Consequências escrita por Carlos Abraham Duarte


Capítulo 2
O Desejo + Succubus


Notas iniciais do capítulo

Este capítulo contém spoilers dos capítulos 38-42 da 2ª temporada do mangá Rosario+Vampire (além de algumas ideias originais).

Esta fic foi inspirada no episódio "The Wish" ("O Desejo"), da 3ª temporada da série televisiva "Buffy the Vampire Slayer".



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IFRIT - Na antiga mitologia árabe e no Islã, ifrit (masculino) e ifritah (feminino) são os nomes dados a uma raça de djinni, ou gênios infernais, abaixo do patamar de anjos, famosos por seus poderes sobrenaturais e sua astúcia. Em sua verdadeira forma, um ifrit é uma enorme criatura alada ígnea, constituída de fogo e fumaça, seja macho ou fêmea, que pode controlar o elemento Fogo e vive no subsolo ou costuma frequentar antigas ruínas. É capaz de assumir a forma de qualquer ser humano ou de um animal. Como os djinni em geral, os ifrit vivem numa sociedade organizada nos moldes tribais árabes, com reis e rainhas, tribos e clãs. Eles têm todas as necessidades físicas dos seres humanos, podendo inclusive serem mortos, mas vivem cerca de 4.000 a 5.000 anos e estão livres de restrições físicas. Geralmente eles casam-se entre si, mas podem também se casar com humanos e produzir filhos híbridos. Armas comuns são inúteis contra djinni e ifrit; todavia, eles são suscetíveis à magia, podendo por isso ser vitimados ou escravizados por magos humanos que dominem as técnicas apropriadas para tanto. Do mesmo modo como todos os djinni, os ifrit podem ser crentes ou infiéis, bons ou maus, embora mais frequentemente sejam descritos como perversos e impiedosos. Iblis (o Diabo, segundo o Corão) é seu pai e seu chefe supremo.

Nas histórias das "Mil e Uma Noites", mortais incautos encontram ifrit que foram presos por magos em garrafas ou lâmpadas mágicas e forçados a conceder três desejos. No entanto, eles são persuasivos e, usando de lábia, não hesitam em induzir alguém a pedir o que eles queiram. Ou distorcer e deturpar os sonhos de seus "escolhidos" para o mal.

Enciclopédia dos Monstros Sobrenaturais


OUTRA realidade, outro mundo, outra vida...


Região Administrativa Especial de Hong Kong, República Popular China.

Mansão da família Wong (líderes youkais da Máfia chinesa). No interior de uma dimensão paralela criada pela Metamagia de Fuhai Touhou, espécie de realidade invertida de Hong Kong, à qual se chega por um portal interdimensional do tipo "espelho d'água" com bordas decoradas com ideogramas chineses que ocupa o centro de uma sala octogonal.

Um verdadeiro universo-espelho vazio para guerreiros super-humanos treinarem.

– Pra mim... o Tsukune é mais importante que o mundo...!

Infelizmente, não existe mais o Tsukune!

Não vou te perdoar... se ferir o Tsukune...!

Pare!! Você vai morrer!

Eu sou uma succubus que vive do amor! E estou feliz em morrer por amor!

Ignorando a advertência, ela transpôs a "barreira ofensiva" de energia espiritual que a separava do monstro demoníaco desprovido de consciência que já fora Tsukune - o homem que ela amava - , e, mesmo ferida, sangrando, de corpo e alma, aproximou-se dele corajosamente. E então tomou o rosto de pele coriácea e negra em suas mãos delicadas e, fitando aqueles orbes opacos, de um branco-prateado total, ergueu-se na ponta dos pés, uniu seus lábios róseos e macios aos dele num longo beijo apaixonado que drenou toda a energia maligna que havia tomado conta dos corpos físico, etérico e astral de Tsukune.

– Eu te amo, Tsukune... E de agora em diante, para sempre, estarei ao seu lado para te proteger...

Foram estas as últimas palavras de Kurumu Kurono antes de perder os sentidos.

************

"Mundos dentro de mundos, mundos ao lado de mundos... Coexistindo lado a lado, separados por uma barreira de... verdadeiro nada!"

O olhar violáceo de Kurumu vagueou a esmo pelo conjunto de pavilhões, templos, pontes vermelhas de madeira, jardins de lótus e esculturas feitas com plantas no interior do impressionante complexo que emulava o estilo arquitetônico em voga na China imperial durante a dinastia Tang, entre os séculos VII e IX. Logo além do conjunto religioso erguiam-se o Pavilhão da Perfeição Absoluta, a casa de chá cerimonial, toda em madeira com telhado de pedra, e o jardim de bonsais. Uma queda d'água cristalina cascateava num lago sinuoso, com arranjos de rochas ornamentais, onde nadavam carpas coloridas. As plácidas águas do lago eram atravessadas por uma ponte vermelha arqueada com degraus, simbolizando o caminho que se deve percorrer para chegar ao paraíso, mas que conduzia, isto sim, ao esplêndido pavilhão dourado. Nas palavras do próprio Tao-shi Fuhai Touhou que era um dos três arquimagos youkais conhecidos como os "Três Lordes das Trevas", tudo aquilo havia sido "replicado em 100% do nível quântico" do Monastério de Chi Lin e do Jardim Botânico de Nan Lian, em Diamond Hill, Kowloon, Hong Kong - a Hong Kong do mundo real, de nosso continuum de espaço-tempo. O resultado era uma duplicata exata, átomo por átomo, porém invertida tal como numa imagem especular. Espelhos dentro de espelhos. Kurumu não entendia de que maneira o velhíssimo nigromante e kekkaishi tinha logrado enfiar toda uma realidade em separado dentro de casa - uma casa que possuía uma extensão numa hiperdimensão e, por conseguinte, uma forma interior diferente da exterior, sendo por isso maior por dentro do que por fora. O pequeno tanque circular no centro da sala de treinamento octogonal à semelhança de um espelho Pa Kua superdimensionado, funcionava qual porta induzida. Ruby já lhe havia explicado isso. E, ao contrário da Hong Kong "real", a Hong Kong-Espelho estava vazia de gente. O lugar ideal para Tsukune e os outros treinarem para a próxima batalha, sem causar destruição no mundo dos humanos.

Kurumu suspirou. - Tsukune... Queria saber como você se sente agora. Será que se lembra de alguma coisa que aconteceu ontem, quando perdeu o controle? E depois, o beijo?

Baixou o olhar para as mãos e os antebraços enfaixados. O amor machuca.

Tinha bandagens nos dedos, mãos, pulsos, antebraços e, por baixo da camisa branca do uniforme escolar e do suéter amarelo, no tórax até a base do pescoço. Ainda assim, ela continuava linda, com sua constituição física pequena e esguia, busto proeminente, rosto largo de traços mangólicos, nariz pequeno, lábios delgados, grandes olhos futae, oblíquos, de cor violeta, e cabelos azul-claros enfeitados com uma fita púrpura. A minissaia pregueada xadrez não ocultava praticamente nada de suas belas pernas. (Uma linda mulher, tanto pelos padrões humanos quanto youkais, de-chu!)

