O Feiticeiro Parte II - A Dimensão Z escrita por André Tornado


Capítulo 25
V.4 A conversa franca.




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Num banco de jardim em frente à doca da cidade, onde se acotovelavam bamboleantes os barcos de recreio, Trunks observava o pôr-do-sol. Na mão esquerda segurava um pacote de pevides que retirava com lentidão e estalava entre os dentes, saboreando o sal de cada uma.

A confusão que lhe ia na alma ocupava-lhe a totalidade da mente, um remoinho ruidoso que ele se recusava a enfrentar e distraía-se com as pevides e com o vento frio a lamber-lhe a base do pescoço. Já não estava habituado a ter o cabelo curto. Cortara-o cinco dias depois do acidente. Não fora Bulma que o cortara.

- Este lugar está ocupado?

Trunks volveu a cabeça para o lado esquerdo. Descobriu-a parada, junto ao banco, as mãos a segurar uma pequena mala que, pelo aspeto murcho, não tinha nada dentro. Apenas um adereço que combinava com a cor do cinto.

Ela não esperou a resposta dele e sentou-se.

- Koniichi-wa, Maron.

A doca situava-se na baixa da cidade, perto da principal rua das lojas e de dois hotéis que recebiam com frequência turistas de todas as nacionalidades. Os estrangeiros passavam animados, vestidos casualmente, máquinas fotográficas a tiracolo, cruzavam-se com outras pessoas, em passeios descontraídos.

Trunks estendeu a Maron o pacote que tinha na mão. Estava quase vazio.

- Queres?

- O que é isso?

- Pevides. Prova.

Desconfiada, Maron tirou uma pevide e trincou-a. Não gostou muito e não tirou mais nenhuma. Trunks continuou a comê-las, com aquele olhar vazio.

- Fizeste-me esperar por ti uma eternidade – disse-lhe ela ao fim de alguns segundos de silêncio.

Trunks nada disse.

- Naquela noite de sábado em que nos encontrámos na discoteca – continuou ela. – Quando cheguei a casa, fiquei acordada à tua espera, mas tu nunca voltaste. Tiveste o tal acidente... Achei que era altura de termos uma conversa a sério. Uma conversa franca!

Mais uma pevide morreu triturada na boca de Trunks.

- Para quê?

- A maneira como te foste embora, aquilo que disseste, deixou-me preocupada. E tinha razão, afinal aconteceu o acidente. Percebi finalmente que o que dizem sobre ti é verdade.

- E o que se diz sobre mim?

- Dizem que não és o mesmo Trunks de sempre. Dizem que estás mudado.

Outra pevide. Fechou os olhos, encarou reticente o remoinho ruidoso. Não queria ter aquela conversa, mas não conseguia rechaçar a Maron como fazia com a mãe, com o pai, com a irmã, com os outros.

- Encarnaste noutro rapaz, adotaste essa personalidade e pensas que esse és tu. Agora já não és Trunks. És o Tiago!

- Tenho de ser o Tiago – disse com ironia, a retirar restos de casca de pevide dos lábios. – Não achas que se dissesse que me chamava Trunks não dava muito nas vistas? Com essa história do “Dragon Ball” a circular por aí…

Desconversava, um dos seus subterfúgios.

- Consideras-me como tua amiga?

A pergunta fê-lo estremecer. Enfiou os dedos no pacote e descobriu que as pevides tinham acabado. Apertou a boca, temendo o que se seguiria. Mas ele sabia-o, demasiado bem… Não podia deixá-la chegar a esse ponto irreversível, não podia trair ainda mais Son Goten.

Maron prosseguiu cautelosamente, medindo as palavras, utilizando-as como quem encaixa peças de um complicado puzzle de três dimensões:

- Pois eu considero-me como a tua melhor amiga. Nesta dimensão horrorosa, não existe ninguém que te conheça melhor do que eu. Naquela noite em que fiquei à tua espera, deixei-me dormir sobre o parapeito da janela e sonhei com o dia em que nos conhecemos pela primeira vez. Eu tinha três anos, mas ainda me lembro.

