Olhos De Sangue escrita por Monique Góes


Capítulo 28
Capítulo 27 - Lembranças


Notas iniciais do capítulo

Yo People! New Chapter on!
Espero que gostem do que vão ver aqui, hehehe



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          Estava deitado sobre pedras, o cheiro doce de baunilha penetrava em minhas narinas, tirando o cheiro horrível que insistia em ficar ali. Era um cheiro de Aura, sendo que eu jamais havia a sentido, porém, algo em mim afirmava que eu já conhecia seu possuidor.

          Meu corpo inteiro doía, meus membros estavam pesados, parecia que eu havia levado uma surra, como a surra que Nicholas me dera anteriormente. Minhas roupas estavam ainda mais molhadas, e o som da chuva do lado de fora estava mais forte do que nunca, como se houvesse uma cachoeira do lado de fora.

         Senti mãos macias, e pelo visto, femininas, tocando meu rosto, estavam geladas e úmidas, provavelmente devido a chuva. Minha vontade era de ficar deitado ali, de olhos fechados, nem me importando com quem quer que estivesse mexendo em mim. Mas algo dizia que eu tinha que abrir os olhos.

         - Ei, você está bem? – uma voz suave e melodiosa veio a mim. – Está consciente?

         Entreabri os olhos, vendo joelhos cobertos por uma calça negra molhada, e cabelos molhados, brancos, ligeiramente ondulados e longos. Pisquei, ajustando a vista, uma dor em minha têmpora, e a voz retornou aos meus ouvidos:

̱rate Sora... Allá í̱soun o pró̱tos pou tha ftásei edó̱...

De onde viera? Não conseguia me lembrar de muita coisa, quando tentava forçar minha mente para descobrir o que me fizera desmaiar, minha cabeça doía insuportavelmente.

 - Ah... Que bom, você acordou... – A garota disse alegre.

 Comecei a erguer meu tronco, esfregando os olhos com força, a enxaqueca incomodando-me mais do que qualquer coisa. Olhei para o lado, em direção à garota que havia me encontrado, pelo visto. O que ela fazia numa chuva dessas? 

  Não tive como não me assustar quando vi seu rosto. Tive de me esforçar para não arquejar, gaguejar ou coisa parecida.

 Sophia?!

  Dizer que as duas eram parecidas eram era pouco, ela era idêntica a Sophia!  Quer dizer, com algumas diferenças...

  Seus olhos eram maiores, seu rosto era mais juvenil e ingênuo, o cabelo ondulado, apesar de molhado, era mais curto, enquanto o de Sophia era até os quadris, o da garota a minha frente eram até sua cintura, e no lugar da mecha que atravessava a testa, a garota usava uma franja direcionada para o lado.

  Mas fora isso... Tinha praticamente as mesmas feições delicadas, a pele branca, tudo.

  Eu devo tê-la encarado feito um idiota, porque vi seu rosto ficar vermelho, chegando a contrastar com o cabelo branco. Fazendo o que era melhor, desviei o olhar e me sentei, percebendo que, ilogicamente, sentia meu rosto ficando vermelho. Hã?

  Esfreguei meu rosto usando o antebraço, ainda sem entender o porquê daquela reação involuntária. Por que eu corara? Sequer conhecia aquela garota, então... Por quê?

  - O que você está fazendo aqui, nessa chuva? – perguntei.

  - Eu... Estava indo para minha missão e quando cheguei aqui, vi que estava chovendo e... – disse hesitante. – Senti uma Aura, parecia fraca. Cheguei aqui e encontrei você desmaiado no chão.

  Exprimi um bufo, forçando minha mente para tentar lembrar o que acontecera, mas somente fui capaz de aumentar a dor de cabeça. Com um suspiro, desisti e tentei lembrar aos poucos. Tudo bem. Pensei. Eu estava indo para minha missão em Mars quando começou a chover, então me refugiei nesta caverna. Bom, já era um começo. Tentei ir em frente.

