Olhos De Sangue escrita por Monique Góes


Capítulo 15
Capítulo 14 - Confusão na Escola




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         “Mas Hideo! Já está escondido na cama do Yudai?!”

         Mamãe está brava. Eu tô doente, e o Hideo veio dormir comigo.

         Mesmo que a gente já tenha nove anos, que mal tem? Já é um costume.

         Hideo meio que se afunda no lençol, quase sumindo. Somos pequenos, os menores da nossa sala, por isso que a cama não fica apertada. Mamãe mexe nos lençóis para tirá-lo de lá, a luz ainda está apagada, então ela não vê Hideo indo devagar para trás de mim, então ele se espreme entre mim e a parede. Mamãe pega em mim, Hideo esconde a cabeça sob os lençóis para que ela não o ache, e sinto seu braço se passar sobre a minha barriga e ele colocando a cabeça nas minhas costas. Eu quase rio, mas minha garganta coça começo a tossir.

         “Deixe os meninos Maria.” vovó diz na porta. Ela está usando o xale marrom que nunca tira dos ombros, mas o seu cabelo, ainda castanho, está solto, tão longo que passa da sua cintura. “Melhor eles serem apegados um ao outro do que se odiarem.”.

         “Vocês estão ficando grandes”. Mamãe fala num tom desesperado. “Tem que parar com isso!”

         Mas logo depois ela desiste e vai embora, fechando a porta atrás de si, e quase na mesma hora, Hideo me solta e põe a cabeça para fora do lençol, então passa dessa vez por cima de mim, até chegar ao lugar que estava deitado antes, mas ele escorrega e cai pra fora da cama, dando de cara no chão enquanto suas pernas ainda estão encima da cama. Dormimos no mesmo quarto em camas separadas. A dele estava no outro lado do quarto, mas ele veio dormir comigo.

          “Machucou?” Pergunto, mesmo sabendo que machucou.

          “Meu queixo!” Geme dolorido, então jogou suas pernas para o lado, para se colocar de volta na cama. Esperamos para ver se a mamãe volta para saber o motivo da barulhada, mas ela não aparece.

          Estamos no terreno do vovô no interior, e o chão de casa é de madeira, suspenso do chão. Qualquer passo mais pesado que nós damos é sentido por qualquer pessoa da casa. Hideo se vira na cama e fica de frente para mim.

         “E agora, o que a gente faz?” Pergunta.

         “Sei lá, esperamos ver se o sono vem, não é?” Tento responder, mas acaba virando uma pergunta.

         “Você tá com fome?” Ele pergunta, e mesmo estando escuro, consigo ver o seu sorriso. Já posso adivinhar o que ele quer. “O vovô colheu hoje cestas cheias de flowergar”

          As flores de açúcar? Já tá na época?

         “Pode... Pode ser.” Começo a falar, mas ele me puxa pra fora da cama. “Ei!”

         “Se eu for me ferrar, você vai junto.” Diz, e pé ante pé, ele abre a porta, se coloca de quatro no chão e espia. “Vamos!”          

         Engatinho atrás dele e vejo o antigo tampo de madeira da mesa estava nos escondendo de todos os adultos. Papai está bebendo alguma coisa num copo de aço e por ser muito alto, acaba nos vendo. Fico com medo, mas ele apenas dá um sorrisinho de canto.

         “Querida, a Karen está quebrando todos os pratos do lado de fora.” Ele diz.

         “Ela não está nada, Helder.” Mamãe começa a falar, mas logo o som de vários pratos se quebrando vem a nós. “Pelos deuses, irmã! Lave alguma coisa sem destruir!”. Grita e então sai.

         Papai empurra uma cesta com o pé para fora do tampo que está no chão, e ela está cheia de flowergar. Hideo pega a cesta e passa ela para mim, então fui a arrastando em frente de mim. Sinto minha garganta coçando, mas só deixo a tosse sair quando chegamos no quarto. Hideo bate nas minhas costas e se encosta na porta.

          “Viu só, as coisas ficam melhores quando fazemos elas juntos!” exclama, pegando uma flor e abrindo suas pétalas, tirando a bola doce do centro, colocou ela na boca e fala de boca cheia. “Se fosse só eu, o papai iria me entregar, né, Yu?”.

         - Yudai Alexander Hentric! Acorda de uma vez, já são sete e dez! – o berro de Hideo quase me enfartou, me tirando do sonho que estava tendo.