Deixaria que a prodigiosa capacidade de regeneração celular de seu organismo youkai fizesse todo o restante, recuperando-se das lesões em ritmo acelerado.

Enquanto caminhava em silêncio ao longo da balaustrada de pedra margeando a corrente cristalina que cascateava pela área do monastério budista até chegar ao lindo lago de águas verde-esmeralda, a succubus graciosa e encantadora rememorou os eventos que tinham levado o seu "companheiro de destino" à beira da morte.

O rapto de Moka.

Dois dias antes, a propriedade da família Wong sofrera uma invasão da parte dos Tongs da família Miu, clã rival de uma das Tríades de youkais chineses, sob o comando da vampira Akuha Shuzen, chefe de operações da rede terrorista de youkais Fairy Tale e meia-irmã mais velha da própria Moka. Mesmo livre do selo místico que lacrava sua força de vampiro, Moka tinha consciência de não ser páreo para a onee-san de cabelos azeviche e corpo de ninfeta que desde os doze anos fazia jus à alcunha de "Demônio Negro". Por isso foi forçada a acompanhar Akuha sob ameaça dela matar seus amigos. Juntas, as duas irmãs montaram em um dragão voador, subiram a bordo de um gigantesco dirigível da Fairy Tale e foram embora. (E pensar que Tsukune e amigas tinham ido à China em busca do único ser capaz de restaurar o selo quebrado que controla o poder vampiresco de Moka, o yasha Fuhai Touhou!)

O desespero de Tsukune.

Vendo-se incapaz de impedir Akuha, Tsukune se odiou por ser tão fraco e implorou a Fuhai Touhou, fundador da Família Wong e um dos "Lordes Negros", que o treinasse em youjutsu, as temidas artes marciais youkais - para resgatar Moka. Mas o treinamento duro e implacável do velho mago taoísta - um youkai bicentenário que mantinha sua verdadeira aparência "élfica" de bishounen com orelhas pontudas e um 3º olho ajna selada sob a forma de nanico ancião mirrado, tipo o Mestre Yoda de Star Wars, a fim de poupar suas bioenergias - mostrou-se inútil. Fuhai declarara que Tsukune, um "hu-ghoul", um carniçal humano, nunca derrotaria Akuha, pois a vampira era mestra no Hougetsu Jigentou, a perigosíssima "lâmina dimensional suprema" que pode cortar todas as formas de matéria através de "n" dimensões superiores. A menos que...

Técnica de Modificação Humana.

Para ser capaz de bloquear a "Lâmina Dimensional" de Akuha, Tsukune tinha de submeter-se a uma "cirurgia de modificação humana" radical que reconstruiria seu corpo, alterando mágica e biologicamente sua estrutura a nível celular, astral, etérico, para torná-lo apto a usar habilidades youkais. Uma cirurgia terrível demais para ser tentada, de alto risco e baixas chances de sucesso. Se falhasse, Tsukune sofreria uma morte atroz.

A súplica de Kurumu.

Ao ouvir da própria boca de Tsukune que ele faria a modificação somática, Kurumu em pânico, rosto lindo moldado pela aflição, olhos violeta eivados de terror, tinha pedido, implorado, suplicado tentando fazê-lo mudar de opinião. Mas Tsukune, obcecado em salvar Moka das mãos do inimigo, por força do Laço de Sangue que ambos compartilhavam, ignorou os apelos e as lágrimas de Kurumu. Sabendo que talvez não sobrevivesse! Kurumu afastou-se, desesperada e chorando.

Agonia.

Enquanto Tsukune, urrando de dor indescritível e inimaginável, tinha o corpo todo cruelmente penetrado, retalhado e reconstituído por uma forma de acupuntura youkai usando 109 agulhas ligadas a fios de energia bioetérea, Kurumu sofria com ele, por ele. Sua força vital se esvaía, ela estava morrendo aos poucos. Em vão Ginei Morioka tentara ampará-la; uma dor rasgante dilacerava e feria fundo em seu peito até o chacra cardíaco. Pois uma succubus ou um incubus se nutre das emoções-pensamentos do amor - e da energia vital sexual - do sexo oposto. Mas a dor do coração partido, para uma succubus ou um incubus que tivesse a temeridade de amar alguém, equivalia a uma sentença de morte; aí residia o calcanhar de Aquiles da raça. Kurumu morria por amor não correspondido; porque o laço de sangue entre Tsukune e Moka - entre um mortal, ou meio-mortal, e uma vampira - era uma das ligações mentais e emocionais mais fortes dos Nove Mundos. Somente o beijo de uma succubus poderia cortar tal ligação e arrebatar o coração e a alma de um homem, mas Kurumu recusava-se a usar a magia sexual própria de sua raça para conquistar Tsukune.

Choque metafísico.

Se o laço de sangue que prendia Tsukune a Moka o fazia sentir o que ela sentia, malgrado estarem afastados, o amor verdadeiro que Kurumu dedicava a Tsukune dera-lhe a intuição parapsíquica de saber que ALGO de mau, terrificante estava acontecendo com o ser amado. Apesar de fisicamente debilitada, ela correra para socorrer o assim chamado "companheiro de destino". Mas era tarde, muito tarde, porquanto Tsukune já não era mais Tsukune! Estarrecida, contemplou a aberração humaniforme de pele negra coriácea, cabelos prateados, colmilhos proeminentes e asas de morcego brotando das omoplatas, em que o amado havia se transformado. Tinha a rodeá-lo uma aura colossal de energia youkai sombria e caótica, mais portentosa que a da vampira Moka. Sua energia negativa era uma torrente de forças desencadeadas com poder de destruição. Nas mãos dele, Fuhai Touhou jazia inconsciente.

Sangue amaldiçoado.

Superghoul! Durante a operação, a energia bioetérea reagiu violentamente com o sangue shinso latente no corpo de Tsukune - o vitae preternatural demoníaco de Akasha, idêntico ao do antediluviano Furukimono Alucard, que ela infundira em sua filha Moka e que, através desta, fora transmitido a Tsukune - desencadeando mutações anormais em todo o seu sistema endócrino que repercutiram tanto no corpo físico quanto no etérico. Como a mera existência de tal criatura possuída de uma malignidade ancestral ameaçava trazer morte e destruição em massa, Fuhai Touhou matá-lo-ia sem piedade alguma. Usando de ofuda - feitos de tiras de papel e reifu com nomes de entidades espirituais, elementais, kamis e bodhisattvas - e mentalização e vocalização mântrica, o velho magista aprisionara o feroz ghoul sanguinolento de um campo de contenção, uma "barreira ofensiva" de energia espiritual ou eletrônica que mataria qualquer ser que tentasse ultrapassá-la. Em seguida, preparou-se espiritualmente para empregar o Hougetsu Jigentou, a "espada dimensional" a fim de matar Tsukune.