  Vi que estava tendo uma inundação, então voltei para a caverna, tirei as botas. Dei um olhada nas botas ao lado de minha mochila. E... Fui ver a profundidade da caverna. É, estava progredindo.E aí... Encontrei... Um lago... E... Um bicho... Estranho.

  Minha cabeça já latejava a esta altura, mas decidi seguir em frente, forçando-me um pouco mais.

  Ele... Me fez cair no lago... E... Fui... Levado... Pela... Correnteza até uma gruta subterrânea... E lá... Tinha um jardim... E três... Árvores estranhas...

  Minha cabeça doía tanto àquela altura que eu chegava a sentir dor atrás dos olhos. Decidi, por hora, parar por aí, mas parecia que havia algo urgente em minha mente, como se eu precisasse ver algo, e logo.

   E... Hideo estava quieto demais em minha mente para o meu gosto.

   Hideo? – chamei, mas ele não respondeu. Entrei um pouco mais em sua mente e vi tudo escuro. Acho que ele deveria estar dormindo.

-... Qual seu nome? – perguntei para a garota à minha frente, que espremia a água das roupas que estavam dentro da sacola.

 Ela hesitou, olhando para a roupa que tinha em mãos, mas no fim, respondeu:

 - Raquel.

 Devo ter ficado a encarando idiotamente, de novo, pois ela desviou o olhar. Não... Poderia ser apenas coincidência, mas ela possuía algumas características que Raquel possuía, como o cabelo claramente ondulado e os olhos grandes, mas... Eu não queria pensar que ela poderia ter sido pega pela Ordem.

 - Você é o número 1, Yudai. – disse.

 - Ah... Sim. – respondi e pensei em uma coisa: Bela situação para um número 1 ser encontrado, encharcado e desmaiado.

 - Eu... Reconheci por seu símbolo.

 Cocei a cabeça e... Por tudo que eu conheço, por que estou corando de novo?!

 - Hm... – falei sem graça. O que estava acontecendo comigo?

 Ela voltou a ver suas roupas molhadas, e eu finalmente me sentei, fazendo. Provavelmente meu rosto estava da cor do meu suéter – que, diga-se de passagem, era vermelho - enquanto eu ficava com raiva de mim mesmo por estar tendo aquelas reações sem motivo algum. Quanto tempo eu passara desmaiado? Olhei para meus pés, então peguei minha mochila, tirando de dentro dela a papa molhada que eram as bolachas, mas minha sorte era que eu possuía plásticos impermeáveis que sequer lembrara que havia colocado os restos que eu não comera de um pássaro.

 Dei uma olhada naquilo, pegando um pedaço pequeno com os dedos, como se o pássaro que eu matara fosse pular e me atacar, mas o motivo eu não lembrava.

 Vamos tentar mais um pouco...

 Forcei um pouco a memória e quase como um estalo, tudo voltou – me dando uma dor de cabeça dos infernos, mas acredito que tenha valido a pena. – e minha cabeça girou. Pisquei e então somente aí eu fui pensar:

A coisa tinha atacado Hideo.   

Ele provavelmente desmaiou por causa disso.

Por que eu esquecera daquilo? Dei uma olhada para a entrada da caverna e um trovão ribombou no céu, um relâmpago iluminando a caverna. Está bem, apesar de ele ser meu irmão, estava fora de cogitação sair numa chuva daquelas. Estava preocupado, ainda bem que eu lembrava de que ele estava em um local sem chuva, mas...

Quase que como em resposta, senti dor, mas era uma sensação emprestada. Hideo estava acordando.

Você está bem? – perguntei preocupado.

  Tirando que estou cego, está tudo bem. Aquela coisa furou os meus olhos. – respondeu.

  “Tirando que estou cego.” Você fala com uma calma como se não fosse nada de mais. – ironizei e senti a irritação em sua mente. Ele curava prioritariamente seus olhos para que voltasse a enxergar.