Trunks amarrotou o pacote de pevides, o plástico estalou sinistramente. Encestou-o no balde do lixo que existia próximo do banco.

- Foi naquele torneio de artes marciais em que tu e Son Goten participaram na competição júnior e que tu acabaste por vencer. Tinhas oito anos, não era? Nunca nos tínhamos visto, mas eu já sabia tudo sobre ti. O meu pai gostava de me adormecer com histórias sobre as suas aventuras ao lado de Goku-san e assim acabei por conhecer tudo sobre os amigos do meu pai. Até sobre ti… Adorei conhecer-te no torneio, parecias um menino tão espevitado, forte, inteligente. Quis aprender a lutar, pedi à minha mãe que me ensinasse, para que um dia pudesse lutar contigo, num torneio de artes marciais. Sonho ainda com esse dia… Nós os dois, a competirmos pelo prémio final.

- Son Goten gosta de ti.

Maron atrapalhou-se e gaguejou:

- Na-nani?

- Son Goten está apaixonado por ti. Sabias?

Olhou-a de frente, olhos nos olhos. Maron corou.

- Sabias? – Insistiu.

- Não. Não sabia. Ele… Ele nunca me disse nada…

Maron baixou os olhos, ele percebeu o despiste dela, a mágoa que se espalhou no coração, como uma mancha escura, a partir da estocada fatal que ele desferira. Tinha acabado também de derrubar o puzzle de três dimensões.

- Ele também nunca te diria nada. É demasiado tímido para isso. Estou eu a contar-te.

Reclinou-se, apoiando os cotovelos nas costas do banco. Deitou a cabeça para trás. Apesar de saber que a magoara, sentiu-se satisfeito por tê-lo feito, a primeira coisa positiva que fizera naquela dimensão e fora para Son Goten. Esboçou um sorriso pálido. Haveriam de ser amigos para sempre…

Maron estava calada, a cara voltada para a esquerda, escondendo a angústia que lhe transfigurava o rosto, a olhar para o jardim, a não ver nada certamente, a tentar perceber onde colocara a peça errada, quando estava a construir aquele puzzle com tanto cuidado.

No silêncio, abria-se uma distância irreversível.

Um berro quebrou a tranquilidade.

- Espanhol!!

O João tapou-lhe o pôr-do-sol. Alçou o braço direito, à espera da palmada respetiva que haveria de selar o encontro com um cumprimento desajeitado, mas Trunks não reagiu e o João baixou o braço. Sentou-se no banco, fazendo ranger as ripas verdes de madeira, sacudindo os outros dois ocupantes.

Maron levantou-se.

- A nossa conversa terminou.

- Foi mesmo uma conversa franca…

- Parece que sim.

Evitava olhar para ele, optando por balançar a mala vazia.

- Vamo-nos vendo por aí.

- Como quiseres, Maron. Se o teu pai continuar a deixar-te sair.

- Às vezes, consegues ser insuportável.

- É o melhor, não achas? Depois do que te disse…

Ela foi-se embora sem se despedir, atirando a mala por cima do ombro, gingando até ao jardim. As palmeiras agitavam-se com a brisa do fim do dia e Trunks sentiu outra vez falta do cabelo comprido.

O João disse:

- Espanhol, que merda de língua estavas a falar com aquela gaja? Alemão? Ela parece alemã… A loirinha é bonitinha.

- Esquece a loirinha.

- Eh!… Andas a comê-la?

Lançou a mão ao pescoço do João, apertou-o, com alguma força, pouca pelo seu padrão mas a suficiente para estrangulá-lo, por três breves segundos. Soltou-o, admirado com aquela reação repentina. Olhou para a mão que reagira movida pelo seu subconsciente, que defendia a paixão do melhor amigo, porque conscientemente ele deveria ser o Tiago e não ter nenhum melhor amigo do outro lado do mundo.

O João tossiu, esfregando o pescoço.

- Espanhol! Ficaste maluco, ou quê? Para que é que foi isso?

