Quantum escrita por bragirl2


Capítulo 2
Déjà Vu




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Capítulo 1 – Déjà vu

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O dia em que tudo mudou parecia ser só mais um dia. Eu estava de pé, apoiada com os cotovelos sobre o balcão. Não fosse o apoio das mãos sob o queixo, minha cabeça repousaria na superfície de madeira.

Meus olhos vidrados não saíam do grande relógio acima da porta. Pelo arrastar enervante do ponteiro dos segundos, cheguei a achar que a pilha tivesse acabado. Conferi o visor do microondas. Pela enésima vez, vinte para as quatro. Não, não... dezenove para as quatro.

Mas eu já devia imaginar.

Chegar ao café e vestir o avental verde-enjoo era como atravessar para outra dimensão. Pelos últimos dois meses, a cada manhã eu ingressava em um microcosmo em que o tempo passava em câmera lenta. E à medida que meu horário de saída se aproximava, a velocidade dos ponteiros reduzia ainda mais.

O mais torturante não era isso. Era a absoluta sensação de que cada tic e cada tac... não valiam de nada. Eu devia estar aproveitando o tempo para fazer algo de útil. Devia estar, sei lá... estudando.

Está certo que era janeiro. Sim, janeiro. Em uma ilha com uma centena de praias. E eu passava as manhãs e tardes vendendo chás gelados e batidas de café com sorvete. Feitos para refrescar as periguetes que passeavam pelo centro da cidade gastando as solas de chinelos brasileiros comprados na Europa. Isso quando já estavam cansadas dos banhos de mar e bronzeadas o suficiente.

Em vez de aproveitar os dias de sol, eu respirava o ar condicionado do trabalho, tão dura que mal podia ir à praia quando estava de folga. Enquanto a pele ficava mais branca e azeda a cada dia.

Se bem não tinha mesmo dado praia. O vento sul de uma frente fria fora de época gelava o ar em pleno verão. Se continuasse assim, eu iria aproveitar minha folga para fazer uma visita que estava devendo, arrumar o quarto, colocar a leitura em dia...

Arram – alguém ao meu lado pigarreou.

E o que é que foi, agora?, pensei.

— Tem gente de mau-humor em plena sexta-feira... – entoou a conhecida voz estridente. Virei de má vontade para olhar o rosto de Mike antes de responder. As covinhas estavam acentuadas pelo sorriso que ele exibia; os lábios comprimidos acima e abaixo do aparelho.

— Não, não – disfarcei.

— Bella, você tem algum compromisso essa noite?

Estreitei os ombros enquanto minha cabeça corria em círculos buscando possíveis evasivas para outro convite constrangedor. Eu gostava de Mike. Mas não do mesmo jeito que as outras garotas gostavam de Mike. Era algo sobre os olhos claros, as covinhas e o cabelo meticulosamente arrumado, que ele passava horas ajeitando. Mas o charme dele era... um tanto demais para o meu gosto.

Às vezes eu torcia que esse fosse o meu gosto. Seria tudo mais fácil. Mike era meu amigo mais próximo. Estudamos juntos e ele me indicou quando o pai dele precisou de mais uma atendente no café. Mas para mim nada passava de amizade – um limite que ele constantemente tentava cruzar.

Não consegui concatenar qualquer resposta decente e o silêncio já havia durado demais.

— Não... Por quê?

— É que eu vou sair hoje e queria te pedir um favor.

Ufa. Desde que os planos não me incluam...

— Claro, qualquer coisa.

— Você pode voltar aqui às nove para fechar o café? A Jessica começou no turno das três e vai ficar até o final. – Então ele sussurrou, na tentativa de abafar a voz esganiçada – É que eu preciso sair lá pelas sete horas e preciso de alguém pra fechar o caixa.

Eu queria ter a desculpa de morar longe. Mas ele sabia que o apartamento da minha tia ficava a duas quadras de distância.

— Tudo bem, Mike, pode deixar – concordei, suspirando derrotada.

Então ele atravessou a fronteira. Puxou-me em um abraço apertado, tentando sem sucesso me erguer do chão acima dos seus um metro e sessenta e poucos. Tínhamos praticamente a mesma altura.

— Ah, Bella! Só você mesmo para quebrar um galho desses! – Enquanto ele falava, eu dava delicadamente um passo para trás. – Vou até te dar folga amanhã pra compensar!

— Nem vem, Mike. Minha folga já é amanhã.

Ele riu.

