Sombras sobre Sinéad escrita por Dani


Capítulo 12
Xadrez




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A tensão caiu sobre o ambiente. Raj observava-me com cautela. Fiquei imaginando o que ele poderia fazer em seguida, retirar uma faca e cravar em meu coração? Estourar meus miolos? Do jeito que ele era louco, poderia ser capaz de qualquer coisa. Ele quebrou os poucos instantes silenciosos que se instalaram no local.

      - Então você já sabe.

      - Sim. Descobri há pouco.

      - Mas, duvido que você saiba a história.

      - Não.

      - Vou explicá-la – disse ele. – Nosso pai era um deus pagão muito poderoso, possuía muitos seguidores, entretanto, quando o culto começou a ser perseguido, dizimado, ele foi perdendo sua força. Ele sabia que desse modo, ele enfraqueceria tanto que deixaria de existir. Yasuo precisava de um plano para poder sobreviver, então decidiu gerar muitos filhos, os quais receberiam uma parcela de seu poder. Nos planos dele, ele não chegaria a morrer e recuperaria suas forças com o sacrifício de suas proles em um de seus macabros rituais. No entanto, quando a cerimônia estava sendo executada, as autoridades locais descobriram o que ocorria e atacaram o local. Algumas crianças foram mortas, uma quantidade razoável para deixá-lo reduzido a um humano comum, como ele foi ficando à medida que foi gerando os seus filhos. A maior parte das proles conseguiu ser salva. – Ele observou-me, depois prosseguiu. – Agora nosso pai está morto, mas pode retornar com a morte de todos ou praticamente todos os seus filhos. Os fiéis caçam as proles para matá-los e trazer o deus do caos de volta a terra.

      - Você acredita mesmo nisso? – perguntei.

      - E por que não acreditar? É a verdade para tudo o que está acontecendo. No início, eu também não acreditei, mas nada é o que realmente parece, as pessoas não acreditam mais em magia, contudo, ela está presente em nosso mundo, apenas não tão poderosa. Coisas estranhas acontecem ao redor das pessoas, principalmente de nós, filhos do caos. – Ele fez uma pausa. – Nós corremos muitos riscos de vida, os seguidores de nosso pai e nossos irmãos que têm conhecimento de nossa real natureza desejam matar-nos por seus motivos à parte.

      Assim como você quer matar-me, pensei.

      - Vim fazer uma proposta – começou Raj.

      - Já disse que não estou interessado.

      - É melhor você me ouvir – exigiu Raj.

      Raj empurrou-me beco adentro. O local era escuro, pois a luz do poste pouco iluminava aquele lugar sem saída. Havia muitas latas de lixo, das quais exalava um cheiro nada agradável e escombros de caixas velhas e amassadas de papelão. Meu meio-irmão aproximou-se com sua ameaçadora faca, a qual ele utilizara com a finalidade de matar-me no pesadelo, forçando-me a recuar até a parede de tijolos que cercava o beco.

      - Agora você vai me escutar?

      Não pude fazer mais nada além de ficar quieto e escutá-lo. Ainda mais com a visão da terrível faca, matara-me em sonho, não seria nada agradável se acontecesse na realidade.

      - Quero que você me ajude contra nossos irmãos – disse Raj. – Vamos derrubá-los, um a um, e trazer nosso pai de volta à vida. Assim, seremos reconhecidos e recompensados por ele, teremos o poder que nos é digno!

      - Continuo não interessado. Não desejo ser causador de uma carnificina.

      Pude avistar um brilho cruel nos olhos de Raj. Ele não ficara satisfeito com a minha resposta e, provavelmente, seria um homem morto, mas, até no perigo, não abandonaria meus ideais, enfrentaria até a morte por tudo em que acredito. Caso o fizesse, estaria negando meu ser, minha essência, estaria falecendo na cruz, o que é pior do que na espada (o melhor seria não ser assassinado em nenhuma das opções). Preferiria perder a vida a ser um indivíduo falso, a não viver de acordo com minha essência, a ser apenas uma sombra daquele quem realmente sou.

