Sombras sobre Sinéad escrita por Dani


Capítulo 20
Lunático




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Em uma situação daquelas, eu não sabia se deveria pensar antes de agir ou agir antes de pensar. As duas opções não pareciam boas e talvez arriscadas. E também não entendia o motivo pelo qual Jan não estourava de vez meus miolos (o que era uma sorte). A mão da qual ele utilizava para segurar sua arma tremia e seus olhos alucinados analisavam-me atentamente. Será que ele estava com medo? O silêncio fora quebrado por sua voz:

      - E o que acontecerá? Matarei Jim, com certeza e entrarei para os “Cinco”. Mas a nomeação deverá ser modificada para os “Seis”. Hm, eu não aprecio essa nomenclatura, no entanto, não podem ser cinco se serão seis. – Ele gargalhou. – Devemos modificar esse nome para algum melhor.

      Jan não parecia dialogar diretamente comigo, no entanto, como se ele estivesse expondo seus pensamentos, conversando com sua própria mente. Parecia completamente distraído, sem importar-se com a minha presença. Então, eu tentei escapar, apressei-me para perto do órgão e percebi que a mira e as pupilas lunáticas de Jan acompanharam-me. Eu estava enganado, ele estava atento ao seu redor.

      - Você não vai fugir, gato preto e branco.

      Engoli em seco, acho que desta vez ele não irá hesitar.

      - Eu gosto desses teus olhos amarelos de gato, talvez eu deva extraí-los quando teu cadáver gélido estiver estendido no chão. Eles serão como um prêmio de minha conquista. – Ele fez uma pausa. – Será tão divertido! Gostaria de ter uma coleção de olhos de diferentes tonalidades e amarelo é bem exótico e belo. Eu gostaria de ter olhos assim. Ah, é, vou tê-los! – Ele continuou falando coisas sem sentido e gargalhando.

      Em seu momento de descuido, empurrei o pesado banco do qual se situava à frente do órgão em direção a Jan, acertando-o fortemente. Ele deu um grito de dor e eu não esperei naquele recinto, escapei por um corredor comprido. Restava saber como eu sairei daquela casa assombrada com vida, afinal, havia um lunático atrás de mim.

      Quando cheguei ao final do corredor, senti um objeto gélido tocar minha testa. Percebi que se tratava de uma arma de fogo e sua portadora era uma mulher de olhos frios desprovidos de qualquer emoção, a mesma garota que eu avistei observando a casa de Dayane. Ela trajava roupas provocantes: short curto, uma camisa justa, a qual deixava a amostra parte de sua barriga. Seu corpo era escultural e seus seios fartos. Aquela aparência não combinava com sua expressão facial de uma assassina.

      Afastei-me, cuidadosamente, para trás, não distanciando muito, apenas para impedir que aquele objeto repugnante permanecesse encostado em mim. Estava assustado com a aparição. Dela eu não escaparei, ela não terá piedade de mim, já podia avistar isso em sua expressão. Para piorar, Jan apareceu na outra extremidade do corredor, fazendo-me situar entre dois lunáticos armados (isso é muito perigoso!).

      - Não! – bradou Jan. – Ele é a minha presa!

      - Fique quieto – disse a mulher utilizando sua voz melódica. – Eu tenho assuntos a tratar com Jim Ha...

      Então tudo aconteceu rapidamente: antes que ela pudesse terminar sua fala, eu abaixei ligeiramente e acertei-a no estômago com uma cabeçada, fazendo-a afastar-se de minha passagem. Não perdi tempo e continuei a correr, mas ainda consegui escutar um estalo ruidoso e um grito assustado de Jan.

      Prossegui correndo e cheguei a um salão de jantar onde havia três portas. Escolhi uma delas e adentrei. Tratava-se da cozinha. Havia muitos armários e gavetas, um fogão à lenha e uma mesa e cadeiras de madeira. Fiz questão de trancar a porta e colocar muitos desses últimos objetos barrando a passagem.

      Rumei até uma das gavetas do armário, abri-a e retirei uma grande faca (em momentos como esse, era melhor permanecer armado). Agora precisava pensar em como escaparei daquele local. Talvez pela janela, aproximei-me dela e analisei a altura, calculei quais seriam os danos de minha queda. Provavelmente quase nenhum, afinal, não estava em um andar tão elevado, tão distante do chão. Sem pensar muito, abri a janela e saltei sem temer. Em instantes, já senti a terra úmida, a qual compunha o jardim dos fundos, sob meus pés.