- Disse-te para esqueceres a loirinha.

- Está bem, está bem – anuiu rouco, arranhando a garganta, puxando por um escarro que despejou na relva atrás do banco. – Porra, que apanhaste-me desprevenido.

Trunks deitou a cabeça para trás, fechou os olhos. O remoinho ruidoso tinha-se ido embora.

- Quase não te conhecia. Cortaste o cabelo.

- Tu também devias fazer o mesmo.

O João passou uma mão pela cabeleira desgrenhada.

- Eu não… Um dos meus pontos fortes é o meu cabelo, as meninas gostam muito deste meu look selvagem.

- Se é mesmo assim…

- Tens andado desaparecido, espanhol.

- Tenho andado por aí…

- E que sítios são esses? Nunca mais puseste o pé no “Académico”, nem na “Kadoc”. A Manuela do Porto anda doidinha, a perguntar por ti a toda a gente. Há duas semanas que não te deixas ver.

- Agora, andas a controlar-me?

O João mostrou a palma das mãos, rendendo-se.

- Eh, espanhol! Calma! Tu hoje estás impossível. Que bicho te mordeu?

Trunks suspirou.

- Nenhum.

Provavelmente, estava a ser mais Trunks do que Tiago e tinha de acabar com aquilo. Na Dimensão Real, não havia lugar para Trunks.

- Só estou a conversar contigo, espanhol. Queres saber de uma engraçada? – Riu-se, deu-lhe uma cotovelada. – Encontrei o Pedro há coisa de dois dias e ele disse-me que tinha ouvido que tinhas tido um grande acidente de carro e que era por isso que andavas desaparecido.

- Vocês andam a beber demais – murmurou Trunks arrepiado.

- Até me disse que estavas muita mal, quase a quinar.

- É evidente que essa história não passa de uma invenção.

Olhou inadvertidamente para o jardim, procurou por Maron, mas ela já se tinha afastado demasiado para ser visível dali.

- Tens planos para esta noite, espanhol?

Inclinou-se para a frente, apoiou os cotovelos nas pernas, entrelaçou os dedos. O sol acabava de se pôr no horizonte. Sim, a noite começava e tinha de se fazer alguma coisa.

- Não queres ir para Albufeira?

- Hum?

- Para Albufeira. Descobri um bar de strip com gajas e danças do varão. Gajas lindas, mesmo boas! Daquelas que só de lhes lamberes o pescoço, vens-te todo. Telefonamos ao Luís e ele vem connosco.

Levantou-se e o João também.

- Vamos no teu carro? Pago-te a primeira bebida… Hum?

- Não me apetece.

O João estranhou.

- Não te apetece? Que merda de conversa é essa?

- Não me apetece… – repetiu, encolhendo os ombros.

- Eh, pá… Preciso de ti espanhol. O bar é muita caro, tu é que tens aquele cartão de crédito especial com montes da dinheiro. Nunca entrei lá dentro, só vi os cartazes. Vá lá, espanhol… Não te cortes.

Trunks olhou muito sério para o João.

- Já te disse, não me apetece. Convida o Luís à mesma, fica pela cidade, bebe umas imperiais à minha saúde e ao meu cartão de crédito especial com montes da dinheiro. Combinado?

- Tu hoje estás muito estranho – comentou o João com sarcasmo, coisa inédita nele. – Tens a certeza que não tiveste nenhum acidente? Cá para mim, parece que bateste com a cabeça nalgum sítio.

- Talvez tenha batido.

E Trunks soltou uma gargalhada que lhe fez doer o peito, porque não se rira de alegria, mas de desespero.

Despediu-se do amigo e afastou-se, enfiando as mãos nos bolsos, saboreando com um arrepio a brisa fresca na base do pescoço. E decidiu, assim tão de repente que até ele próprio ficou espantado com a sua decisão. Iria falar com Gohan. Porquê? Porque já era altura. Porque devia.

Simplesmente, porque sim.


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo:
Encontro inesperado.



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