         - Hã?! – exclamei e caí da cama. Do chão, perguntei: – E-eu dormi?! E você ainda me chamou pelo meu nome inteiro?!

         - Dormiu na minha cama ainda por cima. – Bufou. – Claro, esqueceu que tem um Alexander entre Yudai e Hentric?

         Esfreguei os olhos e vi que ainda estava no quarto de Hideo, que já havia trocado de roupa e estava com os Transfiguradores, mas não tomara o Supressor, pois ainda sentia sua Aura. Levantei e falei:

         - Espera eu vou tomar banho e trocar de roupa o mais rápido o possível, aí eu mostro qual parte do Supressor é pra tomar.

         Ele apenas assentiu e então fui ao meu quarto, peguei algumas roupas, fui ao banheiro, tomei de banho e troquei de roupa em alta velocidade. Peguei a minha mochila e pus o atestado médico nela – acho que o médico fizera algo ilegal com isto, mas não era o momento de pensar nisso - depois peguei dois Supressores e voltei no quarto de Hideo e cortei os dois ao meio.

         - Aqui, é pra tomar o lado branco. – falei.

         Ele pôs a metade branca na boca ao mesmo tempo que, e senti que aos poucos sua Aura perdia o cheiro de chocolate e seu calor gradualmente, até eu apenas sentir o calor morno. Em compensação, eu conseguia sentir a Aura de Lionel no andar de baixo.

          Descemos, tomamos café e saímos, quando chegamos ao ponto, o ônibus já estava prestes a sair, mas conseguimos pegá-lo a tempo. Sentamos no fundo, como já era costume. Eu pensei no sonho que tivera, era uma lembrança de seis anos atrás. Meu avô tinha um terreno que era às margens do Rio Irvine, um dos maiores rios de Darneliyan e ocasionalmente íamos para lá. O local era repleto de árvores, sendo muitas frutíferas, mas as que mais íamos atrás eram as árvores de flowergar. Nas árvores de flowergar crescem botões de flores que quando se abre eles antes de ficarem maduros, eles têm algo como uma bola do que poderia ser néctar cristalizado. É algo muito gostoso e muita gente gosta.   

          - Olha só, você melhorou! – Sophie disse me tirando dos meus próprios pensamentos.

          - É. – menti. – Acho que perdi muita coisa no hospital, porque passei maior parte do tempo dormindo.

          - Apareceram uns “seres estranhos”. – a ruiva do lado de Sophie, Catherine, riu. – Uns caras de cabelo branco e olhos vermelhos que brilham no escuro. Se John não tivesse sido quase decapitado por um, eu diria que é montagem.

          - Ah... – falei sem graça. Hideo se mexeu de forma desconfortável ao meu lado.

          - Parece que eles quase destruíram um prédio. – Sophie disse, pensativa. – Eram dois brigando com um e a briga começou bem longe de onde terminou. Uma câmera de segurança filmou quando dois derrubaram um poste.

          Senti o olhar fulminante de Hideo em minha nuca, pois isso fora minha culpa.

          - A polícia estava atrás deles, mas não os encontrou em lugar algum, e no mesmo dia houve outro assassinato. – continuou. – Essas foram as únicas notícias “interessantes” nessas duas semanas.                      

          - Eu vou procurar na internet depois. – menti, e logo após John chegou e nos olhou de uma maneira um tanto... Assustada, mas se sentou no assento atrás de nós. As meninas começaram a conversar animadamente sobre um cantor que elas gostavam, mas ignorei a conversa.

          - Ei. – me virei pra John. – O Hideo disse que falou com você depois... Daquele dia.

          A boca dele se entortou levemente.

          - Sim, ele falou.

          - Não sei o que ele disse, mas desculpe pelo susto, ele não iria cortar sua cabeça. – falei em voz baixa.

          - Como posso ter certeza?

          - Se eu cortasse sua cabeça. – Hideo me atropelou. – Viriam cortar a minha logo atrás.

          - Hã?!

          - Ele não te explicou, não é? – perguntei.

          - Não... – disse de maneira incerta.

          - Bom, não conte nada a ninguém. – Hideo me atropelou pela segunda vez e John somente se limitou a assentir.

          - Bem, é assim: Somos do que pode chamar de dimensão paralela, e lá só existe um continente, que chamamos de Darneliyan. Ele é imenso, tanto que tem 68 regiões do tamanho de países grandes, do tamanho mais ou menos do... Hã, bem grande. – comecei.