      Comecei a dar a volta pela casa, pois não havia maneira de escapar pelos fundos, um alto muro cercava toda a extensão daquela propriedade. Escutei Jan também saltando da janela e apressando-se em meu encalço, ele já não segurava sua arma de fogo, mas uma faca em sua mão esquerda a qual agora estava ferida.

      - Espere, gato branco e preto, eu ainda quero teus olhos amarelos!

      Então avistei a mulher correndo na direção contrária à minha, agora ela carregava sua arma e também a de Jan. Ela parou ameaçadoramente a alguns passos à minha frente e mirou em meu coração e também na direção de meu irmão.

      - É melhor soltarem essas facas, o jogo de pique-pega acabou. – Sua voz era melódica e, ao mesmo tempo, gélida. – Eu estou com sua namorada e posso mandar matá-la se você não obedecer. – Quando ela falou, eu pensei que ela referia-se a Amber, mas relembrei que não estava mais com ela. Então, de quem ela estava falando? Mas minha pergunta teve uma resposta imediata. – Dayane sofrerá as consequências se você não obedecer.

      Engoli em seco.

      O que poderia fazer em uma situação daquelas? Se ela estiver falando a verdade e eu tentar fugir, sei que eles não hesitarão em matá-la. Mas, como eles sabiam a respeito de Dayane? Então relembrei a cena daquela mulher observando a casa de minha ex-namorada e deve ter pensado que ainda estivéssemos juntos. E, mesmo que não estamos, Dayane é uma amiga e não a desejo em meio à uma loucura dessas, sua vida corria perigo e o culpado de tudo sou eu. O mínimo que eu poderia fazer é tentar salvá-la. O jeito era entregar-me.

      Então, deixei a faca da qual eu carregava cair ao chão, acho que Jan fizera o mesmo, pois ele estava em desvantagem, não seria tolo de perder a vida quando se tinha mais tempo para tentar escapar. Observei o céu noturno sobre minha cabeça e, pela primeira vez, amaldiçoei esse estado, pois não havia ninguém ali que pudesse ajudar-me.

      Deixei-me conduzir pela mulher. Ela empurrou-me para dentro do espaço de carga de um caminhão e fizera o mesmo com Jan. Após isso, ela pegou um pano úmido e recostou-o em nossos narizes. O odor era nauseante e logo que o senti, meu corpo fraquejou. Demorou apenas alguns segundos para entregar-me à escuridão.

Quando despertei, ainda estava dentro do bagageiro do caminhão e escutava a voz de Jan cantarolando. Irritei-me com o barulho, contudo não disse nada para impedi-lo. Percebi que o veículo estava estacionado e, em questão de instantes, a passagem abriu-se, permitindo que a luz da manhã adentrasse ao recinto escuro, ferindo meus olhos. Isso também indicava que permanecemos a madrugada inteira viajando.

      A mulher aparecera diante de nós, ela carregava cordas consigo e revolveres para intimidar-nos. Ela envolveu as amarras em nossos pulsos e fez-nos deixar o bagageiro. Observei ao redor e percebi que estávamos diante de um armazém, aparentemente, abandonado. O chão era composto por terra batida e, ao longe, eu conseguia avistar uma floresta. Havia um homem alto, forte, de cabelo escuro e arrepiado e verdes olhos cruéis e intensos.

      Escutei meu celular tocar (provavelmente era Julia ou Raj) em meu bolso e as pessoas ao meu redor também perceberam o ruído. O homem forte e alto aproximou-se de mim, retirou o telefone de meu bolso e quebrou-o, apertando-o contra as palmas das mãos. Jogou os restos ao chão (deixou-me irritado, pois ele estava sujando o chão). Após isso, a mulher fez-me andar até o armazém, assim como Jan, que continuou cantarolando até ela acertá-lo com a arma, fazendo-o parar.

      O homem alto abriu a passagem de madeira do local e a mulher empurrou-nos recinto adentro. O armazém era pouco iluminado, não havia quase nada ali, apenas alguns escombros de caixas velhas, algumas delas entreabertas, deixando serragens espalhadas pelo chão sujo.

