O cheiro era quase insuportável. Ao olhar de relance para Katniss, percebi que ela pensava o mesmo. Ela olhava séria para Haymitch, provavelmente esperando que falasse algo, mas ela não se pronunciou.

                O homem pegou uma garrafa de alguma bebida de dentro do casaco e a virou sobre a boca, despejando todo o conteúdo. Katniss levantou as sobrancelhas em sinal de espanto. Resolvi que teria que acabar com o silêncio que havia se instalado:

- Como você ganhou?

                Haymitch ignorou a minha pergunta. Ele olhou para mim e, com um calafrio, percebi que ele me avaliava. Sua bebedeira, cheiro e jeito me lembravam de alguém. Alguém do lugar que eu tinha vindo. Senhor. D, acho que era esse o nome. O nosso mentor sorriu sarcástico.

- A capital gostava de mim. Foi assim que ganhei. – ele respondeu.

                Perguntei-me como a Capital poderia gostar de um homem bêbado, mas não perguntei em voz alta. Katniss parecia ter levado um tapa no rosto, provavelmente esperava que o cara nos ajudasse de algum modo.

                Percebendo a surpresa de Katniss, Haymitch falou:

- Eu quero que vocês saibam do fundo do coração de vocês uma coisa: não há nada, nada, nada, realmente nada que eu possa fazer para salvar vocês.

                Foi a minha vez de ficar furioso. Ele deveria estar nos orientando, não afirmando que iríamos morrer. Haymitch sorriu debochado. Antes que eu o Katniss pudéssemos dizer qualquer coisa, ele se levantou e saiu do aposento que nos encontrávamos.

                Effie, que havia permanecido em silêncio até aquele momento, soltou um suspiro exasperado. Era claro que ela não aprovava a atitude de Haymitch. Algo me dizia que eles já haviam tido milhares de discussões.

                Fiquei em pé. Katniss me olhou confusa.  Eu caminhei até a porta pela qual Haymitch havia saído, mas antes que eu pudesse sair, Katniss perguntou:

- Aonde você vai?

- Vou botar algum juízo na cabeça dele. – respondi, irritado. Aquele cara era um completo idiota. – Ele vai nos ajudar, eu te garanto.

- É inútil. – Katniss respondeu, mas já havia passado pela porta.

                Eu me encontrava em um corredor longo, com várias portas. Como eu ia saber qual delas dava aonde o Haymitch havia entrado? Uma garota, vestida com roupas brancas, estava parada no fim do corredor.

                Caminhei até ela. A garota era ruiva, com olhos verdes e rosto coberto por sardas. Olhei para ela e perguntei:

- Você viu um homem bêbado passando por aqui?

                Ela fez que sim com a cabeça e apontou para uma das portas. Agradeci e fui até a porta. Sem nem pensar, a empurrei. Um quarto.

                Era um quarto bonito, luxuoso. Uma cama de casal estava posicionada no meio do quarto, cheia de lençóis caros e travesseiros macios. O chão estava coberto por diversas garrafas, então presumi que fosse realmente o quarto de Haymitch.

- Quem está aí? – uma voz enrolada perguntou, vinda de uma porta dentro do quarto. Permaneci em silêncio, então a voz acrescentou: - Malditos Avox. Eu quero um pouco de paz.

                Haymitch saiu do banheiro. Ele olhou para mim com raiva estampada no rosto. Caminhou lentamente até perto de mim, deixando apenas poucos centímetros nos separando. O cheiro de álcool impregnou minhas narinas, mas me segurei para não me afastar.

- O.que. você. quer? – ele perguntou pausadamente, espumando de raiva.

- Quero que você nos ensine a sobreviver. Esse é o seu trabalho, afinal.

                Haymitch riu. Não. Ele gargalhou. Seu riso ecoou pelo quarto. Riu tanto que se apoiou em mim, de modo que pudesse ficar em pé. Ele estava realmente bêbado, pensei.