  Suspirei, olhando distraidamente para a garota à minha frente, e Hideo se surpreendeu em minha mente, assim como eu, por sua semelhança sobrenatural com Sophia, e perguntou:

  Quem é a garota?

  Ela disse que se chama... Raquel, e pelo visto, ela me encontrou desmaiado.

  Desmaiado?! O que aconteceu? A coisa me atacou na hora em que você ia para a última árvore... Era a do futuro, não era? O que você viu?

  ... Um desertor. – respondi, porém, resolvi pular que o desertor era ele, e que ele estava estranhamente ruivo. Lembrando-me de ruivos, meu cabelo havia voltado a se tornar branco. Por que eu ficara ruivo quando entrara na gruta? – Não era eu, mas acho que terá alguma relação...

Você desmaiou por isso?

Não, foi por que... O filhote me levou para um lugar que tinham cristais, era muito estranho... – respondi e lhe enviei uma imagem pela mente. – Parecia que quanto mais eu me aproximava, mais fraco ficava, e então quando chegamos aos corpos, desmaiei.

  Por que será? – perguntou.

   Como se eu fosse saber. – respondi e fechei os olhos, lembrando-me repentinamente das sensações que haviam me invadido.

  Só de me lembrar delas eu tinha vontade de vomitar.

  Sacudi a cabeça, afastando a lembrança de minha mente antes que eu realmente vomitasse, e Raquel me olhou com curiosidade.

  - Para onde você está indo? – perguntei enquanto fechava os olhos, cruzando os braços e me encostando-me à parede.

  - Para uma missão de caça em Mars. – respondeu. – Talvez eu já tivesse chegado lá se não fosse essa chuva.

  Entreabri um olho.

  - Coincidência... Eu também vou para lá. – disse num tom despreocupado.  

  Olha o flerte rolando solto...Hideo cantarolou em minha mente. – Pega leve, você acabou de conhecer a menina!

  Onde tem flerte nisso?! – exclamei surpreso diante o que ele dissera - Você não está ferido?     

  Estar ferido não significa que eu não percebo as coisas, maninho. – Ironizou.

   Na verdade, você está vendo coisas que não existem, Hideo. – rebati.

   Ahan, sei... – disse num tom sugestivo. Tive de me segurar para não bufar.

   - Ah, é sério?                                                                    

   - Claro que é. Qual sua numeração?

   - Número 26.

   Investigação básica...

   Tive de me esforçar para não revirar os olhos, então falei, ou melhor, pensei:

  Hideo... Cala a boca, tá?

  Por quê? Não vou perder uma ótima e rara oportunidade de realmente te irritar! – respondeu presunçoso.   

  Vai se curar primeiro, vai. – praticamente o enxotei.

  Já me curei... Posso ver tudo aqui de camarote!  - riu.

  Vai trocar de roupa então!

  Já troquei. – respondeu calmamente.

  Faça qualquer coisa que não sejam comentários fúteis.

  Não são fúteis... Tsc, se você quiser pegar alguma garota, você sabe que Elizabeth está beeeeeem disposta. Disse num tom sugestivo que eu odiei. Um calafrio atravessou minha espinha.    

  Não... Lembre-me... De Elizabeth.

  Por quê? Nunca vou me esquecer daquela cena de quando tínhamos 13 anos...

  Hideo... – falei num tom cético. – Não continue essa frase. 

  Por quê?! Só estou me lembrando de quando ela te beijou a força!exclamou.

  Fica quieto, eu não...! – Comecei, mas ele não me deixou terminar.

  Ah! Não foi a única vez, não é?! Tem como uma mulher estuprar um homem? Teve aquela vez quando tínhamos 14 que eu jurei que ela ia te estuprar! Talvez ela tivesse se eu e o Denis não tivéssemos chegado!

Hideo, cala essa boca! – exclamei, tentando afastar a memória desagradável que veio a minha mente.

Quando foi mais que ela fez algo assim com você... Ah! Impagável também foi a cara do Denis, que ele é afim dela não é segredo.

