Umbrellas Secret escrita por Pedro_Almada


Capítulo 2
Um presente em boa hora




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Um presente em boa hora

 

18 de Março de 1994

 

            A chuva não era torrencial, mas forte o suficiente para apavorar qualquer criança perdida.

Nesse momento Alguém, com tinta e papel nas mãos, decidiu escrever uma história. Essa história, o momento em que uma menina sem visão se perdeu de sua mãe, e encontrou um segredo, que carregaria pelos próximos anos.  

           

Anne não conseguia se lembrar bem. Num segundo sua mãe estava puxando-a pelo braço no meio da multidão, no parque movimentado. No instante seguinte, os dedinhos da garota haviam se perdido no mar de pernas. Verônica olhou, atônita, de um lado para o outro, gritando o nome da filha.

            Tinha apenas oito anos, a experiência como garotinha cega ainda era meio apavorante. Anne continuou caminhando, tentando alcançar a voz da mãe, que parecia se afastar a cada momento. Segurando firmemente o saco de pipocas, a garotinha caminhou a passos firmes, com a mão direita sempre a frente servindo de auxílio, tateando pernas e buscando espaço entre a multidão, alheia à menina cega perdida no meio da noite nublada, em um parque de diversões itinerante.

            Em algumas situações isso poderia soar assustador, desesperador, na verdade. Mas para Anne era diferente.

            A menina engoliu o choro. Apertou o saco de pipocas no peito, concentrando-se no cheiro de queijo derretido e sal. Estava do lado do carrinho de pipocas minutos antes, ao lado da mãe. Tentou imaginar-se segurando os dedos cuidadosos de Verônica, tentou se lembrar como era não estar sozinha. Havia medo, mas não era pavor. Era uma fagulhazinha no peito, um receio de ficar tempo demais sem segurar uma mão familiar. Mas ela sabia, não ficaria só por muito tempo. A vida lhe ensinara a ter fé, mesmo sem ver, ela cria. Esse era o seu troféu.

            Seus minúsculos pezinhos protegidos por sapatilhas de borracha protestavam sobre as discretas poças que se formavam com a chuva serena, umedecendo os cabelos castanhos de Anne. Não sabia por onde ia, mas estava decidida a continuar, até que alguém notasse. Os sons começaram a diminuir, abafados pela chuva que aumentara repentinamente. Era hora de correr.

            Anne correu sem pensar ou se preocupar no que poderia haver a sua frente. A fagulha de medo queimou mais forte, era difícil se concentrar enquanto as pesadas gotas caíam em sua testa. Atenta ao som dos sapateados da chuva, Anne notou que, bem perto dali, m telhado estalava com o impacto da água. Era um abrigo, enfim.

            Guiada pelo som continuou sua caminhada, até que as gotas já não acertavam mais o seu rosto. Estava abrigada, afinal. Cansada de esperar, Anne tateou a parede, sentando-se em um degrau. Não sabia ao certo onde estava, mas ali estava em segurança, até que alguém notasse uma criança perdida.

            Naquele momento, aquele Alguém, o dono da tinta e do papel, começou a escrever em linhas perfeitamente retas a história de Anne Sue Williams.

            A garota ouviu um som baixo, como um rangido, algo metálico girando e oscilando, movimentando as poças no chão. Ouviu passos em sua direção. Não sentiu medo. Ficou apenas curiosa, era um som novo, algo que ainda não tinha ouvido antes.

            Uma senhora baixinha e gorda com o rosto semi-coberto por um xale azul e um longo vestido cinza, que chegava a molhar a barra nas poças de chuva, empurrava um carrinho de supermercados velho, com as rodinhas enferrujadas e já muito gastas. Era dali que vinha o som, o rangido inusitado.

            - Olá? – chamou Anne, apurando os ouvidos – é você, mamãe?

            Os passos continuaram em sua sutil aproximação, o som das rodinhas diminuindo cada vez menos, à medida que a velha reduzia sem ritmo. Anne permaneceu imóvel, atenta. Sem medo, mas cautelosa.

            - Não é minha mãe. Tenho certeza – ela disse – pode dizer quem é?

            Silêncio. As rodinhas cessaram sua caminhada. A senhora baixinha e roliça encarou a menina.

            A senhora tirou de seu carrinho um tamborete de madeira podre, com lascas de madeira encrespadas. Ela ajustou o assento e sentou-se, tirando do bolso uma garrafa de água mineral, com menos do que duas goladas de água.

            - Quer um pouco? – falou a senhora, pela primeira vez.

            Sua voz era gasta, mas desacostumada, como se há muito tivesse desistido de falar, de ouvir a própria voz. Desarrolhou a garrafa, despejando um pouco do líquido na língua seca.

            - Desculpe-me – falou Anne, ainda cautelosa – Eu... Não enxergo... Muito bem.

            - É água – falou a senhora, compreendendo o que dizia a criança – mas tudo bem se não aceitar. Tenho pouca, e, sinceramente, preferia não dividir.

            Anne sorriu, não sabia bem o porquê, mas, geralmente, a franqueza lhe soava como uma espécie de piada inocente.

            - Tudo bem. – falou Anne – Eu tenho pipoca... Você aceita? Não me importo de dividir.

            A senhora fitou o saquinho de papel dobrado nas mãos da menina, com manchas de gordura na borda. Inesperadamente o cheiro de queijo derretido invadiu a atmosfera.

            - Você... Não vai comer? – murmurou a senhora – está mesmo me oferecendo? Oferecendo a uma pessoa que não conhece?

            Anne deu de ombros.

            - De um jeito ou de outro, eu não iria comer mais.

            Sem esperar por respostas, Anne estendeu a mão em direção à voz da velha, esperando que ela recebesse o saquinho de pipocas.