          - Ele seria como o Pangea daqui? – perguntou.

          - Sim, mais ou menos isso. Lá em Darneliyan é repleto de monstros que o comem vísceras humanas e bebem seu sangue. – expliquei e ele fez uma careta. – Um deles escapou e veio para cá. Ele que matou Mike.

          -... Devorado... – John murmurou, claramente nauseado.

          - Pra proteger os humanos – Hideo continuou em meu lugar. – um grupo de pessoas fundou uma organização chamada apenas de “Ordem”. Lá eles pegam humanos, normalmente crianças, com no máximo treze anos, e tiram alguns órgãos seus, junto com outras partes, como músculos e transplantam partes de monstros para dentro delas, junto com sangue deles. E então a criança passa a ser considerada uma híbrida entre humano e monstro.

          - A principal característica daqueles que sobrevivem são os olhos vermelhos e o cabelo branco. – atropelei Hideo.

          - Então, vocês são meio monstro e meio humanos. – bufou. – O que mais? 

          - Bom, nós adquirimos habilidades sobre-humanas, como você deve ter visto. – falei. – Força superior, alta velocidade, e dependendo de alguns, acaba tendo uma habilidade mais... Especial. E todos podem rastrear monstros, mas alguns melhores que outros.

          - Vocês têm alguma dessas habilidades especiais? – perguntou.

          - Bom, o Yudai tem uma sensibilidade anormal a Auras de monstros. E a Auras de híbridos. E a Auras de Despertados. – Hideo disse.

          - Tá, ele entendeu. – falei. – Quer saber o que é Aura pra entender melhor?

          - Pode ser.

          - Todo monstro emite uma energia que nenhum humano tem, assim como híbridos, mas as nossas são diferentes das de monstros. – Hideo continuou, ainda no tom baixo que estávamos usando, e então apontou para mim com o polegar. – Esse aqui consegue até sentir o cheiro delas e as sente a uma distância maior. E dá pra prever seus movimentos, não dá? – perguntou. 

          - Dá pra prever os movimentos e mudanças emocionais. – falei. – E se eu prestar atenção, consigo copiar as técnicas de outro híbrido, desde que seja a base de sua Aura. – Esse último fez Hideo bufar, pois sua técnica era à base de sua Aura.  

          - Legal! - John exclamou, mas depois olhou envolta para ver se não tinha chamado a atenção. – Parece coisa de filmes de ficção científica... E o Hideo?    

          - Ele tem uma técnica que chamamos de “Espada de Luz”. – falei no lugar de Hideo, que revirou os olhos, pois ele não havia dado esse nome. – É a técnica de espada mais rápida que existe atualmente. Ao menos é o que me falaram, já que eu nunca vi, sabe?

          - Como...?

          - Eu Desperto o meu braço esquerdo e apenas seguro a espada enquanto ele se descontrola. – Hideo bufou.

          Me virei para ele.

          - O que foi? – perguntou diante do meu olhar.

          - Você Desperta seu braço?! – exclamei em voz baixa. – Você é doido?!

          - Eu tenho um bom controle – disse enquanto revirava os olhos. – parece que se eu Despertar, eu serei muito rápido, e o meu braço tem movimentos descontrolados. Mas é tão rápido que sequer consigo ver a forma que assume.

          - Hã... O “Despertar” que vocês falam não é o de “acordar”, não é?

          - Não.

          Peguei o meu caderno, que ainda tinha o desenho do Despertado. Peguei a página atrás dele e desenhei cinco rostos. Um desenhei com o branco dos olhos completamente negros, as pupilas resumiam-se a meros círculos brancos – que na vida real são vermelhos – e a íris era um traço felino que também era vermelho. O espaço entre a pupila e a íris também era negro e encima escrevi “10%”. No outro desenhei os olhos do mesmo jeito, mas havia arabescos que emolduravam o rosto como uma tatuagem. Na vida real também eram vermelhos e encima escrevi “25%”. O outro, coloquei os mesmos olhos e arabescos, mas a boca estava entreaberta mostrando os dentes pontiagudos e os arabescos descendo para o pescoço, encima escrevi “50%”. No outro coloquei com parte da pele descascando envolta dos olhos, revelando as órbitas e escrevi “65%”, e o último estava com a pele dos olhos descascadas, os lábios do mesmo modo, revelando os dentes pontiagudos fechados, e parte da pele da bochecha também descascando, mostrando os músculos e escrevi “76%”.

