Contos Do Luar escrita por ReBeec


Capítulo 7
Lily & Cara


Notas iniciais do capítulo

Inspirado no filme: "Almas à venda".



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As nuvens eram delicadamente contornadas pela exuberante lua que pairava no céu, e quando o vento soprou mais forte, as águas do rio refletiam a luz das lâmpadas acesas a metros acima de seus olhos.

A garoa era o complemento final naquela madrugada de Nova York, mas Lilian não se sentia mais deslumbrada pela Cidade Que Nunca Dorme como se sentia quando era criança.

Ela encontrou a irmã sentada numa barra de metal que ia de uma torre a outra da ponte, estando separada de uma queda mortal por apenas um deslize. Seus curtos cabelos pretos deixavam à mostra a cicatriz marcada na nuca.

A vista que tinham da Ponte do Brooklyn era excepcional, mas Lilian sabia que Cara não estava prestando atenção aos prédios ou aos barcos. Ao se aproximar em passos cautelosos, Lilian soube que a irmã estava se indagando se ela realmente morreria pelo impacto com a água, ou já mesmo na queda.

“Pelo impacto”, foi o que Lilian respondera a ela meses antes, quando pensava que a pergunta não possuiria um fim prático. Muita coisa mudou desde então.

Lilian se aproximou e apoiou-se na mesma barra. Com um pouco de esforço, levantou o corpo para sentar-se ao lado da irmã, e ambas ficaram na mesma pose, observando o mesmo cenário.

– Eu adoro essa hora da noite – Cara segregou, sem mover os olhos do lugar. - Dá uma sensação ilusória de plenitude. Como se... - fechou os olhos e emitiu um som rasgado quando soltou a respiração. - Como se meu passado não pertencesse mais a mim...

O silêncio que se fez em seguida demorou a ser preenchido. Lilian sentia a presença apenas da irmã e do rio; ninguém que ainda tinha algo a perder se atrevia a passar na ponte a pé naquele horário.

– Dói. Dói muito – Cara confessou.

– O que dói?

– A culpa. - Lilian a viu abraçar com força o próprio corpo, como se tentasse ficar tão pequena a ponto de desaparecer. - Eu penso hoje, agora, sobre o que fiz... Cada... Cada morte... Cada facada ou empurrão de escada. Era para doer tanto? - A respiração se tornava ofegante, querendo evitar um choro iminente. - Esse é o preço de carregar uma alma? Odiar a mim mesma e ao meu passado?

– Você deveria esquecer seu passado, Cara. Ele se tornou insignificante, se considerarmos que sua índole atual é diferente da qual possuía antes.

Lilian ouviu um soluço saindo da garganta da irmã mais nova; ela passou a chorar bastante desde a cirurgia, meses atrás.

Cara relaxou os braços e ergueu o queixo, buscando um vestígio de calmaria pela brisa que atravessava a cidade.

Insignificante – ela repetiu a palavra da irmã. - Uma mãe, um pai, uma professora, dois adolescentes e um idoso? Seis vidas não são insignificantes, Lily, não são. Seis vidas em meus apenas quinze anos é repulsivo e hediondo. É o que eu fui, e é o que eu ainda sou.

Águias pousaram nos cabos da ponte logo que a garoa se transformou em chuva.

– Eu sou um monstro, Lily. - A voz de Cara era tempestuosa como as águas do rio. - Uma pessoa cruel e monstruosa. Nada do que eu fiz tem uma justificativa. Nem o fato de eu ter feito tudo aquilo sem uma alma. E perceber tudo isso só agora está me matando. - Ela levou seus ombros para frente, afim de enxergar melhor o rio que corria abaixo de seus pés. - Então por que a ideia do suicídio me corrói mais do que a ideia de continuar vivendo com essa culpa?

Lilian respirou fundo. Ela sabia a resposta:

– Amor.

Cara virou-se para ela de imediato.

Uniu as sobrancelhas:

– “Amor”, você disse? - perguntou.

– Sim. É algo subconsciente, mas já se sabe que esse é o sentimento mais forte que a alma produz, e o que mais influencia indiretamente as decisões de uma pessoa.

– Mas pelo que eu teria amor? Por mim mesma? Pela alma que eu carrego?

– Pela vida.

Cara ainda olhou a irmã por alguns instantes, depois, seus olhos voltaram a observar as águas que se agitavam em torno dos barcos, a metros e metros de distância.

