Eu ainda estava pasma com o que Miguel tinha dito. As coisas não pareciam boas pra nós, não mesmo. A cada minuto, mais e mais demônios surgiam e a qualquer momento os tais príncipes poderiam ser libertos. Eu não fazia idéia de quantos ou quem eram esses caras, mas pela reação dos guerreiros, não podia ser bom. Ser humana estava cada vez mais complicado.

Miguel e os guerreiros decidiram se dividir em grupos. É claro que ele, Jules e eu iríamos até as ruínas do Mar Morto para tentar encontrar as mensagens de Enoque, enquanto os outros se dividiriam em duplas para se espalhar pela cidade e tentar controlar o máximo possível a situação, além de procurarem por mais anjos que por ventura pudessem ter resolvido ajudar na batalha.

Melanie viria conosco também. Era ótima a idéia de afastá-la ao máximo de Lucius e eu sabia que Miguel não deixaria de vigiá-la, embora eu achasse que Lucius não fosse o único motivo existente para que Miguel quisesse Melanie por perto.

Milagrosamente – sem trocadilhos – havia um computador na igreja onde estávamos e pude acessar a internet para reservar passagens aéreas. Por incrível que pareça, era mais rápido esperarmos dois dias para ir de avião pra Israel do que sair voando por aí. O problema maior seria o dinheiro e os documentos para embarque. Os padres cederam todos os bens valiosos da igreja para que pudéssemos arranjar dinheiro e com o dinheiro dos bens, arranjaríamos uns documentos falsos. Tempos de desespero, exigem medidas desesperadas.

Depois de tudo arranjado, compramos as passagens para Israel e o voo partiria em dois dias e meio. Os documentos falsos foram arranjados clandestinamente com o dinheiro que conseguimos. Sim, essa foi uma grande ironia, ver os anjos recorrerem a meios ilícitos para conseguirmos tudo. Mas esse era o problema de não ter documentação no Paraíso.

Nos dois dias que antecederiam a viagem, Miguel resolveu treinar com seus homens e, é claro, eu também entrei nessa. Durante os últimos meses, Jules havia me ensinado muita coisa, mas nada se comparou a quando vi os guerreiros treinando pela primeira vez. Eram incríveis. Todos eram tão perfeitos e fortes e batalhavam como deuses. Estávamos treinando nos fundos da igreja, onde havia um grande espaço vazio. A comunidade usava-o para atividades paroquiais.

A igreja estava sempre lotada, pois as pessoas estavam recorrendo à fé nesses dias de loucura, onde todos sentiam que algo estava errado. Elas procuravam por Deus, por resposta, por perdão. Na minha opinião, era tudo hipocrisia.

Deixei de lado esse pensamento e voltei minha atenção ao treinamento. Eu estava com Melanie em um canto um pouco afastado dos guerreiros e apesar dela ser um anjo, eu tinha mais experiência em batalhas do que ela. Melanie era esperta e pegava rápido as coisas, mas claramente, não havia nada de guerreira dentro dela.

Estávamos treinando forte. Ela podia não ser tão boa, mas estava empenhada em ajudar na batalha. Eu mantinha minhas adagas apertadas nas mãos e investia contra ela, que portava a Gladius mais delicada do salão. Melanie avançou e eu a bloqueei facilmente. Até que ouvimos um barulho alto e nossa atenção se voltou para onde os outros lutavam.

Meu queixo caiu, literalmente. Miguel lutava sozinho contra cinco dos outros anjos. Era absurdo de tão incrível. Os cinco investiam contra ele fortemente e Miguel que empunhava a espada dourada e magnífica, os enfrentava como igual. Os movimentos eram tão belos e rápidos, que meus olhos não acompanhavam, estavam ocupados demais admirando, ao invés de absorvendo algo de produtivo.

Então com um único movimento, ele finalizou dois de seus irmãos, e avançou contra o terceiro, que não teve chance. Sobraram apenas Calabriel e Jules, que o cercaram. Miguel estava atento a cada movimento que ambos faziam. Eles se rodearam em uma dança lenta e perigosa e todos os outros os assistiam. Eu sabia que Jules era muito bom, mas conta Miguel, nenhum deles tinha chance.