      - Então terei o prazer em mandá-lo ao inferno! – ameaçou. – Será menos um em meu caminho!

      Comecei a suar frio, aquele maldito impulso de gargalhar insanamente diante do perigo estava a ponto de dominar-me, entretanto, precisava reprimi-lo (apesar de achar que morrer sorrindo não é uma má ideia). Talvez se eu conversasse com Raj, eu conseguiria preservar minha existência. Sabia que havia alguma humanidade dentro dele.

      Raj aproximou-se de mim, segurou meu braço, apertando-o. Apontou a faca em minha direção. Nesse momento, paralisei de medo, a cena do sonho fazia-se presente em minha mente, impedindo-me de reagir. Ele já estava pronto a desfigurar minha face quando consegui bradar:

      - Espere!

      - Decidiu cooperar? – Ele observou-me com cautela e desconfiança.

      - Por que você faz isso? Acha mesmo que nosso pai, um homem que nos gerou apenas para seu próprio interesse, que nos quer mortos, vai reconhecer seu “trabalho”?

      - É o único jeito de subir na vida, eu preciso tentar!

      - Por quê?

      - Você questiona, pois teve sorte na vida, mas eu não tive – disse ele, calmo. – Eu sempre vivi na miséria desde o início. Minha existência é um erro, fui gerado apenas por um propósito e este não foi alcançado, logo, minha existência não faz sentido. Porém, quero ganhar uma identidade, quero um objetivo pelo qual lutar, quero uma vida melhor.

      - Eu também fui criado com esse propósito.

      - Você não foi! – bradou ele. – Você tem uma família, a qual te dá apoio, amor, instrução; você tem alguém, um motivo pelo qual lutar. Mas o que eu tenho? Minha mãe era uma das seguidoras de Yasuo. Desde o início ela sabia de meu destino, ela iria matar-me quando chegasse a hora. Sem amor, sem consideração ou humanidade, havia nela apenas o fanatismo por nosso pai e esse sentimento era o único que a motivara, era seu propósito de vida. Ela faria tudo por ele, até mesmo matar seu próprio filho.

      - Por que você apóia nosso pai, causador de seu sofrimento?

      - Porque eu quero mudar esta vida miserável! Após ser salvo, fui jogado a um orfanato qualquer. Faltava tudo: comida, espaço, roupas e algumas crianças eram abusadas sexualmente, as autoridades não faziam nada para mudar essa situação. Permaneci por alguns anos naquele local, na esperança de um lar, no entanto, o tempo foi passando, assim como a esperança abandonava meu ser. Decidi fugir. – Ele fez uma pausa. – Nas ruas, aprendi a roubar e utilizar armas brancas e de fogo, mas ninguém que eu encontrei ensinou-me a trabalhar, a ser honesto. Furtar foi, então, meu único meio de sustento. Nunca havia assassinado alguém até o dia em que dois sujeitos atacaram-me e, na tentativa de defesa, acabei matando-os. Eles eram nossos irmãos, entretanto, fui descobrir posteriormente.

      - Foi então que você começou a descobrir sobre os filhos de Yasuo? – perguntei.

      - Sim. Certo dia, encontrei-me com minha mãe, não a reconheci, mas ela fez questão de procurar-me. Contou-me tudo, disse-me que eu era uma desgraça por ainda estar vivo, pois meu destino era morrer por Yasuo e ela teria o prazer de completar a tarefa inacabada. Ela me atacou, porém fui mais rápido e acabei matando-a primeiro. Ela deixou estas marcas em meu rosto, como uma lembrança daquele dia. – Ele observou-me, por um momento, seu olhar estava mais suavizado. – Desde esse acontecimento, comecei a formar esse objetivo em minha mente. Se meu pai era tão poderoso, ele poderia melhorar minha vida, poderia dar algo a mais, algum sentido a este corpo vazio.