– Eu pensei que – ela sussurrou – era medo. Eu ainda não conheço os sentimentos humanos assim tão bem, então pareceu óbvio. Não é isso o que eu tenho, Lily? Medo da morte?

– Não. O amor é mais forte do que o seu medo. O amor o domina.

– Mas você não tem alma – lembrou Cara. - Nós duas nunca tivemos uma alma, não é, Lily? Isso não é um defeito hereditário que está nos nossos genes? Mas como agora, quando você ainda não a tem mas eu tenho, você pode saber mais sobre isso do que eu?

Lilian olhou a irmã mais nova.

Levou sua mão até o rosto de Cara, e enquanto a acariciava com pequenos círculos em sua bochecha, sentiu os grandes olhos da irmã mirando diretamente para si.

Quando ainda era criança, e Cara um inocente bebê, Lilian costumava a carregar no colo e brincar com seus cabelos. Ainda se lembrava do quanto a amou naquela época.

– Eu sei tudo pela minha memória – Lilian disse com honestidade. E era verdade, claro. Ela nunca poderia se esquecer dos sentimentos humanos, com ou sem uma alma.

– Memória, Lily?

– Dedução, sendo mais precisa.

– Isso... isso não responde minha pergunta!

Lilian abaixou a mão, e respirou fundo.

Contaria, então, como um último favor:

– Atualmente, Cara, eu entendo os sentimentos pela razão – ela explicou. - Por exemplo: quando você foi diagnosticada com psicopatia na infância, nossa mãe passou a te temer, mas nunca a abandonou. Eu deduzo então que o amor que nossa mãe sentiu por você foi maior que o medo, quando ela priorizou a sua companhia à própria segurança.

Cara piscou algumas vezes e liberou um riso angustiado:

– A mamãe está morta, então eu acho que você confundiu amor com estupidez.

Lily assentiu:

– Bom, há outra memória que também posso mencionar, se deseja ouvir. Essa envolve a mim.

Cara franziu o cenho em confusão. Lily sabia que, para a irmã, qualquer palavra que se referisse a uma emoção supostamente não deveria se encaixar com nenhuma das duas, mas isso não impediu Lily de continuar:

– No início do Mercado de Almas, quando foram feitas várias pesquisas em diferentes pessoas para se confirmar se as almas se diferenciavam entre si, logo se foi descoberto que as pessoas das quais possuíam um defeito genético e nasciam sem a alma eram exatamente aquelas com ausência de emoções, coibindo diretamente com a psicopatia.

– Eu sei essa parte, Lily – Cara interrompeu. - Ambas sabemos.

– Se eu falasse sobre a minha memória de forma crua, – disse Lily - você não a entenderia por completo – e continuou: - Ao descobrirem então que a cura para os psicopatas era apenas introduzir ao seu organismo uma alma qualquer, mas essa alma deveria ser compatível, eu logo percebi que você poderia ser curado, mas isso levaria anos até que te encontrassem uma que seu organismo não rejeitasse, a menos que eu tivesse influência nisso. Assim, num ato de amor, eu me ofereci.

Você? - Cara se assustou. - C-Como assim?

– A alma que você tem agora era a minha, Cara.

As águias voaram dos cabos que sustentação da ponte, e a chuva começou a diminuir progressivamente.

Cara negou com a cabeça, onde os olhos arregalados denunciavam a incredulidade pelo que ouvia.

– N-Não... - balbuciou.

Lilian apenas afirmou como resposta.

Alguns segundos se passaram até Cara tomar outra reação: ela ergueu a mão para a nuca de Lily, escondida sobre os cabelos ruivos dela, e encostou na cicatriz que a irmã guardara em segredo pelos meses anteriores; a cicatriz igual a da própria Cara, ambas deixada pela cirurgia de Troca de Almas.

Cara trouxe a mão para si logo em seguida.

– A alma que eu carrego... é a sua? - duvidou.

– Sim, Cara. Essa era a única maneira de você obter uma vida normal.

– Então você tinha uma alma? Sempre teve? Eu pensei... - Cara fechou os olhos, e colocou as mãos na cabeça: - Eu pensei que nós duas tínhamos nascido assim! Mas como você não morava comigo, eu nunca pude saber se você tinha os mesmos problemas que eu... Eu... nunca soube que... você tinha medo de mim? - Ela abriu os olhos para ver a irmã. - Tinha medo, foi por isso que saiu de casa?

