Umbrellas Secret escrita por Pedro_Almada


Capítulo 5
Devaneio




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/86775/chapter/5

Devaneio

 

            - Ainda com o mesmo guarda-chuva?

            Silêncio. Não obtendo resposta, Carl mudou a pergunta.

- Livros?

            Anne endureceu sua expressão.

            - Cego? – ela respondeu, já sabendo de quem se tratava. Conhecia muito bem aquela voz. O suficiente para odiá-la todos os dias em que pudesse se lembrar.

            - Acho que mereço isso, certo? – ele falou, tentando, pela primeira vez em muito tempo, parecer simpático.

            - Não. Você merece coisa pior. – ela bateu o livro com força na mesa, involuntariamente, sentindo uma veia em sua têmpora saltar levemente.

            O silêncio consumiu a atmosfera por alguns segundos, tempo em que Carl, provavelmente, se colocara em pensamentos, lembrando-se do último dia em que vira o sorriso da bela “garota de olhos distantes”. Por fim, já não pretendendo continuar com aquela situação, puxou uma cadeira e sentou-se ao lado dela.

            - Acho que te devo desculpas. – ele disse, enfim - por... Muitas coisas.

            - Não. Você não me deve nada. – Anne respondeu, enquanto separava os livros em ordem alfabética – Se não se importa...

            - Eu só queria dizer isso – ele a interrompeu – você sabe que, o que eu fiz no ano passado... Foi sem querer.

            - Ah, claro. Mesmo porque todo mundo, sem querer, confunde livros com todas de madeira! A propósito, ouvi dizer que a fogueira de fim de ano foi maravilhosa. Iluminou todo o pátio da escola.

            - Anne...

            - Carl... Não precisa. Sério. Eu descobri que algumas pessoas, por mais que queiram, não mudam nunca. Infelizmente, você é uma delas.

            O rapaz reprimiu a vontade de falar, enquanto apenas ouvia.

            - Espero que se acostume – continuou Anne, arrumou os livros às pressas – Porque você vai definhar sendo essa pessoa que sempre foi. Patética.

            - Sr. Ford! – chamou a Sra. Pupkis – Vou ter que pedir que se retire. Está perturbando o nosso trabalho.

            - Só um minuto, Sra. Pupkis, eu só vou...

            - Não se preocupe, Alana – falou Anne, chamando a mulher pelo primeiro nome. De alguma forma, aquela demonstração de intimidade deixou Carl desarmado, como se, realmente, fosse a última palavra que trocariam – ele está saindo. Agora, para ser precisa.

            Carl não questionou. Encarou Anne, preso àqueles olhos azuis. Quisera ele ser capaz de reparar o seu erro. Mas, depois de ouvir de Anne palavras tão duras, sentiu que, talvez, não adiantasse mais ter nenhuma fé em si mesma. A única pessoa que acreditava nele já não o queria mais por perto.

            - Tenha um bom dia, Anne. – disse ele, exibindo uma expressão de puro ressentimento, mesmo que, por dentro, fosse apenas amargura – Só não venha me procurar depois. Você sabe que estarei ocupado.

            - Vai queimar mais alguma coisa? – Anne debochou, arqueando uma sobrancelha com sarcasmo. Sem tom de voz geralmente era doce e tranqüilo. Mas não era o tipo de comportamento que alguém como Carl merecia.

            Carl Ford apenas se virou, caminhou em direção à saída, fitando a Sra. Pupkis com um olhar ilegível. Desapareceu de vista em questão de minutos.

            Alana Pupkis, a bibliotecária sempre observadora, via em Anne uma grandeza inquestionável. Mas, acima disso, ela sabia: lembrando-se do último ano, sabia que a inteligência e, de certa forma, a gentileza de Carl foram descobertas por ela, a garota cega com um brilho misterioso nos olhos. Enganava-se aquele que dizia “Anne é cega”. Sua alma tinha a visão mais límpida que Pupkis já vira, nem mesmo em centenas de personagens fictícios em sua vasta coleção de livros havia alguém tão acordado quanto Anne Sua Williams.

            Pupkis ainda se lembrava daquele dia

 

   ***************************************************************

 

Segundo semestre do ano de 2000

 

            Os olhos cuidadosos e preocupados de Alana Pupkis corriam de uma parede a outra, contado os livros mentalmente, fazendo sua habitual vigília, guinchando com um sussurro irritante quanto algum aluno quebrava o maravilhoso silêncio disseminado no ar. Cuidava para que as mãos estivessem limpas, que os autores estivessem em seus devidos lugares e que Shakespeare se mantivesse intacto sobre a bancada onde se lia “O melhor desde Sonho de Uma Noite de Verão”. De alguma forma, ela não sabia dizer como, aquela história havia cativado seus olhos experientes na literatura.

