Umbrellas Secret escrita por Pedro_Almada


Capítulo 6
Conflito




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Conflito

 

            O passado não é nada, se não a sombra de nossas escolhas. O presente, esse sim deveria ser o mais superestimado. Mas não, elas estão sempre olhando para o futuro, como uma vela incerta no meio do mar que espera o próximo vento de redenção, sempre esperando o que jamais poderão saber. Talvez seja isso que as torne tão frenéticas, desejando viver intensamente. Eu? Só estou vivendo, sem sombras, nem vento. Apenas o presente momento. Não é nada fácil.

  

                                                                                   Anne Sue Williams

 

     ***************************************************************         

 

17 de setembro de 2000 – um ano antes  

 

            Anne estava na biblioteca, escrevendo uma carta. Algo sobre livros para portadores de necessidades especiais. O lápis dançava sobre a folha sem nenhuma técnica, subindo e descendo, contornando montanhas, ora letras pequenas, ora maiores. Com apenas quatorze anos, era uma garota de uma determinação fora do comum. Buscava, entre outras coisas, quebrar o máximo de barreiras possíveis. Ela uma garota com coração de longas pernas, capaz de saltar os maiores obstáculos.

            Terminada a carta, meteu-a debaixo do braço, assim como seus livros, recolheu seu velho guarda-chuva vermelho e, usando-o de bengala-guia, caminhou até o balcão, onde Alana Pupkis parecia absorta em um livro grosso, intitulado “História dos Impérios”.

            - Sra. Pupkis. – chamou Anne.

            Alana voltou sua atenção à jovem cega. Seu coração encheu-se de alegria. Não havia ninguém naquela escola tão apaixonada por livros como Anne. Quando descobrira que a menina, mesmo cega, perseguiria o sonho de fazer letras na faculdade, Alana descobriu uma alma maravilhosa. Passou a cultivar essa amizade com bom grado.

            - Sem formalidades, querida – pediu Alana, sorridente – diga, o que precisa.

            - Quero mandar essa carta para a Secretaria de Educação.

            Pupkis ficou surpresa, encarando a menina por um breve instante. Quando a sobrancelha de Anne arqueou em protesto pelo silêncio, a bibliotecária foi logo falando:

            - Eu posso dar um jeito, mas... Se não se incomoda com minha bisbilhotice... Do que se trata?

            Anne enfiou a mão debaixo do braço, puxando a carta. Deslizou-a sobre o balcão, oferecendo à bibliotecária.

            Alana pegou a folha e abriu-a, curiosa. A escrita era ruim, sem nenhuma simetria. Mas não havia um erro sequer de português. Ficou curiosa, a princípio, em ver Anne escrevendo, mesmo sem nenhuma disciplina sobre as linhas, letras tão redondas, com a caligrafia melhor do que muitas que já vira.

            Leu a carta com gosto. Quando terminou, seus olhos estavam marejados. Alana suspirou, admirada.

            - Anne, querida... Eu terei o maior prazer em te ajudar com isso... É um belo gesto.

            - Ah, eu agradeceria muito, Sra. Pupkis... Quer dizer, Alana... Faz quase dois anos que tento trazer material para surdos e cegos para nossa escola, e nada!

            Dois anos! Alana não se conteve. Envolveu Anne em um abraço íntimo, como filha e mãe. Havia apenas orgulho e admiração naquele gesto.

 

            Anne deixou a biblioteca, tateando o chão com seu guarda-chuva, cantarolando baixo, satisfeita consigo mesma por seu intento. Estava distraída em todos os seus sentidos apurados, que não percebeu a aproximação do jovem.

            Ela assustou-se quando sentiu sua mão se perdendo do cabo do guarda-chuva diante da colisão com o garoto. Anne parou abruptamente.

            - Hei! – ela chiou – Me ajude aqui!

            - O que você é...? – o garoto se calou, engolindo a ofensa – ah, você e Anne Williams.

            Ele fitou a garota por alguns segundos. “A menina cega”, pensou consigo mesmo, “a menina que vive fazendo caridade para a bibliotecária solteirona”.