      O sujeito aproximou-se de um canto do local e abriu uma passagem no chão que dava acesso ao porão. A mulher empurrou-nos escada abaixo. O novo recinto era uma espécie de prisão, com várias celas, até mesmo as pequenas janelas possuíam grossas barras de ferro que impediam qualquer tentativa de fuga. Escolheram um lugar para mim, ao final do corredor à frente da prisão na qual Dayane estava. Ela agitou-se quando me avistou, mas não disse nada. Eles trancaram Jan na cela ao lado da minha e afastaram. Esperei que eles fechassem a passagem que dava acesso ao armazém e disse:

      - Day, você está bem?

      Ela meneou a cabeça positivamente.

      - Sinto-me fraca, acho que a droga que eles me deram ainda está fazendo efeito, mas, tirando isso, eu não estou ferida.

      - Eu vou tirá-la daqui, eu prometo. Você não deveria estar nesta situação.

      - Ah, que lindo, um casal de gatos! – comentou Jan na cela ao lado.

      - Fique quieto, Jan! – Senti-me ruborizar.

      - Jimmy, por que isso está acontecendo? – perguntou Dayane. – Por que estamos aqui?

      - Eles estão atrás de mim...

      - Por quê?

      - Olhe, é uma longa história e não é nada agradável. Não é bom que você saiba, apenas prometa-me uma coisa: quando sairmos daqui, você não vai mais me procurar.

      Dayane não fez mais perguntas, apenas fitou-me com o olhar carregado de curiosidade. O silêncio que se instalou naquele ambiente fora essencial para que eu pudesse escutar a conversa do homem e da mulher, próximos à passagem.

      - Por que não os matamos logo? – Escutei a melódica voz da mulher.

      - Não sei, Ariadne, mas os outros disseram que é melhor mantê-los vivos por enquanto – respondeu o homem. – Assim o faremos.

      - Então acho bom relatar aos outros, principalmente a Balthor.

      - Sim, é o que você fará, Ariadne, enquanto eu vigio nossos “convidados”. Mande-os virem para cá imediatamente.

      - Certo.

      Escutei-os afastarem.

      Assentei-me em um canto de minha cela e fiquei tentando traçar algum plano de fuga. Mas, como o faria se não conseguia nem mesmo livrar-me das amarras que apertavam meus pulsos. Sentia-me como um pássaro na gaiola ou com as asas cortadas, sem poder fazer o que quero, quando quero. Perder a liberdade talvez fosse pior do que a morte, contudo não era por isso que eu desistiria de minha vida, pois eu tentarei reconquistá-la.

      Permaneci naquele silêncio, permiti que minhas pálpebras fechassem. Respirei fundo e tentei refletir, no entanto, comecei a escutar um “trá-lá-lá” e percebi que o responsável por isso era Jan. Lutei para ignorar o incômodo, mas não alcancei esse êxito, o que me irritou profundamente, aquele ruído parecia impregnar-se em minha mente. Em uma situação daquelas, eu preferia estar sozinho, pelo menos assim não teria de escutar ruídos dos outros ou ter de preocupar-me com eles.

      Sou uma pessoa estranha, gosto do silêncio, da solidão e da liberdade, mesmo sabendo que esta última apresenta suas consequências. Eu não aprecio as pessoas ou suas companhias, poucos conseguiram conhecer um pouco mais a meu respeito. Preferia permanecer ao lado dos animais, pois eles não nos abandonam, não cobravam e não te criticavam devido à sua personalidade, acreditavam em todos com igualdade. Às vezes o silêncio dos bichinhos é um conselho muito mais sábio do que palavras jogadas falsamente por bocas humanas. A cantoria de Jan era irritante e eu preferia que ele ficasse quieto, pareia uma criança. Estava farto de tudo aquilo.

      Além daquela cantoria irritante, eu ainda sentia-me lento e disperso, não conseguia concentrar-me em um pensamento sem começar a flutuar passando pela minha imaginação, deixando a lógica de lado. Eu já não possuía muita noção do que acontecia ao meu redor, até mesmo a música de Jan parecia distante agora. Uma parte de mim gritava por socorro, tentando impedir-me de viajar, provavelmente ainda era efeito da droga. Tudo se tornou um borrão e eu senti meus pés saírem do chão. Não sabia se estava sonhando ou se ainda estava no mundo do concreto frágil. Mas aquilo não importava, pois eu já havia me entregado à imaginação.

Não fui capaz de calcular por quanto tempo eu permaneci adormecido ou naquela alucinação devido à droga (eu não gostei da sensação de usar aquele tipo de coisa, muito menos o fiz porque quis, simplesmente me fizeram cheirar aquilo). Enfim, não queria pensar que eu usei droga, mesmo que não por vontade, era péssimo e ainda sentia vertigem, tentei ignorar tal incômodo.