O poder de um beijo.

Entretanto, Fuhai Touhou-sama foi impedido, no último instante, por uma decidida Kurumu, que - para estupefação do velho kekkaishi - transpassou a barreira e, embora sangrando dos ferimentos que a mesma lhe causara, avançou corajosamente para abraçar a medonha criatura teratoide sem alma que lembrava um chiropteran e o beijou. Ao fazê-lo ela recorreu à magia onírica, prerrogativa da raça dos incubi e succubi, para mergulhar fundo na mente e na alma de Tsukune, desconectadas pela Besta que se apoderara dele, e, tal qual fizera antes, quando resgatara as consciências de Tsukune, Mizore e Fuhai do mundo interior da alma selada de Moka, restaurou-lhe a consciência e a humanidade que pareciam perdidas, absorvendo em si a carga deletéria de miasmas astrais que se alastrara pelo sangue e infectara os corpos sutis e físico de Tsukune à maneira de um vírus parafísico, libertando-o da carapaça tenebrosa em que se achava agrilhoado. Com um beijo ela sugou e fez rachar a couraça de miasma negro que revestia o corpo possuído pela força maligna, desnudando a antiga forma humana do rapaz. O seu amor verdadeiro por Tsukune fez isso - sua mais poderosa habilidade. O AMOR VENCEU O MAL.

E então ela desmaiou de overdose de energia demoníaca e ele também. Antes de perder os sentidos, pareceu a Kurumu ouvir a voz roufenha do pequeno youkai chinês que dizia: "Eu perdi para você, Kurumu. Vou deixar a vida do Tsukune em suas mãos agora."

Kurumu tocou os lábios com os dedos da mão enfaixada. Ironicamente, o primeiro ósculo trocado entre a succubus inexperiente e aquele que ela acreditava piamente ser seu "companheiro de destino" nada tivera de erótico ou sensual. Tampouco fora essa a intenção da garota-demônio ao colar seus lábios nos dele, mas simplesmente salvar a vida e a alma de seu precioso Tsukune usando a "drenagem bioplasmática" - para que ele voltasse a ser humano. Ela sorriu maliciosamente ao recordar de uma fábula, "O Príncipe Sapo", dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, em que uma princesa beija um sapo que se transforma em príncipe (e pensar que a princesa da versão original, de tão enojada e com medo de adquirir verrugas, nunca beijou o sapo, mas arremessou-o com toda a força contra uma parede, e aí, sim, o pobre batráquio "desencantou" e voltou a ser príncipe! Chu!); igualmente, ela podia ter beijado o mosntruoso ghoul, e não o homem, porém fora graças a esse seu gesto nobre e corajoso, pondo em perigo a própria vida, que Tsukune escapara de ser morto e recuperara a forma humana. Ela, a succubus Kurumu Kurono, e não a vampira Moka Akashiya, era a heroína do dia. De novo. Pensou: Moka com certeza tentaria matá-lo, como tentou fazê-lo da primeira vez quando Tsukune se transformou em ghoul, mas foi contida pela Ruby-san.

Seu corpo curvilíneo estava etericamente poderoso, carregado de youki transmutado que ela drenara do Tsukune-superghoul. Jamais se sentira assim antes, forte e não fraca. Ela transbordava de energia vital por todos os poros de sua epiderme. Não havia tanta diferença assim, ponderou, de suas coirmãs de raça que atuavam no plano astral, copulando com os homens adormecidos, igualmente projetados em astral, para absorver-lhes a energia sexual.

"Não é verdade", ela rejeitou o pensamento. "O que fiz foi por amor."

Kurumu parou à entrada da ponte de madeira laqueada de vermelho dando acesso à réplica fiel do Pavilhão Dourado existente no convento para freiras budistas, ou Vihara, de Chi Lin, na cidade de Hong Kong do mundo real, em nosso continuum. Lembrou que, na crença popular chinesa, a cor vermelha representa "sorte", isto é, o cumprimento do destino livre de toda e qualquer interferência externa. "Que assim seja", ela pensou, subindo na ponte e recostando-se no parapeito. Não via Tsukune desde que ambos recobraram os sentidos, graças aos cuidados que lhes foram dispensados por Fuhai Touhou, poucas horas atrás. Imaginou que, com toda certeza, o moço estaria praticando suas novas habilidades marciais, de usuário de youjutsu, uma vez que, com seu regresso à forma humana, o Tao-shi pudera completar com sucesso a intervenção cirúrgica - inserindo no coração de Tsukune a 109ª agulha, cheia de energia espiritual, lacrando o perigosíssimo vitae vampírico, shinso, e fazendo o corpo dele entrar num estágio temporário de metamorfose, similar a uma pupa ou crisálida. O Tsukune que emergisse desse estágio pupal, qual imago, seria uma nova criatura em todos os sentidos. Uma nova espécie de homem, um meta-humano, no limite entre os humanos e os youkais. Mais poderoso do que nunca. Kurumu tremeu de leve. Nessas condições, o que ela seria para ele?

"Tsukune... Eu mataria e morreria por ele!"

– Que pena! - exclamou, num tom condescendente, uma voz masculina que exibia o sotaque "cantado" de Kansai, região do sudeste do Japão, que ela conhecia tão bem. - Já por duas vezes, em dois dias, você salvou a vida mortal e a alma imortal do Tsukune... Mas a cabeça dele só tem pensamentos para a Moka, e tudo por causa do laço de sangue que conecta ambos, a vampira mestra e seu servo carniçal. E agora, que o corpo dele foi "reconstruído" parageneticamente com capacidade de canalizar e manipular youki, e usar o Jigentou em combate, nada nem ninguém ficara entre ele e sua obsessão de salvar a Moka.

Kurumu virou-se rapidamente na direção da voz e avistou Ginei Morioka em pé, bem no meio da "corcova" da ponte. Estava vestido com uma camisa social azul-petróleo, com as mangas arregaçadas e a gola aberta, calça de brim cáqui e mocassins, além da indefectível bandana vermelha que quase sumia em meio aos fartos cabelos negros e lisos. O pingente prateado com a efígie do lobo cinzento, símbolo totêmico dos Filhos de Lycaon, brilhava no cordão em volta do pescoço moreno.

– Gin-senpai!? - ela exclamou baixinho, fitando assustada o jovem lobisomem. - Desde quando está aqui?

– Antes de mais, bom dia, Kurumu-chan - ele retrucou suavemente, exibindo seu sorriso galante de dentes brancos e perfeitos. - Aliás, você poderia começar a me chamar de onii-sama, ou onii-san, agora que sabe o que somos um pro outro... irmãzinha.

