Apertei bem firme as adagas na mão e senti Jules ao meu lado. Assim que Melanie atravessou o portal, a atmosfera a nossa volta mudou completamente. Os Arcanjos se aproximaram de nós, mas eu apenas os senti, uma vez que baixaram seus escudos. Eram tantos demônios se materializando que eu não os enxerguei mais.

Eu estava me sentindo bem, recuperada, apesar do enjoo maciço e pertinente, consegui realizar todos os movimentos de ataque e defesa que sabia. O barulho era ensurdecedor. Eram grunhidos e gritos que vinham de todas as partes e o cheiro me fazia doer a cabeça, de tão forte. Mas eu permaneci firme. Depois que assisti o sacrifício de Melanie, era o mínimo que eu poderia fazer.

Senti um baque forte do lado esquerdo e fui arremessada ao chão, há alguns metros de distância. A areia amorteceu minha queda. Desnorteada, pus-me de pé e vi um demônio enorme que portava uma espécie de chicote dentado. Ele vinha com tudo. Joguei o corpo pro lado e rolei bem a tempo de desviar das pontas de sua arma. A criatura investiu novamente, mas eu já esperava por aquele movimento, e numa esquiva perfeita, me pus na posição perfeita de ataque. Estiquei ambos os braços e mirei a adaga na cabeça do demônio.

Meu ataque foi tão violento e preciso que me desequilibrei ao atingir o ar. Por algum motivo, o demônio havia desaparecido.

Silêncio.

Olhei ao redor e vi Jules vindo em minha direção e os três Arcanjos ainda apontando suas Gladius na direção do portal, mas, estranhamente, todos os seres inferiores haviam desaparecido, como num passe de mágica. Quando olhei para frente, vi o véu etéreo do portal se mover, como ondulações na superfície da água, e Melanie surgiu através dele. Estava viva.

Miguel instantaneamente foi até a moça e a abraçou. Eu não podia ouvi-lo, mas sabia que as palavras que saiam de sua boca eram uma forma de oração e agradecimento por tê-la de volta.

- Você está bem? – Jules me perguntou, observando meu corpo para possíveis ferimentos.

- Estou, eu não me feri.... aliás... nem deu tempo.

Realmente. Melanie tinha atravessado o portal fazia um minuto ou dois e já estava de volta... talvez, algo tivesse dado errado.

Jules segurou meu braço com delicadeza e me guiou até o grupo, que se reunia em torno da ex-celestial. Nossas atenções eram absolutas.

Melanie respirou fundo e olhou para Miguel com os olhos marejados.

- Desculpe. – ela falou encarando o Arcanjo que a envolvia nos braços musculosos.

- O que foi? O que aconteceu? – ele perguntou a ela, e a essa altura, minha aflição já estava no auge.

- Eu caminhei por horas e encontrei o castelo onde é a morada da realeza inferior. – ela começou – Eu usei do poder que vocês me emprestaram e furei as defesas do castelo. De alguma forma eu sabia que era lá onde eu encontraria minhas respostas... Então eu cheguei ao salão principal e lá estavam todos me esperando: os cinco príncipes do Submundo, Lilith, Lucius e Lúcifer.

Não pude evitar soltar uma exclamação de surpresa. Eles a estavam esperando, tudo não havia passado de uma armadilha para que ela ficasse sozinha lá embaixo. Céus...

Então Melanie se soltou gentilmente do abraço de Miguel para continuar sua história, embora ainda permanecesse junto a ele.

“Lúcifer sabia que eu estava lá, ele me esperava. Eu disse a ele o motivo de minha ida ao seu reino e ele me mostrou, finalmente, a porta inferior. É uma estrutura antiga, que tem a metade de baixo do desenho que Enoque nos deixou. Mas pro meu espanto, a porta estava trancada.”

- O quê?

- Mas como?

- Impossível!

Todos exclamaram ao mesmo tempo e Melanie nos ignorou, continuando seu relato.