          - Temos essa energia, Aura, ao nosso dispor para adquirir mais força, mas cada um tem seu limite. – Comecei e mostrei o desenho correspondente. – Quando aumentamo-la para 10%, o branco dos nossos olhos se tornam negros, e a pupila vira um único círculo sem centro. A íris continua felina. Aos 25%, começam a aparecer arabescos vermelho-sangue como tatuagens em nossos rostos.

          - Que ardem pra caramba. – Hideo comentou, olhando para a janela. – Parece que nosso rosto tá pegando fogo.

          -... É. Aos 50% nossos dentes se tornam pontiagudos “para rasgar carne” e os arabescos começam a descer para o corpo. Aos 65% a pele começa a “mudar de lugar”, dá pra ver o olho, não é? – ele concordou. – Aos 76% os arabescos estão por todo o corpo e a pele está descascando em vários lugares. Os 76% são considerados o limite que a pessoa pode usar de sua Aura, se passar daí, uma transformação começa a ocorrer de verdade, e é considerado impossível se parar a partir daí. E o híbrido se transforma em uma coisa... – virei a página, mostrando o desenho do Despertado. – Como essa. Elas têm consciência, mas se alimenta de humanos, e nunca vi dois iguais, cada um tem uma forma própria.

          - Há uma estranha poética – Hideo continuou. – Que quando um híbrido se transforma numa coisa dessas, ele “desperta” para sua vida de monstro, e então o chamamos de “Despertado”. O processo da transformação, em que o sangue ferve, a força é sobrepujada e a carne do corpo se agita para assumir a forma negra do seu espírito e mostrá-la diante si...  

          - Eu não sabia que você poderia escolher as palavras tão bem, Hideo. – observei. – E você fala como se já tivesse chegado perto do limite.

          Ele desviou o olhar com uma expressão culpada. Ah, não me diga que...

          - Parece legal ter esses poderes. – John disse. – Mas vocês passam pelo perigo de virar um monstro.

          - Ou de sermos devorados, ou desmembrados por um Despertado de força superior, só porque ele acha divertido. – Falei enquanto fechava o caderno e o guardava novamente. – É uma coisa bem divertida...

          - Sem falar que os Darneliyanos normais, entenda como humanos, tem medo de pessoas como nós, eles esquecem que um dia fomos pessoas como eles.

          - Mas vocês não são criados para protegê-los?

          - Sim, mas eles temem pelo fato de sermos mais fortes que os monstros comuns, e que possamos nos virar contra eles, pois não teriam chance nenhuma. - Hideo respondeu.

          - Ah... Mas, e o cabelo e os olhos de vocês?

          - Deram umas pílulas antes de virmos para essa missão, que mudam a cor do nosso cabelo e dos nossos olhos. – Continuou. – Não pergunte como são feitas e como se criam as variações delas, pois podemos assumir várias cores diferentes.

          -Hm... Que cor eram o cabelo e os seus olhos quando eram normais?

          - Nós éramos mais ruivos que Catherine. – respondi. – E nossos olhos estão da cor que eram quando éramos pequenos.  

          - Os olhos de vocês são de uma cor meio estranha. – disse.

          - São?

          - É um azul estranho, parece ser mais pro prateado, mas um prateado claro. – falou e coçou a cabeça. – Eu nunca vi ninguém com esta cor.  

          - Você observa bastante hein? – Hideo bufou.

          - Na verdade são as meninas que adoram ficar falando de seus “atributos”, e todo mundo acaba pegando alguma coisa. – rebateu.          

          O ônibus parou e descemos. Tive que ir à diretoria justificar minhas faltas, pois quando cheguei na aula de Biologia, o professor me mandou direto para lá. Com o atestado médico, as coisas ficaram muito mais fáceis, e voltei ainda a tempo de ver a aula de Biologia. Mas estava tão chata que de novo estendi minha mente, e tive que me lembrar que estava na escola ao sentir algo.

           - O que foi Yu? – Hideo sussurrou.

           - O monstro. – sussurrei.

           - O que tem ele?

           Encarei Hideo.

           - Está aqui. – falei num tom inaudível para um humano normal. – Está na escola.

           Ele arregalou os olhos, mas logo se virou para o professor não suspeitar de nós. Quando o horário tocou, ele falou:

           - É mesmo, senti a Aura dele passando por frente da sala. – vi suas mãos tremerem, estava muito inquieto. – Droga, ele esteve todo esse tempo tão perto, e nós nos matando fazendo ronda.