      - Você está fazendo o mesmo que sua mãe tentou fazer. Onde você acha que isso levará? Esse sangue derramado só sujará seu caminho, não eliminará seu rancor.

      - Meu caminho já está sujo, matei minha mãe e meus irmãos e, por isso, o mal já está feito, devo prosseguir dessa forma. Pelo menos consegui um objetivo em minha vida pelo qual lutar.

      - Não! – rebati. – Você sabe que esse caminho, do qual você escolheu, não o levará a lugar algum. Nosso pai não se importa com nenhum de nós, ele queria apenas a nossa morte. Existem outros caminhos para você, eu acredito que todos são capazes de lutar e conseguir algo melhor se forem instruídos. A maior parte sucumbi ao caminho mais fácil, o mais sujo e incapaz de destruir o rancor e o ódio. Você só não quer admitir que isso não o levará a nada, pois tem medo, medo de desistir de todo o seu “progresso” e tentar algo novo.

      - Quem tem medo é você! – bradou ele, furioso. – Nós, os filhos de Yasuo, não nos encaixamos no mundo, nós só conseguiremos se tentarmos o perigoso e alternativo rumo pelo qual estou tentando prosseguir.

      - Eu não sei se me encaixo no mundo, mas, pelo menos, estou tentando. Nem sempre o que eu tento resulta em algo positivo, no entanto, espero sempre conseguir alguma sabedoria a mais, algum aprendizado de tudo o que faço, até mesmo de meus erros – disse. – Fico pensando o que seria aproveitado se eu seguisse pelo seu caminho e chego à conclusão que haveria muito morte, muito sangue, muito ódio e rancor. No fim, o que iria conseguir?

      Raj ficou algum tempo a observar-me atentamente. Parecia analisar minhas palavras. Aquele fora o único indício de que elas estavam fazendo algum efeito, bastava saber se era positivo ou negativo. Imaginava que era benéfico, pois eu ainda estava vivo e ele havia baixado a guarda, entretanto, ainda não era possível dizer, não era capaz de prever a mente de Raj.

      Deveria tentar algum tipo de fuga? Provavelmente, não. Mesmo com a guarda baixa, Raj é um homem ágil, muito mais do que eu. Contaria apenas com minhas palavras e em meu poder de persuasão ao utilizá-las. No fim, aquilo não era mais uma luta de espadas.

      - Não há outros caminhos para mim. – Olhar de Raj tornara-se melancólico. – Assim como muitos, eu fui excluído da sociedade, não há um modo de pessoas como eu seguir pelo caminho honesta, por isso, desde início, fizeram questão de não ensiná-lo a mim.

      - Nunca é tarde a aprender... Quero ajudá-lo a isso.

      Raj observou-me com os olhos carregados de súbita surpresa. Eu era capaz de compreendê-lo, provavelmente esse tipo de apoio nunca lhe foi oferecido e, assim sendo, ele jamais esperaria uma coisa dessas de qualquer pessoa. Ele ficou paralisado, como se estivesse mergulhado nas profundezas de sua própria mente e, por alguns instantes, permaneceu naquele estado até voltar a si.

      - Como? – perguntou ele. – Como vai me ajudar?

      - Serei teu professor. Irei ensiná-lo muitas coisas das quais aprendi.

      Ele não respondeu, no entanto, começou a rir histericamente. Parecia confuso demais, era até muito compreensível sua reação. Deixou a faca cair ao chão. Pensei em correr para longe, entretanto, ainda faltava-me a coragem necessária, afinal, a reação de Raj poderia ser a pior possível.

      Em meio a toda a confusão, algo inesperado aconteceu: escutei um estalo ruidoso e, em instantes, gotas de sangue espirraram, sujando minha face. Observei a cena, paralisado. Raj urrara de dor, havia levado um tiro em seu ombro, o líquido vermelho e viscoso escorria pelo ferimento.