      Observei ao redor e percebi que Dayane adormecera e Jan murmurava coisas lunáticas das quais não tive vontade alguma de tentar entender (sim, ele era mais louco do que eu, por isso não conseguia compreender seu grau de insanidade). Tentei passar meu tempo pensando em como escapar dali, minha situação não era nada fácil: estava com as mãos amarradas, meu corpo ainda sofria os efeitos da droga e, para piorar, estava atrás das grades (não imaginei que fosse ser preso pouco tempo após ter completado dezoito anos).

      Talvez se meu celular ainda estivesse intacto, eu poderia ligar para Raj, no entanto, essa ideia logo fora descartada de minha mente, primeiro pelo fato de minhas mãos estarem amarradas, desse modo, não seria capaz nem de digitar, muito menos falar; segundo, pelo fato de eu não acreditar que ali haveria área. Foi então que eu me perguntei: onde estou? Aquela indagação passara pela minha cabeça apenas naquele momento e impulsionara novas questões. Será que eu estava muito longe de Sinéad? O que fariam comigo? Eu estava à mercê daqueles maníacos, o que não era uma coisa nada agradável.

      Eu estava ficando irritado por ter de permanecer sem poder fazer muita coisa, eu detestava estar impossibilitado, um completo inútil.

      - Ratos ou ratazanas? – disse Jan em tom mais elevado, quebrando o silêncio. – Ah, tanto faz! Tudo começa com “r” e pertence aos roedores, que é engraçado, pois também começa com “r”! Estou com vontade de ter uma coleção de olhos! Olhos amarelos, brilhantes...

      Quando ele disse isso, senti meu corpo estremecer, pois meus olhos eram amarelos e Jan já comentou e demonstrou possuir planos psicóticos a respeito de extração de meus órgãos de visão. Ele continuou balbuciando coisas completamente sem sentido.

      De repente, escutei a passagem abrir-se, ergui meu rosto e, pelas grades, tentei observar o que acontecia. Um homem todo ensanguentado rolou escada abaixo. Ele trajava a mesma túnica da qual os fiéis de Yasuo trajavam em alguns dos meus sonhos. O líquido vermelho e viscoso escapava por quatro feridas de seu corpo e pela boca. Seus olhos estavam exageradamente arregalados, fixos em um único ponto do teto. Em seguida, Raj desceu apressadamente os degraus.

      - Então, é aqui que você esteve durante todo esse tempo...

      - Raj! – bradei, aliviado. – Como me encontrou aqui?

      Ele deu de ombros.

      - Não sei. Simplesmente procurei por você, já que estava sumido há um bom tempo, então comecei a escutá-lo e seguir o som. Acabei chegando aqui. Você só dá trabalho, Jim Harris.

      - Perdão – respondi. – Mas acredito que este não seja o momento mais oportuno para discutirmos a respeito de minhas confusões...

      - De fato.

      Meu irmão aproximou-se de minha cela e utilizou uma chave para abri-la e, após isso, desamarrou meus pulsos.

      - Temos de tirar Dayane daqui também.

      Raj entregou-me a chave, desse modo, consegui abrir a cela de Dayane. Ela ainda estava adormecida, assim, aproximei-me e toquei seu rosto delicadamente, cheguei próximo ao seu ouvido e sussurrei:

      - Day, vamos embora.

      Lentamente, suas pálpebras abriram-se, revelando seus olhos azuis intensos. Ela observou ao redor, assustada, posteriormente, focou-se em mim.

      - O que está acontecendo?

      - Vamos sair daqui, agora – disse enquanto libertava seus pulsos.

      Dayane assentiu. Levantou-se e seguiu-me para fora daquela prisão. No entanto, quando já estávamos subindo as escadas, escutamos Jan segurar as barras da cela e agitar-se lá dentro. Seus olhos lunáticos analisaram-nos, após isso, ele disse:

      - Vocês vão me deixar aqui?

      Não respondi, então ele prosseguiu:

      - Ora, eu sei que vocês não querem que o papai retorne à vida. Bem, se deixarem-me aqui, irão matar-me e mais próximo da ressurreição o papai estará!