Calabriel investiu um golpe rápido e lateral. Imediatamente, Jules também atacou. Miguel bloqueou a Gladius de Calabriel com a sua própria e deixou seu corpo receber o impacto do outro anjo. Num movimento rápido demais pra mim, Miguel já estava sobre Calabriel, com sua espada apontada para o coração dele e o outro braço estava esticado e portava a espada de Calabriel, que ele havia tomado. Esta espada parou a centímetros de acertar Jules bem no pescoço.

Foi impressionante! Com um púnico movimento, Miguel desarmou Calabriel, o dominou e ainda quase decapitou Jules. Eu nunca esperei ver nada igual. Ninguém respirava ou se movia, era como se alguém tivesse apertado o pause. Durou um segundo, logo todos voltaram ao normal.

- Harper... – ouvi Melanie me chamar.

Eu a encarei, ainda boquiaberta e senti as mãos mornas dela em meus braços.

- Pode relaxar agora. – ela disse sorrindo levemente.

- O quê? – perguntei sem entender.

- Jules está bem. – ela disse, olhando-me de um jeito esquisito e deslizando suas mãos até as minhas.

Quando olhei pra baixo, Melanie segurava meus pulsos delicadamente e só então eu percebi que meus próprios punhos estavam cerrados tão fortemente contra as adagas, que minhas mãos estavam praticamente brancas, já começando a arroxear.

Relaxei meu aperto e encarei Melanie sem entender.

- Fica tranquila. Miguel nunca faria nada de mal a Jules ou aos outros.

Sacudi a cabeça, sem entender porque ela estava falando aquilo. É claro que Miguel não faria nada contra Jules, mas eu não entendia o motivo de suas palavras. Será que ela estava insinuando que eu tinha ficado aflita por Jules?

- Vamos voltar ao treino. – falei pra ela rapidamente, que sorriu pra mim.

Voltamos ao treinamento, mas eu estava apenas parcialmente focada nele. Minha cabeça estava pensando no momento em que vi a espada de Calabriel, empunhada por Miguel, ir na direção do pescoço de Jules. Senti uma aflição estranha e um nervosismo crescente. A convivência com anjos e demônios estava me deixando meio doida, só pode.

...

Harper lutava comigo e, apesar de eu ver o quanto ela estava abalada, ainda assim ela me superava. Eu jamais seria capaz de lutar como um dos guerreiros e não seriam dois dias que mudariam isso.

Harper veio em minha direção com um ataque frontal. Olhei fixamente para sua adaga e a repeli com um dos movimentos que Jules havia me ensinado. No entanto ouvi um som alto de metal contra metal que não era o da minha Gladius contra a adaga de Harper. Olhei pra baixo. Displicentemente, eu tinha prestado atenção em apenas uma de suas adagas, a que veio na direção do meu rosto, e a repeli. No entanto, ela portava mais uma na outra mão e foi com ela que quase me acertou na barriga. Ela teria conseguido, se não fosse a intervenção de Miguel. Ele bloqueou o ataque dela, antes de me atingir.

- Harper, pode deixar que eu vou treinar com Melanie. – Miguel disse pra ela, ainda bloqueando a adaga de Harper com sua Gladius.

Ela deu um meio sorriso e antes de sair, me disse:

- Salva pelo arcanjo...

Harper saiu triunfante e foi se juntar a Jules, que a observava do outro lado. Eu senti meu rosto corar imediatamente por saber que Miguel teve que me ajudar, mais uma vez, ainda mais depois de ver o quanto ele era bom.

- Miguel, por favor...

Ele deu a volta e sua Gladius já não estava mais a vista. Sua expressão era serena e tranquila, quando parou de frente pra mim.

- Está cansada? – ele perguntou.

- Não... é que eu não acho que deva desperdiçar seu tempo me ensinando coisas básicas. Você precisa treinar com os outros que são adversários pra você, não comigo.

As palavras saíram de dentro de mim e continham toda a vergonha que eu sentia por ser tão dependente nesse aspecto. Talvez, eu tenha sido até um pouco rude, mas não pude evitar.

- Você é minha prioridade. – ele disse – Não preciso ensinar meus guerreiros a lutar, mas preciso saber que você conseguirá se defender do que vem pela frente.

Eu o encarei, sem argumentos. Senti o peito acelerar um pouco e ele manteve seu olhar firme até que eu acenei fracamente e ele sorriu. Isso seria um fiasco, o guerreiro mais poderoso dos Céus tentando me ensinar a lutar.