            - Sim. Será que pode me ajudar? – ela se abaixou, tateando o chão.

            - Não me leva a mal... Eu estou meio ocupado, agora.

            Anne arqueou as sobrancelhas, cética. Várias ofensas sobrevoaram sua mente, todas ansiosas por serem cuspidas na cara daquele jovem pouco sensível. Ela se conteve, mantendo-se em seu perfeito estado de imparcialidade, apenas levemente impaciente.

            - Você derruba o meu guarda-chuva e ainda diz que não tem tempo para ajudar?

            - Eu não disse que não tenho tempo. Disse que estou ocupado.

            - Ah, não quer ajudar, então?

            Carl olhou de um lado para o outro, percebendo os olhares tortos em sua direção. Todos, provavelmente, pensaram a mesma coisa: Carl seria muito baixo se não ajudasse Anne. Sem discutir, ele se abaixou, pegou o objeto e estendeu-o para a garota.

            - Obrigada – ela disse, assim que sentiu a textura fria do cabo. – não doeu, doeu?

            - Tudo bem...

            Ele estava se retirando, quando Anne o chamou:

            - Hei, espera um minuto aí. – ela pediu – eu não sei o seu nome.

            - Ford... Carl Ford.

            - Não somos da mesma turma, somos?

            Ele hesitou. Por fim, aproximou-se dela.

            - Não. Tenho dezesseis, sou da turma da Brigitte, sua irmã.

            - Ah! Você é o Carl, amigo do Paul.

            Outro silêncio constrangedor. O garoto hesitou mais uma vez, mas, por fim, desistente, respondeu.

            - Éramos.

            - “Éramos...” – Anne repetiu. Não teve a intenção de parecer bisbilhoteira, mas o garoto assim interpretou.

            - Deixe isso, ok? Eu não disse nada. – pelo tom de sua voz, Anne percebera que o garoto falara mais do que devia. Impressionou-se em como uma única palavra dita poderia deixar alguém sob julgamento.

            - Tudo bem, não está aqui quem falou.

            Ela sorriu, cordialmente, e virou-se, acenando. Estava caminhando para a outra direção, quando sentiu uma mão segurando-a gentilmente pelo ombro.

            - É Serio, Williams – falou Carl – não conte o que eu disse a respeito do... “Éramos”.

            - Tudo bem. Isso não é problema meu – ela sorriu novamente, batendo levemente com a palma de sua mão sobre as costas da mão do rapaz.

            - Obrigado... Ah, vamos, eu te ajudo.

            - Não precisa...

            - Sério, faço questão. – ele a interrompeu.

            - Você não precisa fazer isso para comprar o meu silêncio.

            - Mas posso fazer isso como prova de cavalheirismo, certo?

            Ela riu, rendida. Aceitou a ajuda do garoto. Anne ignorou a primeira impressão que tivera do garoto, disposta a permitir que ele se perdoasse por aquela pequena atitude insensível.

Mas, de alguma forma, ela sentira uma imensa satisfação pela grosseria de Carl. Ele não se importava com o fato de Anne ser cega. Ele simplesmente passou por cima da compaixão, disposto a ignorar a menina cega. Em outra situação ela poderia ver aquela atitude como uma péssima qualidade. Naquele momento, no entanto, Anne ficou feliz em não ser vítima, como de costume, de reações movidas por pena. Carl era diferente das outras pessoas. Não melhor. Diferente.

            Conversaram durante cinco minutos, até a sala de Anne. No pequeno diálogo, ela já sabia que o garoto morava sozinho com a mãe e um irmão. Sabia que o garoto era uma negação total em relação ao espanhol, mas que amava matemática. Carl sabia que Anne nunca deixava o seu guarda-chuva, e ela jamais contaria o porquê.

            Eles se despediram e Carl tomou o seu caminho. Anne guardou o perfume do rapaz em sua mente que, desde pequena, lhe servira como um baú sem fundo para os mais estimados tesouros. Anne se entregou a isso sem questionar. Entrou na sala de aula. O sinal soou.