– Er... Bom dia, Gin... onii-san– tartamudeou Kurumu um tanto encabulada. Ela colocou as mãos na cabeça. - Preciso de tempo pra me acostumar... É tanta coisa nova... - Era verdade. No dia anterior, quando ela agonizava, literalmente morrendo por amor, por causa de Tsukune - que padecia dores terrificantes enquanto a "Técnica de Modificação Humana" de Fuhai Touhou remodelava todos os processos celulares de seu corpo biológico a partir de um nível energético superior - , sendo confortada por ninguém menos que Ginei, o pervertido, o mulherengo, ele afinal decidira confidenciar-lhe o que tinha descoberto no ano passado, pouco antes da luta contra Kuyou e a Comissão de Segurança Pública: o pai de Gin, um lobisomem prateado virl, amante das mulheres e do saquê, fora seduzido por uma certa succubus que outra não era senão Ageha Kurono, à procura do "companheiro de destino", e dessa união interespécies acabou nascendo uma filha, Kurumu. Em outras palavras, Ginei Morioka e Kurumu Kurono eram irmãos por parte de pai! Aquilo explicava muita coisa, por exemplo, a estranha afinidade e a relação de amor e ódio entre a succubus e o ookami-otoko. Coisa de irmãos, ou meio-irmãos. No entanto, tamanha era a fixação de Kurumu por Tsukune - só igualada, talvez, pela fixação de Tsukune por Moka - que ela mal chegara a assimilar conscientemente a revelação surpreendente de Ginei. Até agora.

(Independentemente da raça do pai, toda filha de succubus é uma succubus; por outro lado, a fraqueza de Kurumu, a lentidão de seus reflexos, devia-se ao fato de que, até então, ela nunca tinha sugado bioenergia de um homem por intermédio do ato sexual, ou com um toque nos lábios. Chu!)

– Gin...onii-san - disse ela. - Obrigada por cuidar de mim.

Ele começou a caminhar levemente pela ponte em direção a ela. - Como seu irmão mais velho, sempre me preocupei com você... Mesmo quando parecia te importunar, pegar no seu pé... ou nos seus seios - acrescentou, sorrindo cinicamente. Depois sua fisionomia ficou séria. - Temos um problemão e tanto. Enquanto a ligação emocional entre o Tsukune e a Moka continuar, você vai morrer. São suas próprias palavras, lembra?

Kurumu engoliu em seco. - Mas o meu beijo...

– Ah, com certeza serviu pra igualar o placar entre vocês duas. Agora o Tsukune tem alguém mais em quem pensar, além da Moka. Apesar disso, o laço de sangue continua... e o problemão também. De mais a mais... Vamos ser honestos. Não é segredo pra ninguém que o Tsukune já gostava da Moka antes, bem antes de tomar o sangue dela. O Laço, a partilha de sangue só deu uma reforçada num sentimento que já existia entre ele ela.

Kurumu cruzou os braços e empinou o pequeno nariz arqueado.

Humpf! A Omote-Moka que o Tsukune gosta, não sei se você sabe, é só um fake, uma "falsa personalidade" gerada pela magia do rosário que a mãe dela, Akasha Bloodriver, usou pra trancar a autêntica personalidade e os poderes shinso da filha. Eu estive dentro do "mundo virtual" das memórias seladas da Moka, vi e ouvi tudo!

O rosto bonito de Ginei assumiu um ar glacial.

– Personalidade falsa ou não, a Moka Akashiya continua sendo uma pedra no seu caminho. Um osso atravessado na sua garganta. Uma faca no seu coração.

Kurumu ficou chocada com as palavras do rapaz lobisomem. Seria o mesmo Gin-senpai que ontem se mostrara tão solícito e gentil? Aparecendo assim do nada e falando tais coisas...?

– Tá querendo dizer o que com isso?

A voz de Ginei adquiriu um tom insidioso. - Seja sincera, Kurumu. Você nunca quis que a Moka desaparecesse para sempre deste planeta?

Kurumu recuou um passo e gritou. - Não chegue mais perto! - Dos dedos de suas mãos saíram garras cortantes de quinze centímetros de comprimento. - Não sei quem ou o que você é, mas NÃO é o Gin-senpai! É por isso que tá escondendo sua youki, né?

Ginei parou a uns dois metros dela. - Touché! - disse ele, sorrindo discretamente. - É, garotinha esperta, você está certa, certíssima. Não sou Ginei Morioka. Tão somente, peguei emprestada a imagem humana dele que, aliás, diga-se de passagem, não é de se jogar fora. - Deu uma risadinha. - Achei que você se sentiria mais à vontade para conversar com seu senpai e onii-san, como vocês dizem, do que com um ilustre desconhecido.

Kurumu permaneceu irredutível. - Mostre-se, ou o bate-papo acaba aqui e agora. - As garras dela se alongaram mais, atingindo sua extensão máxima.

O pseudo-Ginei rolou os olhos nas órbitas e suspirou. - Como quiser, Kurumu. Conheça minha forma avatar neste plano existencial de materialização tridimensional.

Em uma fração de nanossegundo a imagem de Ginei Morioka, veterano do 3º ano do Ensino Médio na Academia Youkai, fora substituída pela de outra criatura. Um ser humanoide muito alto e esguio - media mais de dois metros de altura - , com a pele da cor do ouro velho, longos cabelos vermelho-escuros cuidados, rosto estreito de maçãs elevadas, traços finos e uma aparência andrógina, de bishounen, que contrastava de modo perturbador com com os olhos amarelos de pálpebras fendidas obliquamente, com as orelhas pontudas e com o par de cornos longos e curvos, cor de cobre polido, sobre a fronte alta onde refulgia o mais puro topázio imperial. Este ser vestia-se com um caftã de brocado trabalhado em fios de ouro e prata, ostentando estampas em relevo, geométricas e em cores vivas. Uma adaga com cabo composto por três enormes esmeraldas estava enfiada numa bela bainha de couro de lagarto no cinto largo. Usava no dedo mínimo e no indicador de cada mão anéis de ouro com opalas de fogo vermelhas.

Kurumu estava perplexa com a transformação súbita e instantânea. "Grande Mãe e Rainha Lilith! Que aura opressiva e ameaçadora esse cara tem... igual à de um vampiro!"

O estranho ser que trajava túnica comprida de mangas longas e cores vibrantes falou numa voz macia: - Não tenha medo, Kurumu. Meu nome é Amani ben Ahihud al-Lahab - com as pontas dos dedos ele tocou no peito, depois nos lábios e na testa, fazendo um gesto para a frente, acompanhado de uma mesura - e eu sou um ifrit.

– Um o quê? - ela indagou, arregalando os olhos violeta.

– Um ifrit - repetiu Amani, como o ser dizia chamar-se. - Os mais nobres e altivos dentre as cinco castas dos djinni, os poderosos Filhos do Fogo criados por Alá, o Criador, o que Desenvolve e Concede as Formas, mais de 25.000 anos antes de Adão. - Ao ver que Kurumu não estava entendendo praticamente nada, ele ergueu as sobrancelhas enviesadas e acrescentou: - Djinni, três desejos, garrafas de captura, lâmpadas árabes e toda espécie de clichê saído das "Mil e Uma Noites" que eu particularmente o-dei-o. Nunca ouviu falar nas "Mil e Uma Noites", mulher?