- Você está me dizendo como fazer o meu trabalho? – ele perguntou, quando se recuperou.

- Pelo visto você se esqueceu de qual é o seu trabalho. – retruquei.

                Seu olhar passou de sínico para aprovação. Fiquei em duvida sobre o que deveria fazer, agora começando a me assustar com o homem. Levei minha mão até o bolso, onde sabia que minha “caneta” estaria.

- Certo, certo. – Haymitch resmungou. – Vá para seu quarto e amanhã, quando eu estiver descansado e você mais calmo, te ensinarei o que quiser.

                Concordei levemente com a cabeça, ainda um pouco surpreso com a mudança de atitude do homem. Talvez ele não fosse totalmente ruim. Quando sai do quarto, aquela mesma garota estava parada, no mesmo lugar, me observando.

- Oi. – falei.

                Ela não disse nada, mas desviou o olhar, parecendo assustada. Cheguei perto dela.

- Qual o seu nome? – perguntei.

                A garota continuou olhando para outro lugar. Eu podia sentir o quanto ela estava com medo, mas não conseguia entender o por quê. Eu estava cheirando mal ou alguma coisa?

- Desculpa te incomodar e tal, mas eu fiz alguma coisa? – insisti.

                Ela balançou negativamente a cabeça, mas continuou sem dizer nada. Eu estava prestes a perguntar mais alguma coisa quando Katniss entrou no corredor. Ela caminhou até onde eu estava e perguntou:

- O que diabos você está fazendo? Quer matar essa garota?- depois acrescentou:- Vamos, vem comigo.

                A garota sorriu aliviada. O que eu tinha feito de tão errado?! Katniss segurou a minha mão e me puxou para dentro de uma das portas. A porta deu para um quarto exatamente igual ao do Haymitch, mas limpo e organizado.

                Katniss olhou para mim com a raiva estampada no rosto, misturada com confusão.

- Por que você estava falando com a Avox? Não sabe que isso traria problemas para ela?

                Avox? Haymitch havia falado algo parecido com isso, acho. Eu não sabia como explicar para Katniss que não sabia o que era um/uma Avox sem falar que eu não fazia a mínima ideia do por que eu estava em Panem.

- Eu não sei o que é uma Avox. – falei. Quando Katniss abriu a boca em total espanto, acrescentei: - Acho que me esqueci.

- Se esqueceu? SE ESQUECEU? – Katniss gritou.              Eu não fazia ideia do porque ela havia se enfurecido por isso.

- Desculpa Katniss. – implorei.

- Você se esqueceu de que, por nossa causa, uma garota comum perdeu a língua? Esqueceu-se daquele dia em que estávamos na floresta e uma garota e um garoto fugiam da capital? Daquele dia que não fizemos porcaria nenhuma a não ser nos escondermos? E que o futuro daqueles dois pode ter sido horrível? Tudo por que a gente não ajudou? Eles podem estar mortos! – ela perguntou, com lágrimas brotando de seus olhos e escorrendo bochecha a baixo.

                Então eu entendi. Uma memória – tenho certeza que eu não estava lá de fato, mas ainda assim – surgiu na minha cabeça. Eu, Katniss e Gale estávamos caçando. Uma garota passou correndo por perto de nós, acompanhada de um garoto. Seu rosto estava apavorado e o garoto também. Em poucos instantes, uma “nave” avistou os dois e os recolheram.

- Eu reprimi essa memória. Desculpe. – menti.

                Katniss permaneceu quieta. Ela se sentia culpada, isso era obvio. O que deveríamos ter feito? Nos condenado, ajudando os dois. Sim. Era isso que deveríamos ter feito. Apesar de ter certeza que não estava lá quando isso aconteceu, me sentia culpado.

- Tudo bem. – ela disse por fim. – Falou com Haymitch?

- Digamos que eu botei algum juízo na cabeça dele. – contei.