      - Não! – escutei uma voz feminina bradar.

      Uma garota saiu em meio aos escombros de caixas velhas de papelão. Logo fui capaz de reconhecê-la: Julia. Ela correu em direção ao seu amado, oferecendo-lhe o apoio necessário para ficar de pé.

      - Você está bem? – perguntou ela, preocupada.

      - Sim... – respondeu ele com dificuldade.

      Ao horizonte, avistei faróis de carro aproximando-se. Pertenciam à polícia. Julia apressou-se, com Raj apoiado em seu ombro, até o escombro de caixas, afastando-as, mas sem deixar evidente que havia uma estreita passagem, a qual dava acesso à outra rua.

      Antes de fugir, Julia voltou-se em minha direção. Sorriu e disse:

      - Obrigada, Jim Harris.

      Julia desapareceu em meio à escuridão, a qual envolvia a estreita passagem antes que eu pudesse respondê-la.

      Instantes depois, os oficiais aproximaram-se de mim. Entre eles estava o caso de minha mãe, Ross Wood. Este parecia um pouco mais cansado que o costume, seu rosto tornou-se ainda mais preocupado quando me avistou (provavelmente devido ao sangue de Raj em minha face e o fato de eu sempre estar em encrenca).

      - Jim, você está bem? Está ferido?

      - Estou bem, senhor Wood.

      - O que aconteceu aqui? E esse sangue em seu rosto? Você realmente não aparenta estar ferido.

      Não sabia como respondê-lo, não desejava incriminar Raj. Por algum motivo, ainda era capaz de escutar o agradecimento de Julia, o qual me pareceu muito sincero. Talvez aquilo representasse que minhas palavras fizeram algum efeito positivo dentro de meu meio-irmão. Perguntava-me como a polícia havia tomado conhecimento do que estava acontecendo ali, afinal, até então, as ruas estavam desertas. Além disso, desejava saber quem foi o responsável pelo tiro, o qual acertara em Raj. Seria algum dos oficiais? Mal pude avistá-lo, pois tudo ocorrera tão rápido quanto um feixe de luz.

      Oficial Ross percebera meu deslocamento e, assim, começou a explicar o motivo o qual levou a polícia até ali.

      - Uma garota disse que estava passando por aqui e avistou um garoto vestido de preto e você aqui. Ela achou suspeito e pensou que você poderia estar precisando de ajuda – explicou Ross. – Foi até nós e pediu socorro.

      - Entendo.

      - Bem, Jim, você terá de acompanhar-nos até a delegacia – disse Ross. – Por favor, acompanhe-me. Enquanto isso, os outros policiais ficarão aqui e investigarão a área.

      Não queria seguir à delegacia, desejava voltar à minha casa e descansar, era a única coisa a qual possuía em mente. Contudo, não havia opções, teria de acompanhar o oficial Ross até seu local de trabalho. Antes de deixar o beco, percebi que a faca, a qual Raj deixara cair ao chão, já não se encontrava presente no ambiente. Provavelmente Julia pegara-a sem que eu a visse.

      Caminhei até o carro do oficial Ross. Antes de adentrar ao veículo, percebi que havia uma garota assentada no banco traseiro. Era Phoebe Johnson. Abri a porta e acomodei-me ao seu lado. Seu rosto ruborizou e ela desviou o olhar. Oficial Ross assumiu seu local no banco de motorista, retirou um lenço e entregou-me.

      - Pode limpar seu rosto com isto, Jimmy.

      - Obrigado.

      Prosseguimos, então, até a delegacia. No caminho, fui tentando formular alguma explicação razoável, de modo a não incriminar Raj e falar a respeito da tentativa de homicídio. Poderia ter sido com o intuito de matar-me, não descartei tal possibilidade.