  Isso é tão claro quanto o Alec é afim da Nina, agora, faz um favor, cala a boca!   

  Qual é, é legal lembrar a carinha de “menino virgem assustado” que estava estampada na sua cara! exclamou.

  Como se você também não fosse virgem! – rebati.

          Mas nunca fiz essa cara! – rebateu de volta, e senti-o ponderar. – Ah, no final ela conseguiu te arrastar para fazer coisas nada puras com você, não é?

          Não sei se você lembra, mas eu tenho a mesma cara que você, então pode-se considerar que você já sabe qual vai ser sua expressão se um dia você fazê-la!  - exclamei. – E vamos sair do assunto “virgindade”!

           Ou perda dela. – Hideo riu para minha raiva.

  O som da chuva do lado de fora foi se tornando cada vez forte, para meu desespero e raiva. Quanto tempo teria de ficar nesta maldita caverna?! Hideo estava arrumando algum argumento em sua mente.

  - Ah, finalmente a chuva parou. – Raquel exclamou.

  - Eu estava o dia todo esperando ela acabar.

  Ninguém perguntou. Hideo disse por fim.

   Hideo, sabe a diferença entre uma pizza e seu comentário? – perguntei.

   Hã? Não...

   Ao contrário do seu comentário, a pizza eu pedi.

   Mas você não pediu nenhuma pizza!

   Fica quieto! Eu tô dizendo que não pedi sua opinião!

   Qual é! Magoou aqui...

   Melhor do que você ficar me fazendo lembrar dos momentos em que a Elizabeth me assediou ou... Argh.

  Yudai, seu passado lhe condena... – Disse e então continuou com uma voz que me lembrou de locutor de rádio. – O passado negro de Yudai Hentric, o número 1 da Ordem! Você irá se chocar com revelações!

Hideo, fica quieto pelo menos o resto da noite ok? Você foi atacado pela coisa preta, deveria estar ao menos abatido!            

 Ah, mas eu estou ótimo agora que me curei. Pena que não estou aí, eu adoraria estragar a sua pose na frente dela!       

          - Idiota... – acabei murmurando extremamente baixo diante o que Hideo dissera.

         - Hã, o quê? – Raquel perguntou.

         - Ah, nada não... – falei rápido, sentindo – mais uma vez – meu rosto esquentar.  

       É, eu estava pagando uma de idiota com tudo isso que o Hideo estava dizendo em minha mente, pois eu acabava tendo uma reação. A telepatia com Hideo era uma das coisas que, apesar de ser bastante útil de vez em quando, poderia se tornar em algo bastante constrangedor. Para mim. Por que ao contrário de mim, Hideo não possuía histórias constrangedoras o suficiente.

       Tsc, depois não quer que eu pense errado.

       Hideo, para de ser irritante!

       Meu papel como irmão mais velho é ser irritante, e ei, o nome dessa menina é Raquel, não é? Você tem uma fixação, não?

      Você só é uns dois minutos mais velho do que eu e...  – finalmente lembrei de algo. – Fica quieto, Keegan.

       Hideo manteve-se em silêncio até dizer: 

       Não me chame de Keegan.

         Seu nome é Hideo Keegan Hentric, então tenho o direito de te chamar de Keegan.

       Cala a boca.

       Ok Keegan. 

       Não me chama assim!

       Keegan.

       Sim, eu admito. A discussão passara para um estado muito infantil, mas como eu sabia que o segundo nome de Hideo o irritava, eu tinha um álibi ao meu favor. Deuses, às vezes tenho que me lembrar de que já tenho 20 anos...

       Ignorando completamente Hideo, olhei para Raquel, que penteava distraidamente o longo cabelo com os dedos, olhando fixamente para o chão de pedra a sua frente, pensativa. Os olhos brilhavam no escuro, não conseguia ver um motivo para que ela estivesse com sua visão noturna ativada, já que não havia nada interessante para se ver. Quer dizer, tinha, mas era melhor ela não ver a profundeza total da caverna.