O rosto de Kurumu se iluminou. - Ah, entendi! "Djinni", "gênio"... Você é tipo um gênio que concede desejos, né?

(E o que, em nome de Alá, estaria fazendo um djinn em Hong Kong, de-chuu?)

– Bingo! - replicou amani alegremente. - Na realidade o termo latino genius é um falso cognato e uma corruptela da palavra árabe original. Coisa dos humanos kuffar. E, pelo amor de Alá, esqueça aquela historinha mundana dos três desejos. Pela Lei Arcana dos djinni, posso realizar UM desejo seu, um único desejo, nada mais. Você quer o Tsukune só para si, não quer? Ele se tornou a sua razão de viver, não é verdade?

Kurumu inclinou a cabeça em assentimento. - É... verdade.

Depois observou os arredores com ar preocupado, como se esperasse que Tsukune ou Fuhai Touhou ou mais alguém a flagrasse dialogando com o ifrit naquele lugar.

– Não precisa recear nada - Amani a tranquilizou, como se lesse seus pensamentos. - Ninguém a não ser você pode me ver e ouvir. Mas, voltando à vaca fria... Isto é como eu te disse antes: o único obstáculo entre você e o Ser Amado se chama Moka Akashiya.

Ele pronunciou o nome da vampira com um desdém afetado.

Kurumu quis protestar, mas as palavras de Amani, de uma franqueza quase brutal, a atingiram em cheio. Não pôde deixar de dar razão ao ifrit. Com efeito, onde estava o "seu" amado Tsukune? Do lado dela, que dera sangue, suor, lágrimas e bioenergia por ele, a fim de libertar a "centelha" de Humanidade aprisionada na carapaça de miasma que lhe cobrira o corpo, deformara e distorcera a forma física e a mente dele por causa do sangue vampiro?

Não!

Paulatinamente, o sentimento inicial de júbilo, de felicidade e de altruísmo, delicado e transparente, por haver empregado seus poderes psiônicos de projeção consciente e drenagem bioplasmática para extrair a alma do amado da escuridão tenebrosa em que se achava presa, ia dando lugar ao rancor e ressentimento contra a rival e amiga que inda ocupava a maior parte dos pensamentos de Tsukune (Kurumu se abstivera de usar o charm ao beijá-lo) e que, em última análise, merecia a culpa pela queda dele. O sangue shinso que Moka recebera por infusão da mãe, Akasha, a líder dos "Três Lordes Sombrios", era a raiz de todo o mal que se abatera sobre Tsukune.

A sua mente era tal qual um redemoinho de pensenes negativos. De ódio, inveja.

Mais uma vez Amani Al-Lahab mostrou que sabia ler seus pensamentos, enxergar seus anseios como se estivessem expostos a olhos vistos. Disse, num tom meigo: - Sim, minha pequena orquídea azul. Foi a Moka que transformou o pobre Tsukune em um monstro por compartilhar seu sangue com ele. Não importa a razão. Ela merece essa culpa. E enquanto você, Kurumu, colocava em risco a própria vida por amor do Tsukune, ferida de corpo e de alma, para trazê-lo de volta das trevas para a luz, por onde andava a supervampira toda-poderosa? Ela que não hesitou em ir embora junto com a irmã terrorista para entrar na Organização Fairy Tale de livre e espontânea vontade, virando as costas para todos vocês, inclusive o Tsukune! Allah al-Rahman al-Raheem, ela é uma Shuzen, afinal de contas, assassina até a medula, até a última hemácia! Atraiçoar, matar está nas moléculas de seu DNA vampiresco.

Não é bem assim. A consciência inata de Kurumu, a voz secreta de sua alma, contestou em silêncio. Não foi por traição que Moka se entregou, mas pra nos proteger.

Insegura de si própria, Kurumu gaguejou: - Não... Não é bem assim...

Amani aproximou-se ainda mais, inclinou-se para ela (que precisava olhar para cima para encará-lo, pois o djinn a superava em tamanho por meio metro) e, pegando suas mãos, falou-lhe com voz argêntea (Kurumu reparou que ele possuía unhas longas):

– Minha preciosa Blue Mystique, sua generosidade em defender sua grande rival é simplesmente comovedora. Não foi à toa que o Destino Divino te colocou no caminho do Tsukune, você é a mulher ideal para ele. É kismet. A vampira fake dos cabelos rosa chiclete apareceu que nem um relâmpago em céu claro e se interpôs entre vocês dois. Aliás, foi por ter conhecido a Moka que as dores de cabeça do Tsukune começaram. Certo, criança?

– É... Não posso negar os fatos - disse a garota-demônio, retirando as mãos. (Esquecendo-se de que fora exatamente o contrário; afinal, ela, Kurumu, intrometera-se no relacionamento dos dois com o intento de desbancar Moka. Somente depois de ter sua vida salva pela corajosa intervenção de Tsukune foi que Kurumu se apaixonou por ele, de-chu!)

Malgrado o seu tão decantado domínio sobre os sonhos, sendo succubus, bem como sua proverbial habilidade para reconhecer a marca da Maldade assim que via um rosto, não percebia que, à medida que falava com Amani Al-Lahab e lhe dava ouvidos, sua mente ia sendo influenciada e ajustada com imperceptível sutileza. Valendo-se da capacidade de ler e controlar mentes, o inescrupuloso djinn tomara ciência da rivalidade - ora cordial, ora agressivamente competitiva - das duas youkais por causa de Tsukune, da devoção amorosa incondicional que Kurumu nutria por ele - chegando ao autossacrifício - , e tratara de incitar ou reforçar tais sentimentos no holopensene pessoal da jovem passional de cabelos azuis, em detrimento de suas qualidades mais nobres, como a meiguice e a solidariedade para com as amigas. Dessa maneira, sem o perceber, a mente de Kurumu tornara-se alvo de uma onda de emoções cuidadosamente orientada na direção que era conveniente para os interesses do ifrit. Para induzi-la a desejar e pedir a ele que Moka Akashiya desaparecesse deste mundo (djinni são capazes de realizar suas magias fora de sua dimensão nativa unicamente quando alguém que não seja djinn desejar algo idêntico, verbalmente ou em pensamento, de-chu!).

A voz de Amani soava profunda e musical. - Se formos pensar direitinho, pesando os prós e os contras, chegaremos à triste conclusão de que o relacionamento com a Moka trouxe mais mal do que bem ao Tsukune. Pense!