      Phoebe foi deixada em frente à sua casa antes de prosseguirmos à delegacia.

      - Deveria agradecê-la depois, foi ela quem nos avisou sobre o que estava acontecendo.

      - Farei o que o senhor diz.

      Chegado à delegacia, senhor Wood guiou-me até sua sala, onde ele fez-me um questionário enfadonho. Respondi como pude, mas imaginei que minhas explicações estavam demasiadamente esfarrapadas e, com isso, tive a ligeira impressão que ele estava desconfiado. No entanto, ele não indagou mais a respeito, disse apenas que investigaria o caso. Assim como eu, ele estava exausto.

      - Sinéad nunca teve uma onda de crimes tão intensa como está tendo ultimamente. – Ele suspirou. – Para você, deve estar sendo muito difícil, afinal, constantemente atrai os maus elementos.

      A fala do oficial fez-me lembrar de algumas palavras ditas por Raj: “somos filhos do caos”; “nós, filhos de Yasuo, não nos encaixamos no mundo”. Como uma vez pensara, eu levava a tempestade aquele local pacato. Às vezes pensava que não o pertencia.

      - Hã, senhor Wood, será que teria como o senhor não comentar com a minha mãe que eu fui parar na delegacia? – perguntei. – Não desejo preocupá-la mais do que ela já deve estar.

      - Desculpe, Jimmy, mas não posso mentir para a senhora sua mãe.

      - Você não estará mentindo, está dando-me uma carona, basta dizer isso. Omitirá apenas alguns fatos – disse. – Por favor, prometo-lhe que depois contarei tudo a ela, mas deixe-a descansar por hoje.

      Ross suspirou.

      - Se for pelo bem de Marisa, então está bem.

      - Obrigado, senhor Wood. Sabia que poderia contar contigo.

      No caminho, fomos conversando a respeito de coisas menos preocupantes, assim não demoramos muito a chegar à minha casa. Oficial Ross acompanhou-me até a porta (ele estava ganhando pontos no relacionamento agindo dessa forma. Espertinho) e explicou à dona Marisa o que eu havia lhe falado para dizer. Isso fez com que minha mãe aliviasse suas feições preocupadas.

      Rumei até meu quarto, troquei-me e deixei meu corpo cair pesadamente sobre a cama. Estava exausto, mas minha mente apresentava-se tão conturbada que não conseguia adormecer (penso, logo não durmo).

      Pensava em todos os acontecimentos daquele dia. Esperava que minhas palavras tivessem feito algum efeito positivo em Raj, queria ajudá-lo, sabia que ele precisava disso. Ele tivera uma vida sofrida, sempre guiada pelo pior caminho. Suas falas ainda flutuavam em minha mente: “nas ruas, aprendi a roubar e utilizar armas brancas e de fogo, mas ninguém que eu encontrei ensinou-me a trabalhar, a ser honesto”. Pois bem, eu vou ajudá-lo.

      Imaginei quantos outros meio-irmãos, dos quais tiveram a mesma sorte de Raj e quantos desconheciam sua natureza. Certamente eram muitos. Lembrei que Susie e Lisa também estavam no meio de toda a confusão, entretanto, talvez fosse melhor elas não descobrirem a verdade. Pensei se minha mãe saberia quem realmente era meu pai e, possivelmente, não. Também refleti a respeito do atentado. Quem poderia ter atirado? Relembrei as palavras de Raj: “nós corremos riscos de vida, os seguidores de nosso pai e, até mesmo, nossos irmãos que têm conhecimento de nossa natureza, querem matar-nos por seus motivos à parte”. Provavelmente era alguém que se enquadrava em uma dessas categorias ou nas duas.