“Não é a metade deles que está aberta e que está permitindo a passagem de espectro ao mundo dos humanos... é a porta celestial que foi destrancada. Eu não poderia acreditar, se não tivesse visto com meus próprios olhos.”

- Bom, mas a questão agora é saber... como você ainda está viva?

A voz de Gabriel foi taxativa. Se a porta celestial estava aberta, bastava que eles abrissem a porta de baixo para abrir o portal completamente e, dessas forma, permitir o acesso de todos os demônios aos humanos. Pra isso, bastava sacrificar Melanie lá embaixo... mas como ela ainda podia estar viva e o portal fechado? Tudo era um turbilhão em minha mente, e todos nós estávamos confusos.

- O que ele quis em troca? – Miguel perguntou com a voz tão profundamente triste que me cortou o coração. Era como se ele já soubesse de algo.

Melanie o encarou com ternura e eu senti que nada de bom poderia vir.

- Ele me propôs uma alternativa. – ela começou – Lúcifer disse que não me usaria para abrir o portal, mas que queria duas coisas em troca. A primeira era um pouco do meu sangue, apenas o suficiente para que ele pudesse realizar o ritual da abertura dos portais por tempo o suficiente para que seus cinco príncipes saíssem.

- O quê?! – Gabriel se espantou, tanto quanto Rafael.

- Sinto muito... eu tive que aceitar... caso contrário, eles me sacrificariam de qualquer jeito e então, todos os demônios teriam acesso aos humanos e tudo estaria perdido! – Melanie estava desesperada – Eu sei que vocês se esforçaram muito no passado para prender os guerreiros infernais, mas era o único jeito... eles querem revanche com vocês e eu sei que por mais difícil que seja, vocês podem vencê-los novamente! Nós vamos lutar com vocês! Vamos fazê-los voltar!

- Eles não são guerreiros comuns, Melanie. Lúcifer sabe que apenas os cinco são suficientes para destruir o mundo e os humanos. – Rafael foi sóbrio e contido, mas não condenou a escolha dela.

- Bom, eu acho que você fez a escolha certa. – eu disse em voz alta, chamando a atenção de todos. – Melanie, não havia nada que você pudesse fazer, É melhor enfrentarmos cinco deles do que toda uma legião.

- Harper, você não faz idéia do poder dos príncipes... Nenhum de nós tem...

Olhei para Jules. Ele parecia sério. Eu sabia que ele não tinha batalhado ao lado dos Arcanjos, os anjos comuns sequer existiam naquele tempo, mas as histórias que ele sabia, com certeza, eram muito superiores ao meu mísero conhecimento.

- Mas você não faria o mesmo? – perguntei a ele e Jules se calou.

- Me desculpem... eu simplesmente tive que fazer isso.

As lágrimas de Melanie estavam prestes a rolar, mas ela estava controlando seus sentimentos.

- Lúcifer nos deu três dias antes de abrir o portal e liberar seus príncipes... temos pouco tempo para nos preparar. – ela completou.

- Ele vai esperar a data certa... – Rafael falou, olhando para Gabriel, que concordou com um aceno.

- Data, que data? – perguntei impaciente.

- Em três dias, mais uma Era se completa, mais uma legião de séculos que os Arcanjos Negros foram expulsos. Nessa data, o portal será mais forte e os príncipes sairão com todo o poder que têm. – Gabriel respondeu minha pergunta.

Um silêncio profundo caiu entre nós, até que Miguel o quebrou.

- E qual foi a segunda exigência de Lúcifer?

Voltei a encarar Melanie que não conseguiu conter as lágrimas. De algum jeito, eu sabia que essa segunda exigência era muito pior que a primeira.

- Ele exigiu minha eterna subserviência a Lucius. – ela disse, encarando o incrédulo guerreiro - Eu pertenço a ele agora.

