O Feiticeiro Parte II - A Dimensão Z escrita por André Tornado
Notas iniciais do capítulo
Capítulo narrado na primeira pessoa.
Depois de algumas noites a chorar aflita, agarrada ao travesseiro, resolvi esquecer o Tiago. Era como se dizia, as más notícias chegavam sempre primeiro e se houvesse más notícias, eu haveria de saber, de alguma maneira. O Tiago estava em coma e, desde que não piorasse, o seu estado seria sempre igual e sem grandes novidades a reportar.
Haveria sempre de saber, convencera-me. As novidades corriam depressa na cidade, especialmente os acontecimentos estranhos e como exemplo tinha a história recente e curiosa de um doente em estado crítico que tinha sido raptado do hospital. Desaparecera simplesmente e nunca mais se soubera o que lhe tinha acontecido. Nem a polícia, apesar de todas as diligências e de toda a sua autoridade, tinha conseguido encontrar esse doente.
Ainda considerara ir bater à porta da vivenda onde tinha visto o pai do Tiago a conversar irritado com o tal homem vestido de vermelho, a atirar para o laranja. Passara três vezes pela urbanização de Gambelas, abrandara à porta da vivenda do professor e não parara, abrandara à porta da vivenda do pai do Tiago e arrancara. E o que diria eu se o pai do Tiago me fosse abrir a porta?
Resolvi esquecer o Tiago, mas não consegui arrebitar. Continuava sem apetite, apática, tão tristonha que começava a dar nas vistas.
Depois, tive uma visão.
Ele saía da Reitoria, pela porta mesmo em frente à porta da Escola Superior de Tecnologia, no campus da Penha da universidade. Saía nos habituais passos apressados como se quisesse fugir de tudo e de todos. Chamei por ele num grito, agitando o braço:
- Professor Gomano!
Ele parou. Descobriu-me, tive mesmo a sensação que iria escapar-se e aproximei-me numa corrida. Estava ali a minha oportunidade de recuperar o alento da vida.
Os óculos dele descaíram para a ponta do nariz, ficou tenso. Uni as mãos ao corpo, fiz uma vénia.
- Koniichi-wa, Gomano-san.
Ele gaguejou pouco à vontade, a forçar um sorriso:
- Koniichi-wa, Ana-san.
- Há muito tempo que não nos víamos.
- Hai… Há algum tempo.
- Já podemos retomar as aulas de japonês?
Ele aligeirou o nó da gravata.
- Mas… As nossas aulas tinham terminado, Ana-san.
- Não, tinham sido interrompidas. Por causa do Tiago.
- Não foi bem isso que eu…
- E como é que está o Tiago?
- Está bem.
- Está bem, como? Já recuperou do coma?
Notei uma gota de suor que descia pela testa até à cana do nariz. Ele sentiu-a e limpou-a com a mão repetindo:
- Está bem.
Haveria que flanquear o professor.
- No outro dia desligou-me o telefone. Passa-se alguma coisa?
Mas ele, astuto, recuperou a postura e também me flanqueou.
- No outro dia foste apanhada a espreitar uns amigos meus. Eu também estava nessa sala, sabias? É de má educação andar a escutar as conversas dos outros às escondidas.
Senti a cara escaldar. Não tinha resposta para aquilo. O professor empurrou os óculos com um dedo, mas a cana do nariz estava suada e eles voltaram a descair. Tinha uns olhos bonitos, escondidos atrás daqueles óculos tão feios, uma armação grossa e preta que já não se usava em lado nenhum.
Não percebi por que é que continuou a olhar-me com um ar pensativo. Eu aproveitei a sorte de ele não se ter ido embora e insisti:
- Já se passaram duas semanas. Podemos retomar as aulas de japonês?
O professor suspirou.
- Tu não vais desistir, pois não?
Neguei com a cabeça.
- Porque é que insistes?
- Já lhe expliquei por que é que quero aprender japonês. Tenho de passar outra vez pela entrevista de admissão?
- Muito bem, Ana-san. Aparece esta noite na minha casa.
Sorri com a vitória inesperada. Ele tinha-me deixado ganhar a contenda e eu não entendia porquê, mas ele lá teria as suas razões. Deu meia-volta, mas lembrou-se de um último detalhe e encarou-me.
- Quanto ao Tiago…
O nome provocou-me um choque elétrico.
- Está bem, como te disse. Foi transferido do hospital para uma clínica privada e está a recuperar do acidente.
- Ah! Está a melhorar?
- Hai.
Sorri, apertei as mãos no peito.
- Ainda bem! Tenho estado tão preocupada… Afinal, ele não é aquele doente que foi misteriosamente raptado do hospital.
O professor fez um esgar.
- Nani?
- Não soube da história? Corre pela cidade inteira.
Recuou três passos.
- Não ligo a mexericos… Até logo.
Mas também eu esqueci de pronto o mexerico. Despedi-me do professor e fui caminhando sobre as nuvens até ao meu automóvel. Tinha sabido notícias do Tiago e as minhas aulas de japonês iriam recomeçar.
As coisas compunham-se, lentamente.
A normalidade haveria de regressar aos meus dias.
Assim acreditava, depois daquele encontro com o estranho professor Gomano.
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Próximo capítulo:
A conversa franca.