O Feiticeiro Parte II - A Dimensão Z escrita por André Tornado
Notas iniciais do capítulo
Capítulo narrado na primeira pessoa.
O professor já tinha estado sentado, mas levantara-se assim que eu abrira o caderno dos apontamentos. Não dissera palavra e saíra do escritório e achei que tivesse ido buscar um prato com bolachas, porque ninguém o chamara.
Naquela noite, senti receio por estar ali, em forma de um estúpido e singular arrepio. Tive o pressentimento de que estava a meter-me onde não devia e que me deveria afastar.
Provavelmente a minha insistência para recomeçar com as aulas de japonês tinha sido exagerada e despropositada. Provavelmente duas semanas não tinha sido tempo suficiente. Mas tempo suficiente para quê?
Resolvi acalmar-me. Não se passava nada de estranho…
A família do professor era uma família normal, como tantas que havia por aí – a mãe, o pai, uma filha. Hoje, só tinha visto o professor, o que até tinha sido melhor, porque com todos os arrepios que sentia, ser recebida pela antipática da mulher dele iria arrasar com a pouca autoconfiança que arranjara quando tocara à campainha da vivenda.
A porta do escritório abriu-se. Eu estava de costas para a porta. Ouvi o som de passos que entraram, mas que depois pararam. Seria o professor e o prato de bolachas. Voltei-me, ainda sentada.
O coração caiu-me aos pés, fiquei sem voz, o sangue congelou nas veias, todo o meu corpo reagiu como se tivesse acabado de ser envolvido por uma rede.
Saltei da cadeira, lancei-me na direção dele. Então, a minha voz regressou.
- Tiago?!!!
Ele estava parado, agarrado ao puxador da porta do escritório do professor Gomano.
Atirei-me para cima dele, abracei-me ao pescoço dele. Era sólido e quente, não era nenhum fantasma. Toquei-lhe no cabelo, que estava curto, na cara, no peito, nos ombros, nos braços. Fui mais ousada do que contava ser, continuei a tocar nele, na cara principalmente, naquele rosto de anjo que era tão real e que estava ali, comigo, no mesmo plano físico, não era uma alucinação.
Ele agarrou-me nas mãos.
- Ana, calma. Sou mesmo eu.
Sacudi os braços e ele soltou-me.
- Mas, tu estás bem? – Perguntei sem fôlego. – Como é que estás tão bem? Só se passaram duas semanas! Estás curado? Completamente curado?
Ele franziu os sobrolhos, apreensivo. Recuou ligeiramente. Eu insisti:
- Ainda hoje o professor disse-me que tinhas sido transferido para uma clínica privada. Saíste hoje, foi? Deram-te alta? Já estás completamente curado?
- Do que é que estás a falar? – Tartamudeou incomodado.
- Mas tu não tiveste um acidente enorme, há duas semanas? Até eu estive no hospital para saber qual era o teu estado. Estavas em coma!
- Eu… Não sei do que é que estás a falar.
A resposta foi como um soco na testa. Abanei a cabeça, como que a despertar do golpe, mas continuei zonza.
- Do acidente – tornei, a sentir a boca seca. – Estou a falar do acidente.
- Eu não tive nenhum acidente.
- Ahn?
O professor Gomano entrou com o prato de bolachas. Quando nos viu estacou. Olhei para o professor, suplicando um esclarecimento. Sorriu para mim, daquela maneira idiota que lhe fechava os olhos, estendeu-me o prato e fiquei com as mãos ocupadas.
Começou a falar com o Tiago em japonês.
- Vieste visitar-me. Eu… não estava à espera.
- Não sabia que estavas com ela. Se soubesse, não teria vindo. Poupava este aborrecimento. Tem estado muito aflita a perguntar como é que me curei tão depressa. Pensava que as aulas de japonês tinham terminado.
- E tinham terminado. Mas hoje encontrou-me na universidade e não consegui convencê-la que já não havia mais aulas de japonês.
- Bem, se estás ocupado…
- Espera! Queres falar comigo? Eu mando-a embora.
- Não é preciso, volto noutro dia.
- Não, por favor. Fica. Eu também quero falar contigo… Há muito tempo que não o fazemos.
O Tiago olhou para mim. Tirou uma bolacha do prato e disse:
- Estou à espera, na sala.
Enfiei a cabeça na porta para vê-lo andar pelo corredor, tão saudável e composto, sem o menor indício de um qualquer grave acidente de viação que o tinha deixado em coma.
O professor disse-me:
- Ana-san, se não te importas, hoje não vamos ter a nossa lição.
Olhei para o professor. Fechei as pálpebras, abri-as. Fechei-as e abri-as outra vez.
- Como disse?
- Hoje não te posso dar a aula. Fica para amanhã, pode ser? Como viste, tenho visitas.
- Ele está curado?
- Está… - suspirou, revirando os olhos. – Está curado.
Não consegui perguntar mais nada. O professor tirou-me o prato das bolachas, colocou-o em cima da mesa, no meio dos papéis e dos livros. Fechou o meu caderno e entregou-mo, juntamente com a esferográfica. Recebi tudo sonâmbula. Depois, deu-me a mala e empurrou-me pelo corredor, as mãos sobre as minhas omoplatas e eu deixei-me empurrar, no mesmo estado apático.
Passei pela sala, guinei para o vestíbulo da vivenda, consegui ver as botas do Tiago, mais nada. Ele deitava-se no sofá, provavelmente a comer a bolacha e estava nervoso, porque não parava com as pernas quietas.
O professor despediu-se de mim e eu fiquei na porta, do lado de fora, com o caderno, a esferográfica e a mala colados ao peito, entre os braços cruzados.
Não me mexi durante alguns segundos, o tempo que o professor levou a voltar-se, sair do vestíbulo, entrar na sala e começar a falar. Quando ouvi a voz do Tiago a responder, em japonês, num tom diferente daquele que ele usava, ou que o professor usava, quando falavam em castelhano, consegui deixar aquele sítio onde me plantara.
Abri a cancela, fechei a cancela. Destranquei o carro, abri a porta do carro, sentei-me, atirei o caderno, a esferográfica e a mala para o assento do pendura, fechei a porta do carro.
Escuro.
Engoli a saliva. Soube-me mal e fiz uma careta.
O Tiago estava curado.
O estranho pressentimento que me acompanhava naquela noite acentuou-se.
Olhei para a vivenda do professor Gomano.
Algum dia, haveria de descobrir o que se passava ali. Não descansaria enquanto não soubesse a verdade.
Pelo menos, as aulas de japonês tinham recomeçado.
Algum dia, sem dúvida… Ou não me chamava Ana Isabel.
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Próximo capítulo:
Um coração partido.