      De fato, o que Jan dizia era uma verdade, quanto mais filhos de Yasuo falecer, mais próximo de retornar ele estará, o que não é nada bom. No entanto, Jan tentou matar-me, será que poderia libertá-lo sem sofrer as consequências? Ele estava desarmado, então, talvez, não fosse louco o bastante de tentar atacar-nos, afinal, Raj estava com um revólver e poderá utilizá-lo caso o lunático tentar alguma coisa.

      - Vamos libertá-lo – disse.

      - Tem certeza? – perguntou Raj. – Ele também é nosso inimigo.

      - Eu sei, mas você mesmo disse que Yasuo estava cada vez mais poderoso, pode ser tarde se deixarmos mais um morrer.

      Raj não respondeu, ele retornou até a cela de Jan e abriu-a cautelosamente. Após isso, pegou a arma de fogo e mirou em direção ao lunático.

      - Um movimento em falso e você irá preferir permanecer atrás das grades – ameaçou Raj.

      Jan deu de ombros.

      - Finalmente estou livre, livre para voar! – Os olhos lunáticos de Jan estavam completamente radiantes.

      O alucinado acompanhou-nos com seus costumeiros movimentos frenéticos e estranhos, mas, aparentemente, não tentou nada contra nós. Quando retornamos ao andar de cima do armazém, avistamos Julia, Karl, Raven e alguns corpos ensanguentados de outros fiéis, contudo, nenhum sinal de Ariadne ou do homem forte. A namorada de Raj aproximou-se de nós, apressada e com uma leve expressão de desespero estampada em seu rosto.

      - Temos de ir o quanto antes, eles já devem estar chegando – disse Julia.

     Assentimos e não demoramos no lado de dentro do armazém. Fora do local, o céu apresentava-se escuro e noturno, com estrelas cintilantes adornando-o assim como a grande lua-cheia amarelada. Havia dois veículos estacionados, um deles era um caminhão, do qual acredito que fora utilizado para transportar-me na primeira vez em que fui sequestrado e no qual Karl e Raven adentraram. Raj e Julia assumiram os bancos dianteiros do carro e Dayane, Jan e eu acomodamo-nos no assento traseiro.

      - Como conseguiu isso? – perguntei a Raj.

      Ele gargalhou antes de responder:

      - E você ainda pergunta? Eu peguei emprestado, você sabe.

      O caminhão do qual Raven e Karl estavam saiu em nossa frente, em disparada e quando fazíamos o mesmo, avistamos um outro carro aproximando-se em alta velocidade, então pude apenas pensar o pior: pertencia a Ariadne e ao outro homem. Infelizmente, eu estava correto. Desse modo, não perdemos tempo e rumamos para a alto-estrada (se é que poderia ser chamada assim, pois se apresentava em péssimas condições, cheia de buracos).

      À medida que eu olhava, apreensivo, para trás, eu percebia que o outro veículo aproximava-se cada vez mais. Então avistei metade do corpo de Ariadne sair pela janela, ela segurava uma arma de fogo em uma das mãos enquanto utilizava a outra para apoiar-se. Mirou e fez seu primeiro disparo, o qual acertou de raspão a lataria de nosso carro, produzindo certo ruído. Julia fizera o mesmo que a mulher de olhos gélidos, iniciando um perigoso combate entre as duas.

      Aquela estrada não ajudava em nossa situação (apenas pelo fato de estar deserta), pela quantidade de buracos, durante todo o percurso ficamos pulando em nossos assentos e, de vez em quando, até chegávamos a bater com a cabeça no teto baixo do automóvel. Raj também não apresentava total controle enquanto pilotava o carro, além de preocupar-se com a estrada, ele também estava apreensivo com a situação perigosa na qual Julia encontrava-se. Pensei que ele fosse ter um ataque de nervos a qualquer instante e quase o pedi para deixar-me assumir o controle (sim, eu sei dirigir), só não o fiz pelo fato de não haver uma maneira de eu transportar-me rapidamente para o banco dianteiro. Dayane também se apresentava temerosa, possivelmente imaginando o motivo pelo qual ela estava metida naquela insanidade. Agarrada a mim, ela tremia da cabeça aos pés. Tentava transmitir, através de meus braços, segurança, no entanto, sabia que aquilo era impossível naquele momento. Apenas Jan parecia deleitar-se com a situação, ele gargalhava ruidosamente e gritava suas costumeiras frases sem sentido, isso quando não começava a cantarolar irritantemente animado.