           - Pois é. – falei insatisfeito. – Vamos.

           Passei os outros horários sondando o monstro, nem prestando atenção nas aulas, e ganhei uma bronca do professor Nix por isso, mas não me importei. Continuei seguindo cada mínimo passo dele, e acabei ficando inquieto, para tentar passar a inquietação comecei a tremer a perna.

           - Você está bem? – Derek perguntou ao meu lado.

           - Estou ótimo. – falei. – Só estou ansioso para a aula acabar.

           - Você está pálido.

           - Eu sou pálido.

           - Mais que o normal. – falou.

           - Devo estar transparente então.  

           Mary me olhou, e por seu olhar, demonstrava saber muito bem o motivo de minha inquietação, mas estava reprimindo o riso.

           Para o meu azar, o professor Nix escutou. Mas fui salvo pelo sinal para o intervalo, que tocou no exato momento em que ele me olhou. Saí rapidamente da sala e fui para o refeitório. Hideo deveria estar saindo também, e quando estava sentando na cadeira entre John e Catherine, esperá-lo, senti algo.

           A Aura agora morna de Hideo passando pela gélida do monstro. Apenas passou pelo seu lado, mas teve uma explosão por parte da do monstro, e quando dei por mim, Hideo foi arremessado, atravessando a parede e caindo de peito para cima no meio do refeitório. Ele havia se machucado no momento em que fora arremessado e batera com as costas num escombro. As pessoas pararam para olhá-lo por um único segundo e então uma garota gritou.

           O monstro estava passando pelo rombo que criara.

           Conseguia vê-lo mais claramente agora, parecia uma mistura de lagarto com camaleão e um humano. Ele possuía escamas prateadas e uma crista que descia por suas costas. Ainda se era possível ver os óculos em seu rosto, e também os restos de uma calça de tecido marrom. 

           Levantei de supetão, enquanto Hideo se recuperava. O monstro cravou as garras num enorme pedaço de concreto e o atirou em minha direção. Calculei a velocidade e não daria tempo dos humanos envolta de mim correrem, então tive que me mover. Agarrei o meu símbolo e o transformei em uma claymore, e despedacei a pedra com vários golpes rápidos, e no momento em que despedacei a pedra, o monstro agarrou alguém com sua cauda.

           Mary!

           - Eu me lembro desta aqui. – rosnou e abriu a bocarra. Mary começou a tremer, o grito entalado na garganta, os olhos arregalados. Seus óculos haviam caído, mas ela com certeza conseguia ver os dentes de navalha do monstro, eu jurava que conseguia sentir seu bafo – deveras fedido – da distância de onde eu estava.

           Arranquei em alta velocidade, cortei a cauda do monstro, e a peguei por uma das voltas que a enrolavam na cauda dele. Ele rugiu em fúria e me atacou, mas pus Mary debaixo do braço e saltei. Girei no ar e meus pés tocaram no teto. Empurrei-o com tanta força que o senti rachar diante da pressão e pousei no outro lado do refeitório.

           - Tá tudo bem? – perguntei enquanto cortava o que a prendi.

           Mary apenas fez “sim” com a cabeça, os olhos ainda mais arregalados, senti todos os olhares do refeitório voltados para o ato impossível que eu acabara de fazer. Senti a Aura de Hideo romper as amarras do Supressor, e também do Transfigurador, pois vi uma mecha de seu cabelo se tornando gradualmente branca.

           - Ataque surpresa não vale. – rosnou.

           Os alunos começaram a correr para fora do refeitório, acompanhados por professores, faxineiros, todos corriam. Me aproximei de Hideo, ficando ao lado dele, de frente para o monstro, que estava a menos de um metro de nós. O cabelo de Hideo estava já quase totalmente branco, talvez a Aura quebrasse o efeito das pílulas, mas não era hora de pensar nisso.

           Vi as mãos do monstro alongarem-se, tornando-se como duas lâminas retas, e ele atacou.