       Um suspiro pesado saiu de meus pulmões pensando no que vira. Bloqueei ligeiramente a mente de Hideo para que ele não visse o que estava pensando, e ele também não se importou.

       Bom, primeiro, obviamente, o cara de cabelo preto. Cansei de dizer isso, mas sou descrente nestes assuntos de vida passada e reencarnação. Acho que só nascemos, vivemos (Depende quem se reproduz. Quem já viu um híbrido com filhos levante a mão) e morremos. Só.

       Isso não me importava tanto, minha mente vagou para a visão que tive do meu pai. Aquela cidade, não tinha duvidas que era Sacraelum, apesar de nunca ter ido para lá. Lá, híbridos são expressamente proibidos, e curiosamente, nunca escutei notícia alguma de algum monstro por lá. Parece que eles acreditam (mais um dos muitos boatos sobre híbridos que rolam por aí) que nós somos adoradores de Neptera, a deusa da escuridão e das trevas, juntamente com seus demônios, por isso que conseguimos localizar e eliminar monstros. Coisa assim.

       Eu nunca soube se meu pai já havia ido para Sacraelum alguma vez, e ele aparentava ter uns 17 anos. Ele já deveria ser casado com a minha mãe – já que ele se casou aos 16, logo que alcançou a maior idade. – mas... Eu não estava com uma boa impressão dele com aquela moça. Uma sacerdotisa – que chamá-la de “bonita” seria apelido. Eu tinha de admitir, ela era linda. Ele pareceu... Animado em vê-la. Hã... Bom...  

        Nunca vira uma sacerdotisa de verdade, só o sacerdote gordo de Deditio. Ele era mais uma piada que um sacerdote, mas os sacerdotes e sacerdotisas não são “criados” para serem. Eles nascem daquele jeito, e normalmente durante a infância, apresentam sinais de que não são normais. Premonições, levitar coisas, cura instantânea, controlar elementos ao seu dispor. Coisas assim. Pelo que eu sei, o sacerdote Nicolau tinha premonições, embora fosse apenas isso pelo que sabia.

        Algumas crianças mais “especiais” vão para Sacraelum, ao leste, à beira do mar. É a maior cidade do continente, a mais rica, onde se concentram grandes empresas, comunidades científicas, e o maior e mais importante templo do continente. Basicamente, é considerada a cidade sagrada.

        Ainda mais, eu não tivera muita chance de ver tudo, mas os dois pareceram bem... Próximos, dada a proximidade com que estavam falando um com o outro. Bom, a vida é deles, quem sou eu para me meter no meio? (Ainda mais do fato de que estou falando do meu pai).

        Minha mente vagou para a outra cena que eu vira.

        A floresta, o escuro, vermelho.  

        O que vai acontecer?             

         A primeira coisa que percebi quando acordei no outro dia era que não estava mais chovendo. Abri os olhos, não acreditando que o som da chuva finalmente parara, porém, definitivamente, ela parara. O céu ainda estava nublado e cinzento, mas sem dúvidas, não chovia mais. Ainda grogue, levantei minha cabeça do meu braço dormente, afastando a franja amassada dos olhos.

         O céu estava tão cinzento que quase poderia ser confundido com noite, quer dizer... Era dia mesmo?

         Sentei e não vi Raquel em lugar nenhum da caverna, mas sua sacola ainda estava ali, pousada ao chão. Sentei, sentindo meus ossos estalarem devido a noite desconfortável dormindo sobre pedra. Levantei, estremecendo diante os estalos de minha coluna, e encarei a entrada da caverna, como se perguntando para o céu se ele só iria ficar cinzento ou iria me pegar de surpresa de novo e iria chover quando eu estivesse caminhando e me obrigasse a me esconder em uma caverna estranha. De novo. 