 

            Ao fim da aula, Brigitte resolvera passar pela sala de Anne. Anne ainda discutia com o professor sobre a embriologia do anfioxo, ou algo do tipo. Bree bocejou, entediada, enquanto a irmã terminava o seu questionário fervoroso.

            - Esperando alguém? – uma voz soara atrás da garota.

            Brigitte virou-se, surpreendida. Era Paul.

            - Minha irmã – ela sorriu, respondendo rápido demais. Sentiu-se patética e vulnerável, o que tentou esconder com sorriso amigável. Isso só piorou a sua situação.

            Paul era um rapaz diferente da maioria. Não seguia rótulos, nem leis, nem conselhos, não podia ser comparado a um exemplo de juventude, mas havia uma nobreza enigmática em suas atitudes com ares rebeldes. Não era tão belo ao ponto de receber os méritos de popularidade da escola. Tinha os cabelos negros e curtos, um rosto quadrado e o nariz levemente curvado, como sinal de uma queda de bicicleta, anos atrás. Paul, no entanto, tinha um poder de cativar que Bree conhecia tão bem. Por isso se apaixonara por ele. Ambos se apaixonaram um pelo outro, na verdade, isso era óbvio. Mas eram jovens, e o medo de se entregar a uma novidade dessas chegava a provocar náuseas.

            - Ah, claro – ele riu, sem saber o porquê. Ambos estavam nervosos.

            - Então, o que tem feito?

            - Ah... Bem, não tenho feito muito. Tenho praticado futebol, só. O treinador está puxando um bocado.

            - O treinador Fischer consegue ser um troglodita.

            Paul sorriu mais uma vez, concordando.

            - Então... Eu vi Anne e Carl juntos, hoje, pela manhã. – comentou Paul, abandonado seu sorriso. Sua atitude foi rapidamente captada por Brigitte.

            Bree perdeu o rubor da pele, já curiosa. Carl e Anne? Pensou ela.

            - Olha... Eu normalmente não diria isso. Carl é meu amigo. Mas ele tem se metido em problemas – disse Paul – Se souber de qualquer coisa, me avisa.

            - Ah, claro – Bree pareceu ligeiramente preocupada, embora não quisesse demonstrar – o que, exatamente, ele tem feito?

            - Ah, apenas se envolvendo com pessoas erradas. Nada de mais, vou dar um jeito nisso.

            Bree estava pronta para perguntar, quando a voz de Anne despertou-a.

            - Então, mana?

            - Ah, oi, Anne.

            - Se importa se esperarmos alguém? – pediu Anne – uma pessoa ficou de passar aqui.

            - Quem? – foi Paul quem perguntou, já pressentindo a resposta.

            - Ah, alô, Paul – Anne acenou para o nada, em direção a voz, sorrindo – um colega que conheci. Carl. Seu amigo, aliás.

            Anne se calou. Lembrara-se da conversa anterior com o garoto, do “éramos amigos” citado por Carl. Arrependeu-se do que dissera, tão rápido Carl apareceu no corredor.

            - Anne – ele chamou.

            Paul fitou o amigo de longe. Os olhares se encontraram de uma forma surpresa. Então a atmosfera pesou, como se uma densa nuvem negra tomasse conta do corredor, tornando incômodo o simples ato de respirar. Havia uma rincha ali, Anne podia sentir isso de longe.

            - Bem, acho que vou indo – falou Paul.

            - Faz bem – disse Carl, aproximando-se de Anne, e virando-se para ela – vamos?

            Anne assentiu, levemente incomodada. Bree, no entanto, parecia ainda menos a vontade com a situação. Em outra situação, ela poderia se conter. Mas, naquele momento, seu instinto fraterno gritou mais alto, protetor.

            - Aonde vocês vão, Anne? – perguntou a irmã mais velha, cautelosa.

            - Nós vamos...

            - Ela vai me dar umas aulas de espanhol – falou Carl, interrompendo Anne em sua resposta meio atrapalhada – preciso de ajuda nisso.

            - Oh... – Bree queria dizer mais, queria intervir. Mas, racionalmente, não havia motivos para impedir. Além do que Paul dissera sobre Carl, não havia nada que o condenasse.