           No momento de seu ataque, senti uma explosão de Aura vinda por parte de Hideo, na verdade, por seu braço esquerdo. Segundo sua Aura, ele ergueu o braço esquerdo diante do corpo e moveu-se de forma tão descontroladamente rápida que para mim, Hideo sequer movia-se, seu braço normal ao lado do monstro à minha frente, se não fossem os vários cortes no corpo do monstro. Mas o braço do monstro não cortou ao entrar em contato com o ataque, na verdade, ele desviou, e quando vi o bufê, há quase dez metros de nós, que foi completamente cortado em pedaços pequenos. E Hideo estava com o braço levantado para o lado, como se apontasse para algo, na direção do bufê.

           Hideo Despertava seu braço para conseguir aquilo, então seu braço também deveria ser elástico, para conseguir tão grande alcance, mas também tem que se ter um controle absurdo de Aura e consciência para conseguir Despertar apenas um membro. O monstro avançou e nossos movimentos foram quase gêmeos, pois saltamos para trás no mesmo momento. O monstro me atacou com seu braço esquerdo com uma força imensa, pois quando aparei o ataque, tive que afundar os pés no chão, e mesmo assim, ele me arrastou por alguns metros esticando seu braço, criando um rastro por meus pés, e saltei quando ele me encurralou em uma parede, fazendo-a rachar. Saltei por cima de sua cabeça, girei, ficando por um momento de cabeça para baixo, pousando no chão.

           Hideo atacou-o novamente, dessa vez numa velocidade em que eu pude acompanhar, mas seu braço era um mero borrão a minha frente. O monstro tentou parar o golpe, mas quando viu que não podia parar o movimento, tentou dar uma joelhada em Hideo, que desviou, mas regenerou sua cauda numa velocidade assustadora e a usou como chicote. Hideo desviou por pouco, abaixando seu tronco para trás, apoiando a mão no chão.

           Cheguei nele em três saltos e quando estava ainda no ar devido ao terceiro salto, tentei golpear sua cabeça, mas ele jogou-a para trás na hora e me atacou com sua calda. Finquei a espada no chão e usei-a como apoio, virando de cabeça para baixo, joguei as pernas para o lado e arranquei a espada do chão, e aproveitando a pressão, corri minha espada no chão e tentei acertar suas pernas, mas ele saltou no exato momento.

            - Ele se esquiva bem. – Hideo elogiou contra sua vontade.

            Ele atacou Hideo esticando um de seus braços, mas ele saltou na hora também, fazendo o monstro atingir o chão. A coisa levantou o braço e Hideo o utilizou como apoio, e pôs os pés na braço dele e deu uma cambalhota para trás. Quando pousou, acertou o braço do monstro com clara força acumulada, mas conseguiu cortá-lo apenas até a metade.

            - Hã? – falou antes de receber uma chicotada com a cauda do monstro, fazendo-o voar pelo buraco que fora criado quando fora arremessado no refeitório, e novamente outro estrondo. Ouvi gritos do lado de fora.

            Havia algo errado com esse monstro, não era um Despertado, mas também não era um comum, pois eles não possuem tanta força física e agilidade como esse possuía.  Ele cravou uma de suas lâminas no chão, pois desviei no momento que ele ia me acertar. Ele começou a tentar desencravá-la do chão, mas havia a posto com força demais até para si, e vi o profundo corte de Hideo. Corri rapidamente para lá e pus o máximo de força que pude no golpe, e me deparei com uma resistência inacreditável vinda por sua carne. Talvez por Hideo já ter conseguido cortar até a metade, eu pudera cortar o braço dele, mas ele acertou sua cauda em meu ombro direito e só vi então que ele possuía pequenas lâminas incrustadas, e fez um corte de meu ombro até minha cintura, cravando-a ali.

            Eu sou destro, e não consegui segurar a espada com aquele ferimento, e acabei soltando-a e senti minha visão escurecer levemente, mas não iria me permitir perder a consciência. Imediatamente elevei o calor que era minha Aura para 25%, sentindo meu rosto arder, mas direcionei todo o calor para meu ferimento, começando a suavizar a dor o mais rápido que podia para apenas depois curá-lo. Ele viu que estava me recuperando e me atacou de novo. Mergulhei para o lado, rolei e peguei minha espada no mesmo momento em que Hideo voltava, coberto de sangue, fazendo a mesma coisa que eu. O branco de seus olhos estavam negros e os arabescos em seu rosto lembravam... Fogo?