         Dei uma olhada do lado de fora e o chão ainda estava inundado, algumas árvores reviradas, corpos de animais enterrados na lama ou boiando pela água. Vi o que poderia ser uma família de bungles, alguns bay cams, pássaros do tamanho de meu antebraço de penas alaranjadas como labaredas, uma crista amarela descendo-lhe por suas cabeças e bicos vermelhos, boiando. O peso de suas penas deveria tê-los matado afogados. Um bunko nadava calmamente por entre os corpos, levando o corpo de um filhote de bungle na boca.

         Comecei a girar para ver se havia algum caminho seco viável quando uma coisa fria e molhada atingiu meus olhos. Praguejei e... Era uma blusa?

          - Não olha pra cá! – Raquel exclamou.     

          Ah...

          Entendi rapidamente a situação e senti meu rosto esquentar, então girei em outra direção e tirei a blusa azul de cima de meus olhos, voltando para a caverna e me sentando no chão. Se não entendeu, ela basicamente estava trocando de roupa. Bom, quer dizer, eu não vi nada, mas ainda assim, a situação foi constrangedora. Do modo que estava o chão do lado de fora, provavelmente ninguém iria aparecer, e até pouco tempo atrás estava dormindo, então ela deve ter pensado que era um bom momento para trocar de roupa.

           Eu deveria ter ficado pensando um pouco mais sobre a chuva na caverna.

           Por que eu simplesmente não sentira sua Aura do lado de fora? Simples, eu ainda estava meio que acordando, e estava distraído. Não incomum a distração me faz ignorar Auras. Eu sou um idiota com certeza. Dei uma olhada em direção ao local por onde eu fora a noite anterior, caindo naquela caverna. Eu não queria voltar lá com certeza.

           Demorou mais um tempo até que, do canto do olho, a vi espiando dentro da caverna. A cena chegava a ser cômica, mas eu conseguia ver seu rosto vermelho. Ergui a blusa em sua direção, ainda encarando a parede a minha frente.

            - S-sinto muito. – gaguejou, adentrando na caverna.

            - Tudo bem. – respondi enquanto ela pegava sua blusa. – Mas não se preocupe, porque eu... Eu não vi nada.

            Vi seu rosto enrubescer, ficando da cor dos olhos e olhou para baixo. Ela usava um vestido roxo uva um tanto solto com uma calça cinza por baixo e botinas bem escuras com os canos por fora da calça. Ela estava bem simples, mas era muito bonita... E por que eu fico pensando nisso?! Conheci ela ontem, e mal falei com ela por culpa de Hideo. Eu estou me estranhando cada vez mais.

            O silêncio imperava na caverna, mas era um silêncio bastante diferente do silêncio que imperava na sala de espera para a cirurgia da Ordem. Era um silêncio... Constrangedor. Levantei e disse:

            - Eu... Vou ver se... Tem um caminho seco... Para irmos para Mars. – Falei e ela assentiu, pegando sua sacola e colocando as roupas dentro dela com certa... Força.

            Saí da caverna e a voz de Hideo veio a minha mente:

            Hm...­ – resmungou ainda sonolento em minha mente.

            O que é agora?

               Nada... Só os seus pensamentos e suas reações.

            Fique quieto.

            Tudo bem, mas não iluda a si mesmo.   

            Fiquei surpreso por ele aceitar tão rápido e não entendi o que ele quis dizer com aquilo. Olhei para a direção que iria olhar quando Raquel jogou a blusa na minha cara, mas olhando com atenção, vi uma parede de pedra extremamente conveniente que bloqueava qualquer visão posterior de dois lados, o frontal e o ao lado direto deste... Só não bloqueava o lado o qual eu poderia ver. Tudo bem... Mais inconveniente do que eu neste momento, só um animal.

            Você a viu trocando de roupa?! – Hideo exclamou em minha mente.

             Bem, não, ela foi mais rápida do que eu para entender a situação. – respondi com um suspiro.

             Ele apenas resignou-se em minha mente e ficou calado enquanto eu dava a volta pela parede de pedra. Estava tudo alagado, mas quase que como um milagre, havia uma trilha por trás da caverna que dava para uma montanha, exatamente na direção em que precisava ir. Suspirei e voltei para a caverna, abri a mochila, peguei roupas secas e minhas botas. 