      Enfim, eram muitas questões, das quais deveria pensar, no entanto, estava tão cansado que quase não conseguia fazê-lo. Não obtinha êxito quando tentava adormecer, minha mente estava conturbada demais. Virava de um lado ao outro na cama com intuito de encontrar uma posição satisfatória, na qual me ajudasse a dormir, entretanto, sem sucesso. Escutei minha gata adentrar ao recinto e pular sobre minha cama. Abracei-a e, só então, senti meus olhos pesados e pude viajar ao mundo dos sonhos.

Sábado chegara e eu não estava tão entusiasmado com isso. A semana fora demasiada cansativa, nunca corri tanto risco de vida, fui humilhado pelo pai de minha namorada e ainda descobri coisas as quais vão além da compreensão do real. Atravessam todas as fronteiras da fantasia e, ainda assim, estão presentes neste mundo feito de coisas frágeis.

      Aquela manhã estava tão gélida como todas as outras, mas não me importei com isso, o que me preocupava era o fato de não conseguir dormir mais. Estava cansado, mesmo assim, a insônia afetava-me. Permaneci naquela inércia durante um bom tempo até decidir fazer algo mais produtivo.

      Levantei-me, banhei-me em águas quentes e rumei até a cozinha e percebi que mamãe e Lisa ainda dormiam. Decidi preparar o café. Enquanto fazia isso, escutei alguém descendo as escadas e aproximando-se, após alguns instantes, esta pessoa abraçara-me por trás.

      - Bom dia, Jimmy – disse Lisa.

      - Bom dia, irmãzinha. Não consegue dormir mais?

      - Ainda estou tendo aqueles pesadelos – choramingou.

      - Entendo. Bem, sente-se que logo o café estará pronto.

      Após o preparo, peguei duas xícaras, uma para mim e outra para Lisa, entreguei-a quando me assentei.

      - Você sabe dizer-me sobre o que você tem sonhado?

      - É tudo tão terrível! – respondeu ela. – Escuto crianças chorando, vou aproximando-me do som e vejo crianças morrendo, muito sangue. É tenebroso!

      - Entendo. – Acariciei seu braço, tentando acalmá-la.

      Lisa estava tendo sonhos parecidos com os meus. Provavelmente era alguma prova que ela também é filha de Yasuo. Mas essa era uma informação da qual eu não apreciaria se ela descobrisse. Talvez como uma forma de protegê-la, seria melhor ela não se envolver em toda essa confusão.

      Sabia que aquilo estava longe de terminar. Como Raj dissera, havia muitos filhos de Yasuo e seguidores atrás de nós. Era tão cruel de pensar em uma situação dessas, onde irmãos caçam irmãos e mães caçam seus próprios filhos enquanto o pai deseja assistir a morte de todos.

      Terminado o café, voltei ao meu quarto e permaneci, por alguns instantes, pensando no que faria naquele momento. Até, finalmente, decidir. Iria desenhar. Peguei minha pasta de projetos (sim, desejava ser um arquiteto desde pequeno), retirei uma de minhas folhas em branco e comecei meu trabalho.

      Permaneci brincando com minha imaginação e com traços, os quais fazia com meu companheiro lápis por bastante tempo. Até escutar um barulho no jardim de entrada. Percebi que Yuki estava sentada à janela. Ela miava.

      - O que foi, bichana?

      Ela permaneceu miando.

      Aproximei-me dela e recostei-me à janela com intuito de avistar o que estava acontecendo no jardim. Contudo, não havia ninguém ou nada estranho lá.

      Fiquei pensando como Yuki sabia das coisas estranhas as quais aconteciam ao meu redor. Imaginei que talvez ela estivesse ali para proteger-me, avisar-me do perigo. Ela é minha companheira e eu a amo. Minha irresistível bolinha de pêlos, Yuki.

      Após todos os meus pensamentos “românticos”, desci as escadas e rumei até o jardim. Fiquei procurando qualquer coisa estranha ou fora do lugar. Aparentemente, tudo estava comum. Decidi, então, observar entre as flores, o que me levou a avistar algo reluzindo em meio à grama, devido aos tímidos raios solares daquela manhã fria e nebulosa.