            Ele veio correndo e se jogou de joelhos ao chão, e deslizando, atacou as pernas do monstro, que saltou novamente, e nesse momento vi minha chance. Saltei para trás dele e cravei a ponta da claymore em suas costas, então desci, abrindo um talho enorme. Ele rugiu e cravei a claymore em suas costas, me mantendo preso ali. Pus os pés nas suas costas enquanto ele se contorcia tentando me tirar de lá, segurei no cabo da espada, então levantei um pé e pisei no cabo da claymore, que com um som molhado, atravessou seu corpo, bem no coração. O sangue azulado começou a escorrer, e ele se contorceu com mais ardor.

            Hideo saltou e mirou em sua cabeça, então tirei o pé do cabo da espada e segurei nela com mais força e me joguei para trás sem soltá-la, ficando paralelo ao solo. Logo vi a espada de Hideo atravessar o pescoço da coisa, onde segundos antes estava minha cabaça, mas a criatura continuou se debatendo, rosnando de modo assolador. Do lado de fora escutei sirenes de polícia, mas não iria parar, e então escutei:

            - Eu me lembro desses dois. – uma mulher gritou. – Um deles salvou o Cid!

            Um tiro atingiu a cabeça do monstro, que cambaleou. Hideo me olhou por cima de seu ombro e soube o que ele queria. Com esforço, puxei a espada para a direita, e quando ela estava quase saindo do corpo do monstro, puxei-a com toda a minha força para a esquerda, cortando-o ao meio ao mesmo tempo em que Hideo acabava com a cabeça dele.

            Caí pesadamente ao chão e Hideo também, enquanto o sangue da coisa esguichava. Era um sangue azulado e gosmento. Com certeza não era um monstro normal. Os restos do monstro caíram ao chão enquanto nós nos levantávamos.

            Meu ombro ainda estava com a ferida aberta, que doía tanto que se eu não estivesse com a minha Aura, teria perdido a consciência, e comecei a curá-la lentamente quando me sentei para não perder o controle, mas senti a mão de Hideo em meu ombro e ele deu uma leve cabeçada na lateral da minha cabeça e então ficou com a cabeça encostada ali. Ele estava com um ferimento que ia do seu ombro direito até a parte esquerda de sua cintura.

             - Da última vez que ficamos tão exaustos e sujos assim ao mesmo tempo, era de lama. – falou. – E não era desse jeito pra acabarmos com ele.              

             - Vamos ter que dar o fora daqui rápido. – concordei. – E voltar para Darneliyan.     

             Ele levantou e pegou sua espada, e quando vi, ele despedaçou o corpo do monstro em pedaços tão pequenos que era irreconhecíveis, então ele pegou minha espada e disse:

             - Vamos pegar sua mochila que ainda está inteira e dar o fora daqui.

             - Ei! – alguns policiais começaram a vir em nossa direção.

             Peguei minha mochila – que saíra intacta – corremos em nossa velocidade, passando pelos policiais, que sequer perceberam que passamos por eles devido a alta velocidade e passamos também por todos os alunos que olhavam ainda embasbacados para o rombo na parede da escola, e vi também um carro chegando, e pelo que parecia, era de uma emissora de TV, mas não iria ficar ali para ver a reportagem.

             Saltamos para cima dos prédios e saltamos até estar encima de um perto da casa de Harrys. Peguei o celular, disquei o número de Harrys e passei ele para Hideo. Quando Lionel atendeu, ele explicou tudo o que acontecera sobre o monstro que nos atacara na escola e então desligou o celular e o passou para mim.

             - Ele disse que está vindo. – avisou. – E é para destruir o celular, por medida de segurança.

             Dei de ombros, então joguei o celular no chão e pisoteei-o com força, até restar poucos restos. Hideo deu de ombros e fomos tão rápido para a casa de Harrys que ninguém reparou em dois adolescentes de cabelo branco cobertos de sangue com as roupas rasgadas. Abri a porta e fechei-a depressa, trancando-a.

             - Eu vou tomar banho, arrumar as minhas coisas na velocidade da luz e vou buscar a Raquel. – falou. – Lave as mãos e arrume as suas coisas e as da Raquel.

             Assenti e fui na cozinha, pingando sangue por onde passava, e lavei o sangue até os cotovelos, então subi e fui primeiro no quarto da Raquel, por sorte, ela não deixava as coisas desarrumadas, tive muita pouca coisa para arrumar – cuidadosamente para não manchar nada de sangue. Peguei a sacola dela e levei para o meu quarto, e senti a Aura de Lionel chegando. Quando eu tava pegando a mochila que eu usava em Darneliyan, com o saco de dormir e roupas, ele apareceu e jogou uns pacotes encima da cama e vi que eram de comida. Mas ele não disse nada, apenas saiu e senti sua Aura subindo até o sótão. Pus os pacotes de comida dentro da mochila e Hideo saiu do banheiro, pegou dois Transfiguradores que eu havia cortado ao meio e desceu.