      O ruído de balas acertando latas não cessara, mas, a cada instante, tornava-se mais intenso. Por sorte, a mulher ainda não atingiu ninguém ali dentro. Em um momento, escutei um barulho que quebrou a supremacia de todos os outros e então Raj praguejou alto:

      - Merda! Devem ter atingido uma das rodas.

      No mesmo instante, escutei Julia bradar triunfante:

      - Consegui! Atingi o motorista e uma das rodas. Eu atiro muito melhor do que aquela piranha!

      - E eu acho que eles acertaram o nosso pneu! – respondeu Raj.

      Quando me voltei para visualizar o que acontecia com o outro veículo, percebi que o ombro de seu motorista estava encharcado de sangue e o automóvel movia-se descontroladamente, ao passo que sua velocidade diminuía. Conseguimos uma boa distância, a ponto de eu não ser mais capaz de avistá-los, no entanto, não sabia por quanto tempo mais Raj manteria o controle de nosso automóvel arrasado pelos tiros e pela estrada. Não permanecemos por muito tempo na pista, o carro girou e bateu em uma árvore, antes de adentrar a mata fechada. Escutei todos gritarem, inclusive eu, e esses ruídos aglutinaram-se ao do impacto.

      Por sorte, a batida não fora tão intensa, desse modo, ninguém se feriu, mas já sabíamos que não poderíamos utilizar esse carro novamente. Então, a grande questão passou a ser: como retornaremos à Sinéad? Por enquanto, eu não possuía uma resposta, porém tentaria pensar em alguma coisa.

      - Teremos de parar por esta noite, não há condições de sairmos peregrinando por estas estradas – disse Raj. – Amanhã cedo elas estarão mais movimentadas, assim, poderemos pegar uma carona com algum viajante.

      - Bem, acho que ninguém tem uma ideia melhor – comentou Dayane. – Nem mesmo os celulares estão pegando...

      - Vamos brincar de filme de ação novamente? Foi tão divertido! – As pupilas lunáticas de Jan fitaram as estrelas, então ele recomeçou a cantarolar.

      Eu suspirei, imaginando que aquela será uma longa noite.

Estava eu recostado a uma árvore observando as belas estrelas, o que era bem mais difícil quando se está em uma cidade. Tudo ao meu redor estava silencioso, até mesmo o agradável vento não fazia ruído, mas ainda assim, sussurrava em meus ouvidos e eu gostava de escutá-lo. Gostei daquele local e de toda aquela tranquilidade, era capaz de respirar fundo e sentir o ar limpo uma vez mais. No entanto, comecei a escutar passos aproximando-se, quebrando a quietude. Em questão de instantes, Dayane estava diante de mim.

      - Posso assentar-me ao seu lado?

      Eu anui fazendo um gesto com a cabeça.

      Dayane assentou-se e recostou sua cabeça em meu ombro, eu a envolvi com meus braços.

      - Que loucura, não? – continuou ela.

      - Sim. Você não deveria ter passado por nada disso, ninguém aqui deveria. Perdão, a culpa é minha.

      - Por que diz isso?

      - Olhe, Day, essas pessoas estranhas estão atrás de mim, por essa razão, é melhor que, quando retornarmos à Sinéad, você irá afastar-se de mim. Não tente procurar-me, é pelo seu bem.

      - Mas, e se eu disser que não eu não me importo, que eu quero estar ao seu lado mesmo assim?

      - Não seja teimosa...

      - Jim, eu ainda gosto muito de você.

      Parei para fitá-la, por um instante. Nossos olhares encontram-se.

      - Eu sinto muito, Day, mas eu não posso, não quero vê-la em perigo novamente. Eu gosto de ti, mas não da mesma forma de antes... – Fiz uma pausa. – Além disso, eu estou gostando de outra garota, ela era minha namorada, contudo tive de romper com ela.

      - Por que o fez? Por que não está com ela?

      - Porque ela corria riscos de vida ao meu lado, assim como você ou qualquer outra pessoa. É sério o que estou lhe dizendo e acho que você já tem provas o suficiente disso. Quando retornarmos à Sinéad, o melhor que você pode fazer é afastar-se de mim e prosseguir com sua vida normalmente.

      - Você é louco, Jimmy!

      - E você me lembra uma música de uma banda brasileira, bem legal por sinal.