Kurumu semicerrou as pálpebras, mas não pôde deixar de pensar. Tsukune... Eu sei que a Moka é nossa amiga, mas... Foi por culpa dela, do sangue amaldiçoado que ela te deu, que você virou um monstro demoníaco sem alma que fere as pessoas... E ela tentou te matar, mais de uma vez, quando aconteceu... E mais! Desde que vocês se conhecem, ela te usa como uma garrafa de refresco ambulante... sugando o seu sangue... como se você fosse a comida dela. E tem também aquelas irmãs alopradas dela... Kokoa, Karua... e a "pioral" de todas, Akuha. Kurumu mais do que nunca se dilacerava em conflito, não odiava Moka, porém seu amor extremado por Tsukune - sobrepujando seu amor-próprio como succubus e como mulher - não podia deixar alguém perigoso ou potencialmente perigoso como ela se reaproximar do seu "companheiro de destino". Ela roubou a humanidade dele! Vampiros! Criaturas cruéis, predadores, matadores... Eu sou diferente da Moka. Eu faço tudo pelo Tsukune, dou a vida por ele. A força das succubi reside no amor.

Amani suspirou fundo e declarou: Quão sábia e conscienciosa foi a Ura-Moka, selada, quando "falou" por telepatia com o "seu eu exterior", mais ou menos assim: "Nós nunca deveríamos ter nos aproximado do Tsukune". Eu sei. Não há segredos que um ifrit não conheça.

E não era isso mesmo? Kurumu tinha ouvido uma vez que Tsukune quase fora morto, logo no primeiro dia na Youkai Gakuen, por um youkai híbrido de orc chamado Saizou Komiya, invejoso da amizade e intimidade que Moka dedicava ao garoto humano. Porque o irresistível carisma vampírico de Moka tornava-a a garota mais popular e desejada onde quer que aparecesse, ofuscando todas as demais. Mesmo sem querer, ela faz mal a ele.

Na sua imaginação, Kurumu fez aparecer, como por mágica, a cena em que beijava o monstruoso ghoul em que Tsukune se metamorfoseara. Com súbita força, lembrou-se das suas próprias palavras quando seus lábios rosados e macios oscularam os dele, revestidos de negro miasma: "E de agora em diante, para sempre, estarei ao seu lado para te proteger".

Proteger! Este era o pensamento que se sobrepunha a todos os outros.

– E, no entanto, você, Kurumu Kurono, pode mudar tudo com um único desejo.

Então, ela viu e ouviu, com os olhos e ouvidos da imaginação, o pseudo-Ginei dizer: "Você nunca quis que a Moka desaparecesse para sempre deste planeta?"

Kurumu permaneceu num silêncio pensativo por meio minuto e em seguida disse, entre dentes, os punhos fechados: - Ah, como eu queria que a Moka NUNCA tivesse posto os pés na Academia Youkai!

– Tem certeza de que é isso que quer que seja feito, pequena huri? - perguntou Amani com voz profunda e melíflua.

Kurumu não respondeu de imediato. Silenciosa, virou a cabeça na direção do Convento de Chi Lin, com seus jardins de lótus e salas de meditação repletas de estátuas de ouro, terracota, pedra e madeira representando o Buda Sakyamuni, a deusa da misericórdia Guanyin, ou Kuan Yin, e outros tantos bodhisattvas de elevada sabedoria e pureza que têm por meta beneficiar o maior número de seres sencientes guiando-os para a luz espiritual. Ruby lhe explicara que as construções - exatamente como as do convento budista do mundo real - eram feitas apenas com madeiras encaixadas sem a necessidade de empregar pregos. Ruby! Mizore! Yukari! Estariam ainda brincando de treinar youjutsu junto com Kokoa, com o lolicon Haiji Miyamoto, capitão do Clube de Caratê da Youkai Gakuen, e com o efeminado yasha Fang-Fang Wong, tataraneto de Fuhai Touhou, por entre o labirinto de arranha-céus, casas, quiosques e lojas das ruas vazias da Hong Kong-Espelho? Ou teriam tido sua atenção despertada para o parque, em razão da liberação arrasadora de energia sinistra anunciando a transformação de Tsukune em uma versão menor do shinso Alucard? Ocorreu-lhe que mal pensava nas amigas e rivais desde que acordara, nessa manhã, depois de beijar o "Tsukune-ghoul-shinso" - sequer em Mizore, a "amiga colorida" com quem mantinha secretamente uma ligação lésbica há meses, à sombra do amor e paixão de ambas por Tsukune e insuspeitada por todos os amigos e colegas do Clube de Jornalismo. (Nem Kurumu nem Mizore viam algum conflito entre o que sentiam uma pela outra e o que sentiam por Tsukune; afinal, que melhor exemplo nesse sentido que o de Yukari, que proclamava aberta e despudoradamente sua paixão bissexual tanto por Tsukune quanto por Moka? "Poliamor", como diria aquele professor novo do Brasil, o tal do Lino Tadeu de Oliveira Pires, Pires-sensei.)

Tudo isso perpassou a mente de Kurumu, em curtos lampejos, enquanto ela decidia que resposta dar ao instigante ifrit. (E o que tem a ver o toches com as calças, de-chu?)

– Deseja uma "mudança de realidade", minha bela huri? - perguntou Amani.

Os olhos amarelos oblíquos do djinn brilharam em excitamento e antecipação na face andrógina de tez brunida e feições miúdas e regulares enquanto aguardava, impaciente, por uma resposta. O topázio imperial incrustado na testa relativamente larga e alta, entre as sobrancelhas longas, coruscava com tal fulgor ígneo que poderia ser confundido com um terceiro olho (contendo um espírito do fogo, elemento fundamental de sua casta; djinni são elementaristas natos, e, conforme a casta a que pertencem, possuem uma gema espiritual no centro da testa que aprisiona o elemental que "funciona" como fonte de controle sobre seu elemento primordial. Chu!)

Kurumu levantou a cabeça, encarando a criatura alta e esguia de chifres brônzeos e cabelo vermelho-cereja, com os braços dobrados sobre o tórax (ela achou que essa pose o tornava semelhante a um louva-deus gigante, por sua altura e magreza naturais).

– Meu desejo é um tantinho complicado, Amani-san, por isso eu vou explicar...

Sidi Amani Ben Ahihud Al-Lahab - retificou o ifrit, falando suavemente e com o dedo indicador em riste para cima.

– Soa enrolado demais pro meu gosto, então vou chamar você de Amani-san. Mas, é o seguinte, Amani-san: eu não desejo nenhum mal pra Moka, só que, na minha opinião, o Tsukune seria muito mais feliz - comigo, lógico - se ele e ela nunca tivessem se conhecido. Um simples ser humano, 100% mortal, sem nada de ghoul, ou de vampiro shinso. Nada de "Técnica de Modificação Humana". E acima de tudo, sem nenhuma chupadora de sangue pra morder o pescoço dele quase que diariamente. Daí que a primeira parte do meu desejo é que a Moka jamais tenha ido pra Academia Youkai. Com isso, o caminho ficaria livre pra mim. Mas tem mais! Pra garantir que nada de mal aconteça ao Tsukune - ou que nenhuma aventureira se aproveite dele - , eu preciso estar lá, quando ele chegar à Academia. Então, a segunda parte é que eu quero ser mandada de volta, no tempo, pra encontrar o Tsukune logo no primeiro dia dele na escola. E quero continuar com as minhas memórias intactas, do jeitinho que são agora, pra proteger melhor o Tsukune.