            Bree, Paul e Carl sempre foram da mesma turma, embora ela não fosse tão íntima do amigo de sua secreta paixão colegial.

            - Ah, ok. – disse Bree, por fim.

            Paul adiantou-se. Não percebeu quando ficou entre Carl e Anne. Estava com um olhar nervoso, ou preocupado. Talvez ambos.

            - Olha, Carl... Não vá causar problemas para outras pessoas, ok?

            - Problemas? – Carl debochou – você não sabe o que é problema, cara! Fica longe, pode ser? Já há muito tempo você não age como meu amigo.

            - Há muito tempo você não é o mesmo, chapa – retorquiu Paul.

            - Talvez você precise sair da minha frente, chapa – o tom da voz de Carl era desafiador. O amigo percebeu a ameaça, mas não cedeu.

            - Carl, não seja estúpido! Eu sei o que tem feito, não envolva mais ninguém nisso!

- Rá! Agora quer dizer que está espionando a mim! Qual é o seu problema, Paul?

- Carl... – Anne tentou segurar o braço do rapaz, mas, em algum lugar, sua mão se perdeu no ar.

- Eu sei me virar, Paul. Faça-me um favor, mantenha distância!

Paul simplesmente lançou suas mãos sobre o colarinho do amigo, segurando-o com ímpeto. Anne sentiu o movimento brusco, tentou se afastar, mas estava sendo pressionada contra a parede, literalmente.

- Paul, não seja estúpido! – esbravejou Bree – Anne, vem pra cá...

- Eu não... – Anne tentou desvencilhar, mas era impossível. Havia duas muralhas – Paul e Carl – a sua frente.

            Os olhos dos rapazes se cruzaram em um desafio tentador. Carl, em seu íntimo, não queria brigar com o amigo, mas estava louco para que Paul iniciasse um movimento mais comprometedor. “Eu não tive escolha”, ele alegaria.

            - Ou você começa a se corrigir, Carl! Ou eu faço isso, na marra!

            - Eu não tenho tempo pra você. Anne e eu temos mais o que fazer.

            - Anne não pode fazer nada por você, idiota!

            - Todos somos úteis de alguma forma... Já você, Paul...

- Anne é cega, você percebeu! Não se aproveite dela!

            Talvez não fosse a coisa mais sábia a ser dita, Paul logo percebeu.

            - Paul! – chiou Bree – eu não acredito que disse isso!

            - É, Paul! – riu Carl, vitorioso – Isso não é coisa que se diga! Você é um cara muito indelicado!

            Anne estava no meio da discussão. As vozes passavam pela sua mente como projeteis perfurantes, rasgando seu raciocínio. Então ela se viu perdida. A voz da irmã se alterou, gritava palavrões direcionados a Paul, que tentava se explicar e ofender o amigo ao mesmo tempo. Carl ria e tentava colocar as irmãs contra seu ex - melhor amigo.

            Ela estava perdida. Os sons se confundiam e, pela primeira vez em muito tempo, ela se sentiu desorientada, nem mesmo o seu bom e velho guarda-chuva conseguiria tatear a direção certa.

            Num ímpeto, Anne empurrou Paul para o lado, passou por entre ele e sua irmã, começou a correr como se não houvesse nenhum obstáculo a sua frente. Como se nada pudesse segurá-la.

            Nem os gritos de Bree, nem mesmo as advertências de Carl, nada disso poderia segurá-la. Anne queria apenas sumir, desaparecer daquele lugar.

            “Anne é cega, você percebeu”. Aquelas palavras ecoaram nos corredores de sua mente. A resposta da irmã foi ainda mais dolorosa: “Paul! Eu não acredito que disse isso!”. Aquilo a incomodou. Muito. Anne não podia mais sustentar sua fortaleza psicológica. Seu corpo se perdeu naquela velocidade ensandecida, correndo sem nenhuma direção. Apenas correndo.

            Naquele momento, ela sentiu seus pés pisarem em falso. O chão desaparecera nos degraus da escada. Ela sentiu seu corpo tombar, impotente. Depois da pancada na cabeça, sua mente se apagou, assim como os gritos.


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