— Ei... calma! Claro que esse pequeno favor pode ficar só entre a gente – ele disse, lançando uma piscadela desajeitada e acertando o cotovelo pontudo nas minhas costelas. Depois deu uma daquelas risadas sonoras que costumavam puxar um coro de gargalhadas na escola e seguiu para a sala dos fundos.

Obviamente, ele queria evitar que o pai soubesse que ele encarregava uma funcionária de lidar com o dinheiro. Seu Roney não devia saber, então, de todas as funções que eu acumulava por ser amiga de Mike e ter a confiança dele. Provavelmente ficaria uma fera se descobrisse que o filho passou para mim as partes chatas do trabalho.

Eu só não conseguia entender como alguém que não gosta de contas ia fazer faculdade de Contabilidade. Assim como eu, ele também não tinha feito vestibular para a universidade federal. O pai dele pagaria uma faculdade privada.

Meu tédio cresceu vertiginosamente quando refleti que minha alforria hoje não viria às quatro da tarde. Eu precisaria voltar. Fitei o relógio. Um minuto para as quatro. Até que enfim.

Comecei a soltar o laço do avental às costas quando meus olhos desceram dos ponteiros e se concentraram em uma miragem parada em frente à cafeteria, do outro lado da porta de vidro.

Ele.

Era.

Lindo.

Alto, magro, os cabelos como um emaranhado de fios dourados que apontavam para todos os lados e nenhum deles. Mas foram os olhos que me prenderam. De um luminoso tom verde, tinham um brilho capaz de hipnotizar. Eu queria ver de perto.

E o inacreditável: ele me fitou de volta. Resisti ao impulso de virar para trás e conferir se era mesmo para mim que ele olhava. Senti o arrepio de uma corrente elétrica e fui tomada por uma sensação curiosa. Um déjà vu. Ele não me era de todo estranho. Ao mesmo tempo, eu não encontrava nenhuma memória palpável.

Ele abriu a porta, deu um passo para dentro do café e parou. Aqueles simples movimentos, lentos demais em minha cabeça, apagaram completamente minha visão periférica. No mundo todo havia aquele rapaz na minha frente... e mais nada. O olhar dele parecia me atravessar. Ele não me observava como quem vê alguém pela primeira vez. Parecia me reconhecer também.

Ele foi dar mais um passo, mas vacilou. Vi a expressão dele mudar. Era como se estivesse com dor. Não era uma visão tranquila.

Foi só um instante, que mais pareceu uma tensa eternidade. Ouvi o som de sinos, ao longe, e cheguei a pensar que estavam na minha cabeça. Era assim nos contos de fada, não era? Logo realizei que as badaladas soavam da catedral, marcando a nova hora.

Bem mais ao fundo uma voz chamava meu nome. Não me virei para a dona da insistente voz.

— Bella! Hello-ow? – era Jessica, sacudindo meu braço de leve.

Não respondi.

— Credo, menina. Até parece que viu um fantasma!

Só então voltei à Terra. Nossa, será que é possível ficar tanto tempo sem respirar? Percebi que ele desviou os olhos e contemplava algo subitamente interessante na prateleira de revistas.

Estranho. Eram todas edições antigas. A mais recente tinha dois meses. Mike não substituía os exemplares com a periodicidade devida.

Quando, relutante, encontrei o olhar de Jessica, ela continuou:

— O Mike pediu para avisar que seu turno acabou e que você já pode ir agora.

— Eu vou ficar mais uns minutinhos para conferir o caixa – inventei. Eu já tinha contado o dinheiro duas vezes.

Vi quando Jessica notou o foco das minhas atenções. Não que ela fosse a rainha da perspicácia. Eu simplesmente não conseguia deixar de olhar a cada dois segundos na direção dele, que tinha pegado uma das revistas na prateleira e agora lia com devoção em uma mesa ao fundo.

— Hmm... Você conhece aquele pão? – ela fez um gesto de cabeça na direção dele, os olhos provocadores.

— Eu? Acho que não. Por quê?

— Nada, nada... só porque parece que você quer comer com os olhos! – disparou, soltando uma risada nada discreta. O olhar dele veio em nossa direção no mesmo instante e depois voltou a pousar na revista sobre a mesa.

Quase morri de vergonha.

— Deixa de ser ridícula!

— Tudo bem. Só lamento que eu vou ter que fazer o sacrifício de ir até lá – ela disse, arcando as costas e puxando os seios para cima, deixando-os ainda maiores por baixo do avental. – Não quero deixar aquela gracinha esperando... – acrescentou, numa voz vulgar.