            Então ela sorriu. A senhora sorriu docemente, um brilho de gratidão nos olhos miúdos e negros, enfeitando um rosto surrado e cansado. Ela recebeu o pacote, submergiu sua mão áspera no saco, emergindo com um amontoado de pipoca banhada em queijo. O cheiro estava ótimo. Mas a senhora comia com certa civilidade, como se fosse apenas um capricho.

            - O queijo não é muito bom para o meu coração, sabe? – disse a senhora – mas esse cheirinho está irresistível.

            Anne sorriu, mais uma vez.

            - Não se preocupe. Mamãe sempre me diz que a felicidade não tem contra-indicação. Não sei bem o que significa, mas acho que funciona nesse momento.

            A velha riu amorosamente, como uma avó orgulhosa de sua neta mimada. Naquele momento, todo o resquício de um remoto medo havia se esvaído. Eram duas amigas, ou quase isso, compartilhando o que tinham, sorrindo sem nenhum motivo, apreciando (pelo menos uma delas) as gotas de chuva que batiam inutilmente no chão de concreto.

            - Sabe, menina. – A velha mastigou a pipoca, pigarreou e continuou – Você tem um belo sorriso.

            - Mamãe sempre diz isso.

            - Sua mãe conversa muito com você, pelo que parece.

            Anne assentiu, satisfeita, orgulhosa de si mesmo e de seu intento como filha exemplar.

            - Gostaria de conhecê-la um dia. Pena que não poderei – disse a velha, sem entusiasmo.

            - E por que diz isso?

            - A chuva já vai passar. – o olhar aluado da senhora se perdeu no seu negro e nublado – é melhor você encontrar sua mãe. Ela deve estar preocupada.

            - Mamãe deve estar me procurando.

            O silêncio se materializou mais uma vez. A velha misteriosa levantou-se lentamente, foi em direção ao seu carrinho e, após alguns minutos vasculhando, encontrou o que queria.

            - Ora, veja só o que eu encontrei... Ah, perdão. Você não pode ver, certo? – confirmou a senhora – mas sei que vai gostar.

            De repente a atenção de Anne se prendeu totalmente à voz daquela mulher.

            - Gostar de que?

            A velha riu, talvez de si mesma, talvez da ingenuidade da criança, era difícil dizer.

            - Tome.

            Nas mãos da senhora, um belo guarda-chuva vermelho, praticamente intacto, girava entre seus dedos, suas “barbatanas” abertas rebatendo as gotas de chuva que ricocheteavam no chão e respigavam na direção delas.

            - É um presente. Para dias como esse – falou ela – um guarda-chuva.

            Anne sorriu, tocando a lona lisa e macia como seda, úmida, aberta como asas de morcego.

            - Aqui, sinta esse botão... – os dedos da mulher conduziram os de Anne até um pequeno botão de ajuste, enfeitado com uma imitação barata de pérola – apertando aqui, ele se abre. Se você puxar aqui... Ele se fecha.

            A velha guiou o caminhar dos minúsculos dedos de Anne pela haste do guarda-chuva, ensinando como abrir e fechar. Anne repetiu o movimento algumas vezes, só para garantir que não esqueceria. Em questão de segundos, suas mãos conheciam o objeto intimamente.

            - Você aprende rápido – falou a senhora do carrinho de compras – acho que esse lhe servirá muito bem.

            A velha soltou uma outra risada branda, satisfeita consigo mesma.

            - De que cor? – a pergunta de Anne interrompeu a risada.

            - Perdão?

            - A cor do guarda-chuva. – repetiu ela – qual é a cor do guarda-chuva?

            A mulher pegou o seu banquinho e, puxando-o para perto da garota, sentou-se ao seu lado.

            - Vermelho.

            Anne ficou pensativa.

            - Vermelho... Como é o vermelho?

            A senhora piscou duas vezes, maravilhada. A menina sonhadora permanecia com um belo sorriso fixo no rosto, ansiosa diante da expectativa. A senhora pensou um bocado, medindo as palavras e ensaiando a explicação mentalmente. Ou talvez soubesse exatamente o que dizer desde o início, e queria apenas aumentar a expectativa da criança.

            - Sabe o som das gaivotas no fim do dia? Quando os pescadores guardam suas redes e os barcos retornam à enseada? O sol começa a baixar... O calor diminui... Então parece que a sua pele fica seca, mesmo que não tenha tomado banho de mar. E aí tem aquela sensação de que tudo vai ficar bem, ou, se não ficar, você ficou feliz por tentar da melhor forma. Esse é o vermelho... É assim que o vejo, pelo menos.

            Anne permaneceu em silêncio, seus ouvidos fixos no som misterioso, na voz da mulher desconhecida.

            - Vermelho é bom... – disse ela enfim – gosto do presente. Obrigada... Ah, desculpe, não sei o seu nome, dona...

            Não houve resposta. O Som das rodinhas retornaram e, gradativamente, começaram a se distanciar.

            - Hei, senhora... Aonde a senhora vai?

            - Um outro dia, Anne – murmurou a velha, satisfeita – não se preocupe. Não estou tão longe quanto você pensa. Ah, mais uma coisa. Esse nosso encontro... Um segredinho nosso. - dizendo isso, a senhora deu uma piscadela, mesmo sabendo que a menina nao seria capaz de ver. Olhou para cima, sorriu para o negro céu e continuou seu caminho, as rodas sempre ranjendo.

            Anne não se lembrava de ter dito o seu nome a ela. Mas antes que pudesse fazer qualquer pergunta, sua atenção sofrera um desvio, ouvindo a voz em completo desespero da mãe. Haviam- na encontrado. Mas Anne sabia que esteve em segurança, todo esse tempo.


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Notas finais do capítulo

reviews xD