             Pus os dois na boca, e tomei banho, tirando todo o sangue que me sujava da cabeça aos pés, e quando saí do banheiro, Hideo apareceu com Raquel. Ela estava confusa, mas somente desci com as nossas coisas e ela piscou ao ver Lionel sem as coisas de “Harrys”.

             - A única coisa que me preocupa realmente são os baús. – disse. – Eles são de tecnologia Darneliyana, então encolhem, e cabem em um bolso.

             - Legal, mas e agora? – perguntei.

             - E agora eu vi a polícia vindo para cá. – bufou. – Eu vim a pé porque meu carro é muito lento em comparação a minha velocidade, provavelmente aquele agente deu sua localização.

             - Foi mal. – me desculpei.

             - Tudo bem. – disse e deu de ombros. – Quando eles chegarem, não terá mais ninguém aqui. E espero que você cumpra o que disse ontem.

             - Eu vou cumprir. – garanti. – Você vai fazer uma mudança relâmpago, não vai?

             - Ah, vou sim, mas não importa. Provavelmente vou me mudar pra América do Sul. – murmurou. – E não serei mais Theodore Harrys. – ele pegou algo em seu bolso e me passou uma pulseira de prata com um símbolo de guerreiro, mas o símbolo era todo adornado de maneira delicada com fios de ouro. – Entregue isso para Raban, se puder, por favor.

             Ouvi as sirenes da polícia, então dei a sacola de Raquel para Hideo, pus as mochilas nas costas, peguei a minha sacola e com o outro braço, praticamente coloquei Raquel embaixo do meu braço.

             - Temos que sair rápido daqui. – falei para ela. – Então eu vou ter que correr, ok?               

            Ela somente assentiu e Lionel apenas entreabriu a porta, e escutei o som dos policiais do lado de fora. Ele ergueu a mão e contou e fez com os dedos “um, dois...’’ Quando fez o três, abriu a porta, arrancando-a das dobradiças e exclamou:

            - Agora!

            Disparamos para fora da casa, e um policial caiu por Hideo dar um escorão nele, e nós dois corremos até o beco de onde saímos quando chegamos a Terra, enquanto Lionel corria em uma direção oposta, e logo sua fraca Aura foi saindo da cidade. Hideo praticamente chutou o tijolo que possuía a imagem das duas deusas e a parede se abriu, revelando o portal dimensional e entramos nele, saindo então no meio do 9° templo.

            Pus Raquel no chão e consegui escutar seu coração disparado. Ela estava ofegante e tremia. Para quem não é acostumado, a alta velocidade de um híbrido é assustadora, não dava para culpá-la.

            - Sinto muito por isso. – falei. – Mas... Acabamos eliminando o monstro no meio da escola, então iriam atrás da gente.

            Ela apenas assentiu e abraçou minha cintura, então me permiti respirar aliviado.

            - Ah... – Hideo murmurou. – Isso que eu chamo de saída triunfal. Matamos um monstro no meio da escola e saímos correndo da Terra.  

            - Bom, ao menos foi... Rápido. – falei e pus a mão na sobre os cabelos finos e negros de Raquel, que ainda estava tentando se acalmar. – Bom, de volta a Darneliyan.

            Ele apenas assentiu e foi para fora do templo, porém, não foi embora, apenas ficou do lado de fora.

            - Ei, você ficou assustada demais com a velocidade? – perguntei para Raquel.

            - Você é rápido demais. – murmurou ainda abraçada em mim, embora não estivesse mais tremendo.               

            Apenas ri e fui para fora do templo, onde Hideo nos esperava. Quando nos viu, ele anunciou:

            - Eu vou voltar para a Ordem e avisar que voltamos. – disse enquanto dava a sacola de Raquel.

            Apenas assenti, e logo Hideo começou a correr, desaparecendo rapidamente de vista.

            Estava de volta à minha vida normal.                                                                    


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Notas finais do capítulo

Agradecimentos à Dryka Alves pela nova capa de Olhos de Sangue!
E assim, termina o "Arco Escolar" de Olhos de Sangue, de volta à Danerliyan!



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