Amani ergueu uma sobrancelha. - Você está querendo parcelar o seu desejo? - indagou, parecendo divertido e surpreso ao mesmo tempo.

– É... Mais ou menos isso - admitiu Kurumu, meio envergonhada, sentindo o seu rosto corar um pouco. - Mas comigo é tudo ou nada - ela disse, dando ao ifrit um olhar feroz. - Vai me conceder o meu desejo ou não vai?

– Pequena virgem do Paraíso, você manda e eu obedeço - ripostou Amani, sorrindo largamente para ela. - Terá seu desejo atendido. Eu a enviarei de volta ao passado, com as memórias inalteradas, e você encontrará aquela gracinha do Tsukune no mesmo dia em que ele entrar para a Escola Youkai. E é claro que providenciarei para que a vampirinha rosa-chiclete nunca vá para lá. Estamos conversados?

– Por mim, tudo bem. Quer dizer que pode REALMENTE fazer todas essas coisas?

Amani gargalhou de leve. - Mais preciosa das lilin, não há poderes que um ifrit não domine. A nossa é uma raça de Caminhantes dos Mundos. Podemos cruzar a barreira dos mundos ou planos de existência à vontade, transmitir nossa essência mística através das dimensões e confiná-la em corpos ou objetos, teleportar matéria de um lugar para o outro, dando-lhe a forma que desejamos, dobrar o tecido do Tempo... Tudo graças ao poder obtido das formas-pensamento dos habitantes de cada plano de existência por onde passamos. Em outras palavras, desejos. Seus desejos, seus pensenes, é isto o que nos dá a força para gerar efeitos místicos que se tornem reais neste ou noutro ambiente fora de nossa dimensão natal, Sijjin. Meus ancestrais descobriram o segredo da deslocação no tempo e no espaço quando os hominídeos da espécie Australopithecus afarensis ainda comiam bichos arrancados das cascas das árvores. Descendemos dos Shaiatin, que são entidades de magia quase pura - em torno de 97% - , deidades tão primordiais quanto a própria Roda dos Mundos.

Kurumu ficou muito impressionada com a sabedoria arcana do ifrit. Pouco a pouco era levada a considerar aquele ser como um verdadeiro deus. Ele é mais poderoso do que o Fuhai Touhou-sama, ou Mikogami-sama, ou a Akasha Bloodriver...?

– Em comparação conosco, que somos os Rebentos de Iblis, os assim chamados "Três Lordes Sombrios" não passam de toscos aprendizes - disse Amani, com indiferença.

Também pudera! Kurumu comprimiu o lábio inferior. Esta criatura podia tornar-se invisível por mudança de frequência vibratória e ludibriar um expoente das "artes negras" do calibre de Fuhai Touhou, um yasha, um Tao-shi, e, ainda assim, fazer-se sensorialmente perceptível somente a ela, a humilde Kurumu, permitindo-lhe vê-lo e ouvi-lo através da camada de invisibilidade. Era uma criatura sobrenatural de respeito.

– Ainda acontece que somos uma raça que gosta de ajudar os outros - acrescentou Amani, com uma espécie de sorriso compassivo nos lábios finos. (Absteve-se de dizer que, em troca da realização de um ou três desejos para suas vítimas, ifrits e djinni podem drenar-lhes a energia vital até matá-las, de-chuu! Kurumu, cheia de youki como estava, não podia de deixar de atrair a atenção do astuto demônio de Sijjin, de-chuu!)

Amani afastou-se da garota succubus, caminhando languidamente pela ponte até a outra margem do lago. Kurumu o seguiu, como que mesmerizada, hipnotizada, estarrecida com os novos horizontes que se descortinavam perante ela. (Não lhe passava pela mente consultar Fuhai Touhou; porém, se o fizesse, o velho youkai chinês lhe explicaria que ifrits da laia de Amani Al-Lahab vagavam incógnitos pelas estradas, vilas, cidades do mundo dos humanos, no plano dimensional da Terra, agindo feito traficantes em busca de suas vítimas, os mortais incautos, a fim de seduzi-los, corrompê-los, induzi-los a desejar e pedir; pois, quanto mais desejos um ifrit realiza no plano terrestre, seu poder cresce e seu domínio sobre a forma-pensamento dos humanos também, drenando-os, manipulando-os, brincando com seus medos, seus anseios, corrompendo-lhes as almas, escravizando-lhes os corpos. "Temei uma entre muitas coisas", diria o yasha, citando um antigo provérbio árabe pré-islâmico, "Temei o Ifrit...".)

– Diga-me, gazela graciosa dos sonhos negros, você faz alguma ideia do porque a Fairy Tale queria tanto pôr as mãos na vampira "super-hiper-ultra-mega-platinada"? - perguntou Amani, numa óbvia alusão à verdadeira natureza da Moka desselada.

– Ouvi o Hokuto Kaneshiro mencionar qualquer coisa ao Tsukune. Tem a ver com os planos deles pra derrubar a sociedade humana.

– Isso mesmo. Vão usar o poder shinso da Moka para acordar o Alucard de seu sono mágico de mais de dois séculos. Porque os éteres biológico, orgânico, astral e cibernético dos três shinsos - Moka, Akasha e Alucard - estão sincronizados. Quando isso suceder, o primeiro país a ser destruído será o Japão; logo em seguida, a China, a Rússia, os Estados Unidos... Até que todo o plano dimensional terrestre vire um deserto de cinzas.

(Naturalmente que não lhes interessa, a Amani e seus coirmãos, a destruição do plano terrestre, onde podem "se alimentar" da ganância dos humanos de forma mais eficaz do que fazem com os youkais do Makai; é uma fonte lucrativa para a "máfia" djinn. Quanto mais vitalidade eles sugam dos tolos humanos, mais poder adquirem nesta Terra, chu!)

– Mais uma razão pra colocar a maior distância possível entre o Tsukune e a Moka - retrucou Kurumu, pondo-se do lado de Amani. - Mas não quero que nada de ruim aconteça a ela. Apesar de tudo, a Moka não é má pessoa. Que vá para uma escola humana e fique lá, e de preferência nunca se encontre com alguém capaz de retirar aquele bendito rosário!

– Por mim, despacharia aquela vampira enervante para os confins do Sistema Solar - disse Amani, que continuou a caminhar, sem pressa. - Talvez o Cinturão de Kuiper... ou a Nuvem de Oort...

– NÃO!

– Sua magnanimidade me comove, filha da Noite. Eu derramaria lágrimas se pudesse, quero dizer, se eu possuísse dutos lacrimais. - Amani voltou-se para Kurumu. - Mas vamos ao que interessa: O Desejo. Para começar, engula isto.

