Desviei o olhar do de Miguel e me repreendi mentalmente por acha-lo tão... encantador. Eu estava me sentindo bem e fiquei feliz ao ver que tinha poder suficiente para ajudar aos humanos, mesmo que não fosse lutando. Se eu me esforçasse bastante, poderia exterminar muitos demônios nessa guerra e livrar os humanos de suas tentações e mentiras. Sinceramente, não me agradava a idéia de exterminar uma vida, mesmo sendo a de um ser das trevas, mas se esta é minha tarefa, então a cumprirei da melhor maneira.

- OK, isso tudo é muito interessante e tal, mas vamos ser mais práticos. – Harper dizia andando na direção de Miguel – Onde fica essa porta e o que fazemos para mantê-la fechada?

Miguel olhou para o papel sobre a mesa e o virou. Atrás do desenho da cidade havia um outro de toda a Terra e deste plano, no qual os humanos viviam. Ele pôs um dedo sobre o papel e percorreu como se procurasse algo, até que parou em um ponto.

- Isso... isso é Israel? – Harper disse franzindo o cenho e se aproximando da mesa – A porta que não deve se abrir fica em Israel?

- Não. – Miguel respondeu – Ali é apenas o lugar onde encontraremos a direção.

Todos estávamos confusos. Miguel era um dos mais poderosos e antigos filhos do Senhor e detinha muito conhecimento. Foi o responsável por salvar a raça humana diversas vezes, liderando os exércitos do Pai ou descendo pessoalmente para alguma missão. Ele tinha informações que nós, anjos, não possuíamos, e que apenas arcanjos elevados detinham.

- Filho... – o padre mais velho que estava próximo falou – Corrija-me se estiver equivocado, mas está se referindo aos manuscritos do Mar Morto, não está?

- Sim. – ele respondeu.

Caminhei até o grupo que rodeava a mesa. Além dos padres e de Harper, Jules e Miguel, haviam mais guerreiros. Eram todos muito imponentes e perfaziam um grupo muito diverso, embora a postura inconfundível de lutador estivesse evidente em todos.

Eu não conhecia nenhum e senti alguns olhares em minha direção. Sobre a mesa, Miguel ainda apontava para um local específico no papel que, pelo o que entendi, representava a Terra habitada pelos humanos. Depois de uma breve pausa, o padre mais velho continuou a fala, direcionando-se à Harper, que, assim como eu, mantinha uma expressão de confusão no belo rosto.

- Há muito tempo atrás foram encontrados por um andarilho, alguns pergaminhos bastante conservados do tempo. Isso aconteceu em Qumran, às margens do Mar Morto. Os pergaminhos eram relatos do profeta Enoque e se divide em três livros. Enoque relata nas passagens como foi convocado pelo próprio Pai a ser o escriba e como se sucederam os fatos da guerra entre os Anjos.

- Enoque não está entre os Livros Apócrifos, padre? - Harper perguntou.

- Sim. – ele respondeu – Fazem parte dos livros não reconhecidos oficialmente pela Igreja Cristã e que ficaram de fora da Bíblia Sagrada, embora tenham passagens em Judas, por exemplo, que citam exatamente trechos do livro de Enoque.

- E o que exatamente contém nesse livro? – ela perguntou.

- Enoque descreve o surgimento dos nephilins, que é a prole de anjos com as filhas dos homens, e como enviou seus filhos para... consertarem tudo...

Nessa hora o padre olhos envergonhado para Miguel e baixou a cabeça ligeiramente. No entanto, Miguel ouviu pacientemente e a mim pareceu que estava distante. Talvez ele estivesse ouvindo a história e relembrando os acontecimentos.

- Bom... – eu disse, quebrando o silêncio incômodo e trazendo Miguel de volta de seus devaneios – Esses livros escritos pelo profeta Enoque foram encontrados, afinal, não foram? – perguntei olhando para o padre, que sacudiu a cabeça em afirmação e eu continuei – Então, se eles já não estão mais lá, o que tem naquele lugar de especial, Miguel?

Ele me encarou e todos nós o encaramos. Seus olhos voltaram à vida, como se tivesse espantado pra longe, as recordações.

- Os Livros foram encontrados, mas as inscrições sagradas continuam no mesmo lugar. – ele respondeu.

- Senhor? – um dos anjos guerreiro perguntou, visivelmente incomodado por fazer um questionamento ao seu superior.

- O conhecimento é muito poderoso. Apesar de trazer muitos benefícios, ele também é capaz de causar muitos estragos, dependendo de quem o possui. – Miguel respondeu, encarando a cada um de nós – Nem mesmo nós, os arcanjos que estivemos nessa batalha, possuímos todas as informações. Mas Enoque, o escolhido pelo Pai, teve mais uma missão, que foi deixar escrita não somente sua experiência, mas também a chave para tudo.

- Então esse tal de Enoque deixou escrita a maneira de manter a porta fechada? – Harper perguntou antes de nós.

- Não só isso – Miguel respondeu – Lembre-se que a chave que fecha uma porta, é a a mesma que a abre.

- Senhor... acha que alguém descobriu como abrir a porta? – Jules perguntou, no mesmo tom de respeito que o outro anjo.

Miguel o encarou e apenas acenou. Todos nós nos entreolhamos calados.

- Precisamos ir até lá e descobrir como fechá-la. – Miguel finalizou.

- E... quanto tempo ainda será que temos? – perguntei receosa.

- Eu não sei. – Miguel respondeu.

“A Michael (Miguel) disse o Senhor: “Vai e põe a ferros Semjaza e os seus sequazes, que se misturam com as mulheres e com elas se contaminaram de todas as suas impurezas! Quando os seus filhos se tiverem eliminado mutuamente, e quando os pais tiverem presenciado o extermínio dos seus amados filhos, amarra-os por sete gerações nos vales da terra, até o dia do seu julgamento, até o Dia do Juízo Final! Nesse dia, eles serão atirados ao abismo de fogo, na reclusão e no tormento, onde ficarão encerrados para todo o sempre. E todo aquele que for sentenciado à condenação eterna seja juntado a eles, e seja com eles mantido em correntes, até o fim de todas as gerações. Extermina os espíritos de todos os monstros, juntamente com todos os filhos dos Guardiães, porque eles maltrataram os homens! Purga a terra de todo ato de violência! Toda obra má deve ser eliminada! Que floresça a árvore da Verdade e da Justiça. (…)”

Trecho do Livro de Enoque