      Então traduzi a música de modo que ela pudesse entender sua letra:

“Uma menina me ensinou

Quase tudo o que eu sei

Era quase escravidão

Mas ela me tratava como um rei

Ela fazia muitos planos

Eu só queria estar ali

Sempre ao lado dela

Eu não tinha aonde ir

Mas, egoísta que eu sou,

Me esqueci de ajudar

A ela como ela me ajudou

E não quis me separar

Ela também estava perdida

E por isso se agarrava a mim também

E eu me agarrava a ela

Porque eu não tinha mais ninguém

E eu dizia: ainda é cedo, cedo, cedo, cedo, cedo.”

      - Você canta tão bem... – ela murmurou em meu ouvido. – Ainda vamos formar uma banda?

      - Você e seus muitos planos. – Sorri. – Claro, quando tudo terminar.

      - Por que você fica tão atolado com isso, Jimmy? Eu ainda não consigo entender toda essa situação.

      - Shiu!  - Coloquei meu dedo indicador em seus lábios, de modo que ela permanecesse em silêncio. – Escute.

      - Escutar o quê? – perguntou ela, obviamente confusa, afinal, não havia nada ali para ouvir, até Jan (por incrível que pareça) estava quieto.

      - Silêncio.

      - Responda-me, Jimmy! Escutar o quê? – Agora sua voz já apresentava um teor irritado.

      - Eu já respondi, quero que escute o silêncio, pois ele é sábio, é o maior filósofo!

      Dayane então se aquietou, apenas apreciando o momento.

      O silêncio é, de fato, o maior dos sábios, pois ele nos permiti escutar nossa própria mente, nosso interior. Somos influenciados por ele para termos um momento de reflexões, um momento apenas nosso com o intuito de procurarmos mais a respeito de nosso ser. Eu sentia-me leve e tranquilo quando me permitia desfrutar desses belos instantes. Estava em equilíbrio, não apenas interiormente, mas com tudo ao meu redor, conseguia sentir que havia vida à minha volta e aquela imensidão estava conectada de alguma forma.

      Conseguia compreender melhor o meu papel em meio a tudo aquilo, traçava meus objetivos com o intuito de cumpri-los. Tentar viver em equilíbrio com tudo existente no universo e crescer com as minhas experiências, nunca me esquecendo de presentear-me com momentos como esses, de profundas reflexões, buscando também a vida dentro de mim mesmo, aquela que muitas vezes ficava esquecida. Procurando um sentido e experimentando novas sensações. Se eu cavar demais, talvez um dia eu consiga encontrar um grande tesouro em meu interior.

      Observei Dayane ao meu lado e percebi que ela adormecera. Acariciei sua pele macia e percorri perfeitamente o contorno de seu rosto delicado com meus dedos. Em meio a toda aquela tranquilidade, também senti minhas pálpebras pesadas e, lentamente, fechei-as. Não tive dificuldades para entrar no mundo dos sonhos.

Eu estava em um parquinho, contudo não havia criança alguma ali, exceto por um garoto magro, alto de cabelo castanho com fios desalinhados que balançava solitariamente em um dos brinquedos, já muito gasto e enferrujado, fazia um ruído irritante com o vai-e-vem do garoto. Uma mulher alta, esbelta e possuidora de fios lisos observava a criança de um dos bancos do parque. Ela levantou-se, limpou a saia que trajava e chamou:

      - Vamos, Jan, mamãe ainda tem de preparar o jantar.

      O garoto então desceu do balanço e correu até a mãe, sem pronunciar uma palavra. Eu espantei quando a mulher chamou-o de Jan, mas foi então que eu percebi que o louco do qual eu conhecia e aquela criança eram a mesma pessoa. Eles não eram capazes de avistar-me, como se eu fosse um fantasma. Observava a cena apenas como um telespectador.

      Rumaram apressados até a morada. Quando chegaram, o garoto fez uma estranha pergunta à mãe:

      - Mamãe, por que às vezes quando eu olho para as lâmpadas, elas começam a piscar?

      Ela fitou o filho com certa estranheza, mas respondeu:

      - Não sei, meu filho. Deve ser apenas impressão sua. Agora acho que é melhor você ir brincar.

      As palavras da mulher pareciam ecoar em minha mente, na medida em que o cenário ao redor modificava-se, transportando-me para um novo local. Estava agora em um quarto de paredes pintadas de azul. Havia um guarda-roupa e um grandioso baú de brinquedos. A cama aconchegante estava sendo ocupada por Jan, que estava sentado trajando pijama e olhando fixamente para a lâmpada presa ao teto. As luzes ficavam piscando e o garoto parecia divertir-se com o fato.