– Na época que foi diagnosticada, sim, eu tive medo de você. - Lilian observava a irmã, e perguntou-se se teve tantos mistos de emoções em toda a vida quanto Cara mostrava naquela única conversa. - Mas quando eu voltei, e fiquei a par sobre o Mercado de Almas e todo o restante, fiz o que fiz.

– Por quê?

Lilian franziu as sobrancelhas.

– Por que o quê, Cara?

– Por que você fez isso? - Ela perguntou, como se os atos da irmã fossem um enigma indecifrável. - Não teve medo?

– Eu já não a respondi? Eu amei você, e esse amor foi maior do que o medo de viver sem emoções. O amor dominando o medo, como eu já te disse.

A lua estava abaixando no céu, e as nuvens pareciam se afastar para dar-lhe espaço.

Cara não fez mais interrogações. Talvez porque não houvesse mais o que mudar, pensou Lilian. Quando se fazia uma cirurgia para retirar ou introduzir uma alma, devia fazê-la com sabedoria, já que o organismo humano só aguentava essa mudança uma única vez antes de demonstrar sintomas da loucura. Era uma chance, e viver com as consequências.

Lilian sentiu a cabeça de Cara sendo deitada em seu ombro. As duas observavam a paisagem mórbida.

– Então o que te motivou para vim me impedir de pular? - Cara perguntou numa voz baixa. - Agora que você realmente não tem alma...? Memórias, dedução, razão, o quê?

– Não vim para te impedir.

Cara tirou a cabeça de seu ombro para vê-la melhor:

– Não? - questionou, num tom decepcionado. - Então... por que está aqui?

Lily olhava fixamente para as águas.

– Estou aqui pelo impacto – disse.

Cara seguiu o olhar da irmã, na mesma paisagem que encarava antes com receio; mas agora, o medo não dava mais sinais de sua presença.

– Eu quero te perguntar algo – disse Lily. - Como você só considerou o suicídio agora, e não antes, quando não tinha nenhuma emoção?

Cara moveu seu corpo para o lado; para mais perto da irmã. Ela enrolou seus dois braços no braço de Lily, e elas deram a mão uma para a outra.

Respondeu:

– Antes eu nunca tinha sentido nada, então não teria como passar pela minha cabeça. Diferente de você, que sentiu todas as emoções antes, mas agora está...

– … vazia.

– Vazia – concordou.

O silêncio seguiu.

Cara sempre achara a irmã tão mais inteligente do que ela, mas naquela noite, sentia que as duas permaneciam no mesmo nível de sabedoria e confusão.

Quantos minutos seguiram com elas assim? Nenhuma das duas soube.

A lua já as abandonava, e o sol surgiria não em muito tempo, afim de saudá-las para um novo dia.

Nenhuma das irmãs gostariam de passar por um novo dia.

– Eu não gosto de sentir dor – disse Cara.

Lily suspirou, e também fez sua confissão:

– Eu não gosto da ausência da dor; nem das outras emoções. - E virou-se para Cara.

As duas sustentaram o olhar o suficiente para saber que elas pensavam da mesma maneira: não havia mais nada depois dali; mais nada que as motivassem para descer daquela barra de metal e a caminhar até ir embora daquela ponte.

Mas elas iriam embora. Claro, de uma maneira diferente.

– Eu amo você, Lily – confidenciou Cara.

Lily sorriu tristemente.

– E eu amava você, Cara – respondeu.

O vento soprou com ainda mais força.

Se algum novaiorquino caminhasse pela ponte naquele minuto, se depararia com duas irmãs apertando com firmeza a mão da outra, e jogando seus corpos para frente. Dois corpos e uma alma, desaparecendo da noite.


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Notas finais do capítulo

Então...
Eu tenho evitado trabalhar com o tema de morte, considerando que a maioria dos outros contos envolvem isso, mas esse me pareceu ser o melhor final.
Não pelo quesito dramático, mas pela falta de motivação que as duas sentiam em continuar a viver daquela forma. Não faria sentido para mim elas apenas darem as mãos e saírem caminhando para comer um sanduíche, ou sei lá.
Talvez eu esteja sendo um pouco exagerada :X
Enfim, espero que tenham gostado. Até a próxima :)