             - Achei um caminho contornando a montanha. Acho que dá para ir para Mars por ele durante algum tempo.

             - Tudo bem.  – Respondeu, olhando para baixo. – Eu vou esperar.

             Assenti e fui para aquela parede de pedra, trocando rapidamente de roupa e calçando as botas. Voltei e peguei minha mochila – ainda encharcada com as roupas no mesmo estado. Em silêncio, nós dois saímos da caverna e continuamos assim por todo o caminho até Mars. Acho que a situação de mais cedo evitou conversas inúteis.

             Não demorou muito a chegarmos a Mars, que ainda bem, não estava com sinais de ter ficado alagada pela chuva. Aliás, ela estava bem normal, era uma cidade típica dos padrões. Prédios não muito altos, várias casas, um templo. Bem comum. Haviam duas Auras lá, uma com o cheiro de menta e outro de canela.

            Como era usual, as armaduras foram entregues logo que entramos na cidade por um curador da Ordem, e não foi nenhum pouco difícil encontrar a casa onde estavam os outros. No exato momento em que abri a porta e pus os pés na sala, fui atropelado por uma coisa de cabelo cacheado que saltou encima de Raquel. Ou melhor, era uma garota.

            O cara que continuou sentado em seu lugar olhou para mim e então olhou para a garota que passara correndo por mim e revirou os olhos. Ele se vestia de um modo que eu poderia pensar exatamente como um skatista. Ele usava calças folgadas, camisa larga por cima de outra e boné. Seu cabelo ia repicado até a base do pescoço.

             - Susana! Sai de cima de mim! – Raquel exclamou.

             - Eu não estou encima de você, então não reclama.

             É, a cena estava tão estranha que eu agradeci que a porta estivesse fechada. 

             - Qual seu nome? – perguntei para o rapaz que fechou a cara para Susana.

             - Diego, número 18. Caso valha a curiosidade, eu tenho 20 anos.

             - Ah, tudo bem. – tínhamos a mesma idade. Talvez adiantasse em alguma coisa.

             Me virei e vi Raquel conseguindo se desvencilhar da garota. A outra tinha o cabelo extremamente cacheado, que lhe caíam por cascata pelo rabo de cavalo que ela prendera na lateral da cabeça. As duas eram até parecidas, mas não pareceu-me que ambas tivessem algum parentesco. Ela tinha grandes olhos e a pele parecia ter mais cor que a de Raquel, não chegava a ser pálida, era mais saudável. E morena.

             - Susana, não é?

             - É sim! Número 27! – respondeu, sem se mostrar acanhada pelo quase atropelamento e ao fato de ter agarrado Raquel, que fechou a cara para ela.

             Números 18, 26 e 27. É, era um bom grupo com boas numerações. Durante todas as missões de caça desde cinco anos atrás, peço para que não sejamos capturados por algum ser como Futoji.     

             Susana estava quase saltitando no mesmo lugar, enquanto Raquel demonstrava-se constrangida com ela. Diego permaneceu quieto brincando com a aba de seu boné, pensativo.

             - Susana, pelos deuses, fica quieta!

             - Por quê?! Você chegou justo com quem...

             Raquel tapou sua boca e Diego suspirou. Acho que tive uma reação parecida diante sua hiperatividade, e ela estava praticamente pulando para falar algo para Raquel, que tentava contê-la quase que inutilmente. Decidi apressar logo as coisas para deixar as duas sozinhas. Apenas disse que era para que eles arranjassem o necessário para sair – comida e tudo mais – e então voltarem para lá.

             Saí da casa e senti a Aura de menta de Diego me seguindo.

             - Acho que vamos precisar de uma corda. – comentou.

             - Hm, por quê?