      Até ele escutar um ruído estranho do qual nem ele, nem eu conseguimos identificar. As luzes pararam de piscar, o que me possibilitou avistar um homem alto, de pele clara, cabelo desgrenhado e negro. Ele trajava terno e seus olhos de gato amarelos e intensos, assim como os meus, analisavam o pequeno garoto encolhido em sua cama, assustado com a aparição. Aquele era Martjin, ou melhor, Yasuo.

      - Olá, meu filho. Como vai?

      Jan não respondeu, permaneceu encolhido, tremendo.

      - Não há necessidade de temer-me, afinal, eu sou o seu verdadeiro pai e desejo sempre o melhor a você. Eu vou tirá-lo deste lugar horrível, sua mãe nem esse homem que você chama de pai cuidam bem de você. Eu vou levá-lo a um lugar melhor, venha comigo, meu filho. – Ele ergueu os braços na direção de Jan.

      - N-não... Você não é meu pai... Se fosse, não seria tão assustador.

      - Você sabe que eu sou seu pai, Jan, eu peço perdão por ter sido ausente em sua vida, eu me arrependo por isso e agora quero levá-lo a um local melhor. Você será muito mais feliz.

      - Não! Eu não quero! – bradou Jan. – Eu quero a minha mãe!

      As luzes recomeçaram a piscar incessantemente enquanto Jan chamava por sua mãe. Comecei a escutar passos vindos do lado de fora e pararem diante da porta. Quando a mulher adentrou assustada, Yasuo desapareceu.

      - O que houve, meu filho?

      - Mamãe, por que meu pai quis assustar-me? – Jan ainda tremia.

      - Do que está falando, meu filho?

      - Meu pai esteve aqui e estava me assustando.

      - Mas seu pai estava lá embaixo assistindo televisão, creio que ainda esteja. Não tem como ele ter vindo aqui sem que eu o visse.

      - Não estou falando de Louis, estou falando de meu pai verdadeiro. Ele esteve aqui e me disse coisas estranhas.

      A mulher analisou o filho com certo espanto em seus olhos, no entanto, tentou não transparecê-lo. Então, substituiu-o por um sorriso nervoso na tentativa de tranquilizar o filho.

      - Deve ter sido apenas um pesadelo, meu filho. Não se preocupe com essas coisas e tente descansar. – Ela beijou sua testa. – Boa noite.

      Após isso, afastou-se da cama, apagou a luz e fechou a porta delicadamente deixando o filho apenas com a escuridão e com seus pensamentos confusos. Ele não se convencera que aquilo não passara de um pesadelo, fora tudo tão real, não havia como não ser. Essas reflexões e fatos continuaram a incomodá-lo, dia após dia, ele não foi capaz de esquecer. Às vezes voltava a visualizar seu suposto pai, assombrando-o durante longas noites. Chamar sua mãe de nada adiantaria, ela não acreditava. Estaria Jan tornando-se um louco? Seria aquilo fruto de sua imaginação ou, de fato, real?

      Nem mesmo o tempo pôde curá-lo. Seus pensamentos insanos continuaram a atormentá-lo, mesmo que ele já não estivesse na idade de acreditar em fantasias. Aqueles olhos amarelos, aqueles preciosos e belos olhos amarelos de gato não saiam de sua mente, o que o incomodava ainda mais. Sempre que comentava as estranhezas com a mãe, ela limitava-se a dizer que não passava de um pesadelo, do qual Jan deveria ignorar, já que não o fazia bem. Mas ele tinha certeza que era verdade ou estaria tornando-se um louco de verdade?

      Descobriu, então, a verdade, assim como eu, Jan é um dos filhos de Yasuo, no entanto, ele acreditava que aquilo era uma loucura, não poderia ser denominado de verdade. Em suas concepções de mundo, deuses pagãos não existiam, muito menos seus filhos. Jan era um deles, logo, ele também não existia? O jovem atormentado caiu em uma crise existencial. O que, de fato, pertencia ao real? Então ele lembrou-se da teoria de sua mãe: aquilo tudo não passava de um pesadelo e talvez aquela fosse à resposta mais plausível. E por que não? Jan aderiu a ideia como uma verdade, em sua mente, ele estava dentro de um sonho no qual ele precisava encontrar a saída. Ele preferiu entregar-se, de corpo e alma, à loucura a enfrentar a realidade ainda mais insana.


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