            Não era sua história preferida, muito menos Shakespeare o seu preferido. Mas, inexplicavelmente, Pupkis sentira emoções que nenhuma outra história havia conseguido demonstrar. Talvez fosse o fato de ter sido o primeiro presente de seu irmão, morto poucos meses depois. O fato era que gostava, e não procurava entender essa preferência. Mas fazia questão que soubessem.

            Ignorou Shakespeare completamente quando viu, em uma das mesas próxima a janela, dois garotos que jamais imaginaria juntos.

            - Anne Williams e Carl Ford? – ela piscou duas vezes - O que, raios, estão fazendo juntos?

            Alana observou por algum tempo, talvez fosse para se certificar de que não estava enganada. Talvez fosse insanidade.

            Anne sorria, deslizando os dedos sobre a folha com pontos em alto-relevo, enquanto Carl ouvia, concentrado, as palavras que Anne extraíam daquela folha sem sentido aos olhos.

            O garoto assentiu uma ou duas vezes, concordando com alguma coisa, sorriu várias vezes, mas continuava decidido. Queria ouvir Anne, queria mesmo ouvir o que um livro tinha a lhe dizer. A escola já estava em fim de expediente, os dois eram os únicos na biblioteca quase deserta, exceto por Pukpis, sempre atenta.

            Carl segurava a cabeça furiosamente, bufando, frustrado. “Só pode ser a matemática”, pensou Pukpins. Ela riu, admirada em como o karma era funcional e eficiente.

            Meia hora depois, eles se levantaram, Anne parecia realizada, embora Carl não demonstrasse a mesma animação. “Com certeza, números”.

            Com a ajuda do garoto, Anne guardou os livros, ajeitaram as cadeiras, conversaram um pouco sobre alguma coisa e, convencidos de que precisavam dar o dia por encerrado, caminharam em direção à saída.

            Passaram pela bancada. Pupkis não se conteve. Precisava comprovar.

            - Estava ensinando matemática ao rapaz, Anne? – perguntou a bibliotecária, sorrindo zombeteiramente para o garoto – sei que é difícil para muitos.

            - Carl? Com problemas em matemática? – Anne riu – ele é um gênio. Eu estava fazendo ele entender espanhol. Se ele fosse tão bom com o espanhol como é com o francês... Boa noite, Sra. Pupkis.

            Alana fitou, deslocada, os dois saírem da biblioteca. Dessa vez, era Carl quem ria com zombaria. Pupkis nunca poderia ter imaginado. Mas naquele dia começou a torcer por ele.

            Naquela mesma noite alguém invadiu a biblioteca, carregou dezenas de livros para o pátio e ateou fogo. Shakespeare não estava sobre a bancada pela manhã.

 

  ******************************************************************

 

            - Anne... Você está liberada – assim que Alana se despertou do seu devaneio momentâneo, lembrou-se que não estava sozinha na biblioteca.

            - Mas, Alana... Eu mal comecei, e ainda tem...

            - Querida, por favor. Não quero ser acusada de tirar alunos exemplares da sala de aula. Vamos, deixa que e cuido do resto. Você já fez muito.

            Anne suspirou, rendida. De fato, já estava atrasada para a primeira aula. Não queria complicar o lado da Sra. Pupkis.

            - Se precisar de mim, estarei sempre aqui.

            - Você é um doce, querida.

            Com o guarda-chuva nas mãos, encontrou o caminho até a bancada, deixou um folheto com a relação dos livros já separados. Estava para sair quando Alana falou:

            - Anne...

            Ela parou, virando-se.  Seus olhos sobrevoavam a biblioteca, mas Alana sabia que tinha toda a atenção da garota.

            - Sabe... Normalmente eu não gosto de encorajar loucuras, ou tolices... Sou realista e tento me manter longe de pessoas que me tragam problemas... Mas, se tem uma coisa que eu aprendi nos livros, é que sempre existem segundas chances.

            Anne assentiu, depois de compreender do que se tratava a súbita conversa.

            - Bom dia, Sra. Pupkis.

            - Bom dia, querida.

            Anne caminhou até a porta e saiu, sentindo o frescor do dia. As palavras de Alana ficaram ecoando secretamente dentro de sua mente até o término do dia.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

mais um cap postado. Espero que gostem. Como já devem ter percebido, a história não segue uma linha cronológica. Não sei até quando será assim, mas prometo que isso não vai tirar o rendimento do enredo xD
vlw e comentem xD