             - Acho que ou amarrando ou colando aquela garota no lugar é que ela vai ficar quieta. – respondeu, me fazendo rir. – Não, é sério! Eu fui o segundo a chegar e tive que ficar vendo-a pulando de um lado para o outro e me enchendo de perguntas até você e a outra garota chegarem.

             Ri ainda mais com o comentário. Apesar de ter rido baixo, vi algumas pessoas nos encarando. Talvez ver um híbrido rindo fosse algo raro.

             - Eu reparei. – respondi. – Sendo que ela praticamente me atropelou e se jogou encima de Raquel.

             - Ah, então o nome dela é Raquel? Bom, parece que as duas se conhecem... Bem.

             Para nosso azar, descobrimos que estava tendo uma feira. Bom, havia o lado bom de que seria mais fácil comprar comida, mas havia muito mais pessoas ali. Pareceu que todos se calaram quando nos viram e escutei o som de muitos animais. Pelo canto do olho vi uma garota segurando um bungle em seus braços que se contorcia e emitia uma espécie de latido furiosamente. Bay cams em uma gaiola chiaram de maneira tão aguda que Diego esfregou a orelha ao meu lado, incomodado e bunkos começaram a gritar histericamente em suas jaulas para o abate. Essas reações eram muito exageradas e inconvenientes.

             Meus ouvidos doíam tanto pelos gritos dos bay cams aliados aos outros sons que comprei a comida o mais rápido o que consegui, saindo de lá rapidamente, os guinchos ainda em meus ouvidos. Me afastei a uma distância considerável e os esfreguei, minha cabeça estava latejando ligeiramente, malditos chiados agudos!

            Mais algum tempo e Diego apareceu, claramente tonto pelos gritos agudos. Esta é uma das coisas ruins da audição aguçada.

            - Nunca mais entro numa feira com pássaros. – exclamou. – Coisinhas de gritos agudos!

            Tive de concordar com ele, antes de voltarmos para a casa onde teríamos de esperar as meninas. Elas ao menos já haviam saído, que ao menos não demorassem muito.

            Pus a mochila no chão, me sentando em um dos sofás, permitindo-me soltar um suspiro, fechando os olhos. Era a coisa mais confortável em que eu me recostava em semanas. Senti a Aura de Diego movendo-se pelo recinto, atrás de alguma coisa. Entreabri levemente, vendo-o mexer num objeto prateado, que antes que eu pudesse discernir o que era, ele pôs uma mão em cada extremidade do objeto e o empurrou, transformando-o em seu símbolo. Não tive tempo de ver o que era, mas era pequeno demais para ser uma claymore.  

            Não demorou muito e Raquel e Susana voltaram, Raquel parecendo se segurar para não gritar com Susana, que estava deveras animada com alguma coisa. Quem dera eu ficasse tão animado nas vésperas de uma caçada a Despertado.

            - Já... Arranjaram tudo? – Perguntei me levantando.

            - Não tem nada mais para conversar? – Diego acrescentou atrás de mim.

            - Sim e não. – Raquel respondeu, olhando de modo reprovador para Susana que novamente quase saltitava no mesmo lugar.

            - Então vamos.                  


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Notas finais do capítulo

Tadinho do Yu... Forçado a fazer coisas nada puras... E ele não gostou *cahan*
Alguém sabe o significado do aroma de baunilha? Se souberem, já saberão o que esperar!
~Curiosidades 9: Alec~
Não sei se já falei dele, mas se já, falo de novo!
Primo dos gêmeos que controla a água, ele é um dos motivos pra eles estarem na Ordem. Mas olha pelo lado bom, família unida! (ou quase!)
Ele se culpa por ñ ter ajudado sua irmã mais velha, assim, ela acabou sendo morta...
Ele é parecido o suficiente com os gêmeos para que pensem que eles eram trigêmeos! Ah... E de todos os que tem sangue Hentric, ele foi o único que não nasceu ruivo. Poisé, ele nasceu moreno (tá, castanho avermelhado. Mas é castanho do mesmo jeito!).
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Eu tenho umas surpresinhas pra ele...



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