      Aproximei-me e retirei o objeto do chão. Era uma peça de xadrez, o peão. Analisando-a bem, ela possuía o mesmo peso e tamanho das outras e sua coloração era prateada. Entretanto, esta estava quebrada. Fiquei imaginando os possíveis significados contidos naquele pequeno item e percebi que minha mente tornava-se ainda mais confusa. Aquilo poderia dizer que minha hora havia chegado, fato do peão estar quebrado talvez indicasse minha morte. Essa é uma das possíveis interpretações de várias, porém todas elas direcionavam meu pensamento a um único resultado: “estou ferrado” (acostumei-me com isso).

      Decidi esconder aquilo antes que minha mãe avistasse e começasse a fazer perguntas. Rumei até meu quarto e guardei-a junto das outras. Perguntava-me quando é que estaria livre de tudo aquilo, quando poderia respirar tranquilamente e dizer que estava distante daquela guerra doentia. Fomos submetidos a algo cruel demais, sinto-me com um fardo em minhas costas, algo tão pesado que talvez eu não fosse capaz de carregar.

      Ainda tinha de carregar tal responsabilidade para Lisa, não a desejava em meio a toda esta situação. Pensava que aquilo fosse apenas mais um de meus pesadelos, do qual estava disposto a acordar a qualquer momento. No entanto, tudo caia em terra, a fria realidade forçava-me a enfrentar a insanidade. Não sei como entrei em meio a tudo isso, mas não havia como fugir agora.

      Então, quando pensava em tudo aquilo, sentia meu crescente desespero e o incontrolável impulso de gargalhar. Ria e ria por alguns minutos a fio. Você está enlouquecendo, Jim Harris. Coloquei minhas mãos sobre minha cabeça, bagunçando, ainda mais, meu cabelo negro desgrenhado. Precisava descansar. Observei meus projetos espalhados pela minha cama e decidi voltar ao meu trabalho e afastar minha mente de coisas ruins.

Eram três horas daquela tarde de sábado quando decidi fazer um passeio pelas ruas de Sinéad. Precisava de um pouco de ar, sentia-me sufocado demais em meu próprio mundo. Olhava as pessoas ao meu redor e percebia como conseguia enxergar a beleza em toda aquela simplicidade, como desejava pertencer àquela realidade neste momento.

      Pessoas transitavam pelas ruas, seguiam com suas vidas pacatas e não estavam prontas para enfrentar coisas ruins, nem esperavam que isso acontecesse.

      Observei ao meu redor, os belos trabalhos arquitetônicos, analisei-os e respirei fundo. Só então pude acalmar-me daquela loucura. Fiquei imaginando-me no futuro (isso se eu conseguisse chegar com vida até lá), um grande arquiteto produzindo belas obras, brincando com a imaginação, praticidade e inteligência a cada trabalho. Irei construir um local de abrigo destinado a animais abandonados, onde faria o que os desumanos não são capazes de fazer: cuidar dos bichos.

      Às vezes sentia-me como um animal abandonado, jogado na imensidão do mundo, à própria sorte. Suspirei e continuei a andar em meio aquela selva de concreto. Estava alheio a tudo, perdido em meus pensamentos, até sentir alguém tocar meu ombro. Quando me virei, avistei Julia diante de mim.

      - Olá, Jim Harris – cumprimentou-me.

      - Olá, Julia – retribui.

      - Podemos conversar?

      Permaneci um tempo pensando em minha resposta. Seria apenas uma conversa ou uma armadilha para matar-me? Então me lembrei do sorriso da jovem ao dizer “obrigada” e minhas suspeitas decaíram.

      - Sim.

      - Ótimo. Escolha um lugar legal para acomodarmo-nos.