Ele estendeu-lhe a palma da mão (direita) aberta e no mesmo instante materializou-se nela uma pérola do tamanho de uma ervilha, brilhando em tom azul-índigo. Kurumu apanhou-a e ficou examinando-a, intrigada.

– Uma pérola azul? Pra que serve?

– Para você não se esquecer de tudo que sabe hoje. Esta pérola contém uma aura de fisiotempo atual, de modo que, ao ingeri-la, todo o seu ser será protegido da mudança de realidade quando ela ocorrer. De todas as pessoas do planeta, só Kurumu Kurono recordará que houve outro mundo, outra realidade, anterior e diferente.

Kurumu de pronto engoliu a minúscula esfera azulada.

– Muito bem - disse Amani. - Agora vou enviá-la de volta ao passado através do hipertempo, ou a sexta dimensão. Do ponto de vista da hiperrealidade - hipertempo e hiperespaço - , a Orbe da Terra inteira não passa de um ponto. Você vai retroceder até dezoito meses atrás, de volta para a Academia Youkai, exatamente no mesmo dia da chegada do Tsukune e vinte minutos antes da cerimônia de ingresso e do início das aulas. Por fim, eu me incumbirei da parte mais sensível e delicada que é sair do continuum espaço-tempo e examinar os fios infinitos das realidades em potencial, na hiperrealidade, escolher uma linha temporal que mais se adeque ao seu desejo e congelar tal linha temporal como a nova realidade - sem a "Vampirella" de cabelo rosa-algodão-doce para atrapalhar. Será uma intervenção cirúrgica delicadíssima, se bem que, do ponto de vista de vocês, que habitam nos mundos de dimensões inferiores, transcorrerá num milésimo de milionésimo de segundo. O intervalo de tempo entre a sua chegada no passado e a mudança de realidade será insignificante para ser detectado por um sistema nervoso normal, compreendendo a duração de uma mera vibração de um fóton gama.

– Er... Legal - disse Kurumu com a voz entrecortada. Malgrado não ter entendido a metade da dissertação verbal de Amani (só até "sensível e delicada"), confiava no poder e nas boas intenções do ifrit. Não obstante... ALGO no seu mais profundo eu interior, a voz da sua alma - a centelha divina emanada do Núcleo da Criação, Coração de Deus ou o Grande Sol Central - que a impedia de ser má, se agitava dentro dela, ciciando, instando para que repensasse o que estava prestes a fazer. Todavia... "Moka renunciou ao Tsukune quando se juntou com a Akuha e foi embora", ela justificou-se mentalmente, esforçando-se por calar a voz da consciência. "Daqui pra frente, eu cuidarei do Tsukune."

– Amani-san, eu te agradeço por tudo - disse ela, tentando convencer a si mesma de que agia por altruísmo e não por egoísmo.

– Apenas viva e seja feliz do lado do "gatinho", digo, do Tsukune - replicou o ifrit, balançando a cabeça chifruda, fazendo seus longos cabelos vermelhos ondularem numa cortina cintilante de chamas. - Agora, gazela, diga "adeus" ao velho mundo e "alô" ao novo mundo... com o Tsukune!

Levantou a estreita e comprida mão (direita) de dedos lisos, fez um gesto gracioso e imediatamente uma luz intensa envolveu Kurumu. Quando se dissipou, a jovem succubus havia desaparecido.

– Tolinha! - disse Amani, com um sorriso longo e lento se espalhando pelo rosto magro e estreito, cor de ouro velho, de nariz reto e fino, orelhas pontiagudas e longos olhos oblíquos de cílios compridos e íris amarelo-limão em contraste com o branco da esclera. - Ela o terá, sim, mas deverá pagar um preço por isso. Um preço maior do que imagina. Maktub!

Em seguida, ele também desapareceu num facho de luz cegante.


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Notas finais do capítulo

A)"Al-Rahman Al-Raheem": no árabe original completo, "Bism Allah al-Rahman al-Rahim", "Em Nome de Deus, O Mais Santo, O Mais Compassivo"; do Corão, como o profeta Maomé se refere a Deus, ou Alá, e tem o valor numérico 786.

B)Kuffar: plural de "kaffir" (descrente ou infiel, em árabe); termo usado pra designar os não-muçulmanos, ou "pagãos" em relação ao Islã.

C)Kismet=Destino, em turco.

D)Maktub="está escrito" em árabe.

E)Espelho Pa Kua, ou Ba Gua: em chinês, significa "oito trigramas" (do I Ching), no taoísmo é um amuleto utilizado em práticas divinatórias; no xintoísmo é tb conhecido como "hakke".

F)Pensene="PENsamento"+"SENtimento"+ENErgia" (nas neociências da conscienciologia e projeciologia).

G)Holopensene: na conscienciologia e na projeciologia, é o conjunto de pensenes (pensamentos, sentimentos e energias) de determinado local (intrafísico ou extrafísico), consciência ou objeto - o conjunto de pensamentos, sentimentos e energias pessoais de alguém, p/ex.

H)Cinturão de Kuiper e Nuvem de Oort: o Cinturão de Kuiper é um vasto cinturão de pequenos astros gelados - inclusos os "planetas-anões" Plutão/Caronte, Éris, Quaoar etc - que estende pra lá de Netuno, uns 4,5 bilhões de km a 12,5664 bilhões de km da Terra; já a Nuvem de Oort é uma vasta nuvem de cometas (100 bilhões ou mais!!) envolvendo o Sistema Solar, ainda mais distante da Terra que o Cinturão de Kuiper. Portanto, Amani Lahab se propunha a mandar a Moka pra BEEEM longe mesmo!!!

I)"Australopithecus afarensis": considerado pela paleontologia como o mais antigo ancestral (conhecido) do Homo sapiens, esse "hominídeo" parecido com o chimpanzé (c/um cérebro 1 pouco maior) viveu na Etiópia (África), cerca de 3,5 milhões de anos atrás. Portanto, quando Amani fala que seus ancestrais eram uma raça poderosa quando os nossos não passavam de "homens-macaco", ele implicitamente está dizendo, como a própria Moka, "Conheça o seu lugar, humano!" (rsrsrs)

P.S.: Amani ben Ahihud al-Lahab, o ifrit, é um figuraço - quase posso imaginá-lo chamando a Moka de "mocreia" e o Tsukune de "bofe" (rsrsrs)!!! Isto, contudo, não o torna menos perigoso (um tipo de Loki).

OK, OK, eu tb aderi ao "par yuri" Kurumu x Mizore (foram os americanos que começaram)! Mas, ao contrário de muitos, não vejo a relação entre elas como 1 espécie de "prêmio de consolação" (tipo "as rejeitadas se unem"), nada disso, mas sim como 1 relação "paralela" à principal, que é entre cada uma delas e o Tsukune, DENTRO do harém (tomando como exemplo a Yukari, que ama tanto a Moka quanto o Tsukune).

Kurumu e Ginei são IRMÃOS POR PARTE DE PAI: essa é minha, originalíssima (até onde eu sei, p/o menos).



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