Aquilo me irritou. Não que eu temesse que ele fosse realmente olhar pra ela. Jessica era uma mulher bem comum. Tinha uns 20 e muitos ou 30 e poucos anos. O rosto redondo já mostrava alguns leves sinais de vincos em volta do grande nariz e nos cantos dos olhos pequenos e escuros. No corpo volumoso, só mesmo os seios se destacavam. E eu desconfiava que fossem comprados.

Não, ele não daria atenção a ela. Mas eu vigiaria a mesa, pra ter certeza.

Ela tirou o bloco do bolso e pousou a caneta sobre o papel. Inclinava-se exageradamente enquanto perguntava algo para ele.

Ele meneou a cabeça de leve. Depois apontou para a revista e continuou falando com ela. Jessica se inclinou ainda mais enquanto se voltava a ele, a expressão numa tentativa de parecer insinuante. Mais óbvio, impossível.

Eu não me considerava bisbilhoteira por natureza, mas se eu fosse uma mosquinha... Ou se o som ambiente estivesse mais baixo, ou se ele ao menos tivesse escolhido uma mesa mais próxima, eu poderia ouvi-los. Mas, infelizmente, precisava me contentar com meu curto conhecimento sobre linguagem corporal.

Quando ele voltou a falar, algo pareceu tê-la aborrecido. Jessica ergueu o corpo de súbito, guardando o bloco no bolso e falando algo, com um tom estranho nos olhos... Ultraje? Esse era meu palpite.

Ela então virou e marchou rapidamente em direção ao balcão. Teria ele dado alguma resposta direta, cortando os flertes dela? Baixei os olhos para o caixa e mordi o lábio para não rir. Quando voltei a olhar, percebi com tristeza que ele saía pela porta. Fui tomada por uma súbita vontade de segui-lo. Mas o que eu ia dizer? Quem ele era? Por que olhou para mim daquele jeito? Pelo visto, respostas que eu nunca teria.

Jessica bufava ao meu lado.

— Que foi? O que você falou para espantar o cliente assim? – provoquei.

— Acho que ele não é daqui... – ela pareceu pensar alto, antes de se virar para me responder – Ele não queria nada. Perguntou onde poderia comprar aquele exemplar da revista e eu mostrei a ele que era uma edição velha. Ele perguntou quanto cobraríamos por aquela e eu falei que ele podia levar.

Eu não percebia nada na conversa que pudesse tê-la deixado naquele estado de nervos.

— E ele vai voltar para devolver? – Será que eu o veria de novo?

— Sei lá. Acho que não. Ah, tem tanta revista velha aqui que pensei que o Mike não daria falta de uma – ela se desculpava. – Na verdade, eu disse que aquela era um presente... – concluiu, com uma voz fininha. Sem dúvida, uma cantada frustrada.

— E era só isso que ele queria?

Eu estava curiosa demais. Tentava dar ares de aborrecida para que ela não notasse.

— Ah – Jessica expirou como se lembrasse de um detalhe sem importância e acrescentou muito rápido – ele perguntou se você se chamava Bella.

Meus olhos pareciam querer saltar do rosto. Não consegui disfarçar a surpresa.

— Ele sa-sabe meu nome? – soltei atrapalhada, alto o suficiente para atrair olhares dos clientes das mesas mais próximas.

Jessica apontou para o broche pregado em meu avental.

— Deve ter lido aí, pequeno gênio – disse, com uma azeda ironia.

Todas as funcionárias tinham os nomes impressos no pequeno adorno. Ainda assim, ele quis confirmar a informação com ela. Devia significar alguma coisa.

Meu coração retumbava no peito. Lembrei do rosto de Jessica caindo enquanto falava com ele. Ele perguntou meu nome. Isso a tinha irritado. Mordi os lábios de novo para conter o sorriso debochado.

— Bem, Jessica, meu horário já terminou – disse, tirando o avental e pendurando-o no gancho na parte de trás do balcão. – Vou nessa.

— Até mais.

Dei uma última olhada em direção à prateleira de revistas. Depois de ver aquelas capas todos os dias exaustivamente, eu sabia com certeza qual exemplar estava faltando. Eu tinha aquela edição, que minha tia havia trazido do hotel. Só precisava vasculhar em casa para saber o que afinal o havia interessado tanto em uma revista velha de fofocas. Mas antes de ir para casa, eu tinha uma maratona a cumprir.

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