      Observei ao redor e avistei o novo café da cidade. Fora inaugurado há pouco tempo e, desde então, tem feito sucesso, lucrando bastante principalmente com jovens. O lugar vivia abarrotado de pessoas, o que dificultaria qualquer atentado, assim como nossas conversas seriam abafadas em meio a tantas outras. Sim, aquele seria o local.

      Adentramos ao local e escolhemos uma das poucas mesas disponíveis para acomodarmo-nos. O lugar era bem arrumado e adornado, arejado e de visual moderno. Uma jovem garçonete viera até nós e entregara-nos cardápios. Pedi um cappuccino com conhaque e Julia um chocolate quente. Quando a atendente retirou-se, Julia voltou sua atenção a mim e disse:

      - Bem, começando o que eu desejo dizer, você vai mesmo ajudar Raj? – perguntou.

      - Sim, caso ele tenha interesse.

      - Ele precisa dessa ajuda, você não sabe o quanto. Eu vou apoiá-lo em tudo, mas acredito que esse rumo que ele está tomando só o levará à desgraça. – Ela fez uma pausa. – Você foi capaz de mostrá-lo outro caminho, o qual eu não pude fazer. Ensinei-o as poucas coisas que sei.

      - Eu acredito que a educação seja capaz de mudar as pessoas, devemos ser bem instruídos, o que abrirá várias portas em nossa vida.

      - É o que eu desejo a Raj. Eu quero o bem a ele, sei que ele é capaz. É um homem esperto, aprende com facilidade.

      - Vou separar alguns livros básicos, dos quais utilizarei para ensiná-lo – disse. – Como ele está?

      - Recuperando-se à medida do possível.

      - Vocês têm alguma suspeita de quem pode ter sido o causador do atentado? – indaguei.

      - Ainda não, estamos analisando o caso. Mas, acredito que seja algum dos seguidores ou próprio meio-irmão, alguém que saiba sobre Raj.

      Neste instante, as nossas conversas cessaram, pois a jovem garçonete trouxera nossos pedidos, anotou-os na conta e afastou-se para atender a outra mesa. Enquanto tomava minha bebida, observava a grande vidraça ao meu lado, a qual era possível avistar a calçada.

      Pessoas transitavam de um lado a outro e, em meio a elas, avistei Amber carregando algumas sacolas de mercado, ela também me viu e, provavelmente, perguntava-se o que eu estava fazendo com outra garota. Fiz um sinal com o intuito de chamá-la (não queria que ela desconfiasse de mim), ela entendeu e, em poucos instantes, já estava assentada em meu colo.

      Podia saber que ela sentia ciúmes e tentava, de qualquer forma, mostrar que ela é quem é minha namorada. Segurei sua cintura enquanto ela estava sentada em meu colo.

      - Amber, essa é Julia, uma conhecida. Julia, esta é Amber, minha namorada. – Apresentei-as.

      Após isso, relembrei algo que gostaria de perguntar a Julia. Necessitava indagar se aquelas peças de xadrez tinham algum vínculo com Yasuo. E foi o que fiz.

      - Sim – respondeu ela. – Cada filho de Yasuo recebera uma dessas peças – explicou. – Acredito que suas tonalidades também tenham algo a ver, mas ainda não sei o que seja.

      - Entendo. E quando essas peças quebram?

      - A quebra da peça representa que seu portador está morto. Elas não são destruídas por nenhuma outra razão, apenas essa.

      As duas peças intactas, as quais estão comigo devem ser uma minha e outra de Lisa. A última, quebrada, indica que algum de meus meio-irmãos está morto, ou seja, meu pai estava mais próximo de voltar. A cada falecimento, ele tornava-se mais vivo. Maldição!

      - As regras já estão dadas, Jim Harris – disse Julia. – Quem irá vencer? Aquele que souber respeitá-las ou aquele que ir contra tudo? Afinal, até que ponto somos capazes de chegar pela sobrevivência e poder? Estamos no meio de um jogo, um doentio jogo, onde vocês são apenas os peões.


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