Levei a mão à boca para sufocar um grito. Aquilo era realmente o pior destino que Melanie poderia ter. Como se não bastasse ela ter sacrificado sua essência angelical e sua imortalidade pelos humanos, agora ela vendeu sua própria alma. Isso era inconcebível...

Senti Gabriel e Rafael ficarem tensos, ambos esperando a reação de Miguel. Ele, no entanto, olhava Melanie de uma forma indecifrável, estático, era como se o brilho em seus olhos tivesse acabado de se apagar.

Ela baixou a cabeça, derrotada, entregue. Miguel segurou sua mão esquerda e a levantou. No dedo anelar dela havia uma espécie de tatuagem fina, brilhosa, como sangue fresco e denso. Um aliança... era uma aliança com Lucius.

Miguel encarava a marca da garota enquanto segurava sua mão. Todos nós esperamos o pior, que não veio. Ao invés disso, Miguel levou a mão de Melanie à boca e beijou de forma apaixonada sobre a marca amaldiçoada, fazendo ela levantar a cabeça e encará-lo.

- Você não vai servir a ele. Eu não vou deixar. – Miguel falou olhando-a intensamente.

- Eu fiz um juramento... um pacto de sangue, Miguel... não há como voltar atrás.

- Então darei um jeito. – ele finalizou e ninguém no Céu ou no Inferno se atreveria dizer o oposto.

...

Eu ainda encarava aqueles olhos azul-esverdeados brilhantes de lágrimas tristes. Ela era o que eu tinha de mais precioso na vida e não iria perdê-la. Fiquei feliz ao ver um pequeno sorriso se formar em seus lábios perfeitos. Ela não achava que eu pudesse cumprir minha promessa, mas confiava em mim o suficiente para ter esperança e isso era o suficiente.

- Bom, teremos três dias para nos preparar. – Gabriel nos interrompeu e nem ele nem Rafael se atreveram a discordar do que eu disse.

- Vamos voltar para a cidade de Calabriel. Lá poderemos reunir o máximo de guerreiros que estão entre os humanos e traçar uma estratégia de combate. O que o senhor acha, General?

Encarei Jules, que falou como o guerreiro valoroso que eu sabia que era. Seu plano era o melhor possível para o momento, mas meus planos eram outros.

- Eu concordo. Acho que vocês devem voltar e organizar a ofensiva. Se meus irmãos não se importarem, gostaria que você ficasse a frente das estratégias de batalha, Jules. Eu o treinei bem e sei de sua competência em liderar os guerreiros na guerra. Mas infelizmente, eu vou me ausentar da preparação.

- O que? Podemos saber pra onde vai, irmão? – Gabriel perguntou com uma nota no fundo assustada. Ele sabia que sem minha presença, não teriam chance.

- Calma Gabriel, estarei na batalha ao lado de vocês, mas não na preparação. Eu preciso desse tempo para outra coisa tão importante quanto. Por favor, aceitem a liderança de Jules na preparação das táticas de guerra e convoquem o máximo de guerreiros possíveis. Estudem juntos, relembrem o passado e informem aos guerreiros como devem agir contra os Arcanjos negros. Eu volto antes da batalha começar.

Todos me encararam duvidoso e eu não os culpava. Mas livrar Melanie de seu juramento era a única coisa em que eu poderia pensar antes da batalha. Eu não iria me preparar para a guerra, pois como guerreiro, eu já não precisava de treinamento. Minha preparação seria espiritual, pois somente livre do fardo do compromisso de Melanie eu poderia lutar em paz.

- Onde vai, Miguel? Pode nos dizer?

Encarei a dona da voz que me fazia tremer e senti o coração doer de angústia. Se eu não fosse capaz de livra-la, morreria junto com o início de seu compromisso.

- Na verdade, você vem comigo. – falei pra ela, colocando calmamente uma mexa teimosa de seu cabelo para trás da orelha. Eu queria olhá-la melhor.

- E... pra onde vamos? – ela perguntou.

- Pra casa. – respondi.