquele momento em que se acreditou ser pai, tinha desistido de todas as noias que tinha, e se feito normal. Se reconhecido no mundo pela primeira vez. Ana entendeu. E disse: “Não estou, querido. Mas posso ficar.”.

Era Natal, e em todos aqueles anos nunca nenhuma frase tinha lhe sido tão bem quista. Era Natal, e pela primeira vez em 3 anos tudo pareceu bem. Era Natal, e aquela moça pedida em casamento que o guri tinha visto, e em quem tinha sido reconhecido amor nem de longe tinha sido tão amada. Porque agora tudo fazia sentido.

“Eu tenho gerado o mundo”, confessou, num tom baixo, sem desgrudar os olhos de Ana, que iluminava mal e porcamente seu rosto. “E todo o desconforto compensa por poder dá-lo a você”, completou. Falava com alguém, e tinha ambição em ser ouvido. O LIVRO DO ABRAÇO jamais seria tão bem abraçado quanto aqueles dois.


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Notas finais do capítulo

É isso ai. Estranho, eu sei. Qualquer pergunta, disque review. Falem comigo. Estou mesmo provocando vocês. E, lembrem-se, eu amo vocês, também.



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