Umbrellas Secret escrita por Pedro_Almada


Capítulo 1
Fale-me do Azul




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Fale-me do Azul

 

25 de junho de 2001

 

            O céu se tingira de um laranja ameno, com manchas avermelhadas contornando as nuvens que cobriam o pôr-do-sol. O som das gaivotas reinava sobre todos os outros tons na praia alva, seguindo em harmonia com os discretos ruídos das ondas batendo contra os cascos de pequenas embarcações. A luz rala do poste perto de um pequeno quiosque iluminava um par de sandálias surradas trazidas pela corrente do mar e, a poucos metros dali, sentado em um tronco, um cão cor de caramelo parecia fitar o horizonte com algum interesse, como se nada mais importante pudesse existir naquele momento.

            As formas das nuvens se dissipavam, formando imagens efêmeras, algumas mais significativas do que outras. As redes lançadas pelos pescadores boiavam, naufragando aos poucos, engolidas pelo mar, prontas a cumprir o seu papel. Recolher o alimento, buscar ao fundo de toda aquela paisagem. Embora fosse algo capitalista, acompanharia perfeitamente uma pintura a óleo, tecendo a parte mais pura de cada ser, homens ligados ao mundo natural, dividindo seu espaço com a natureza para obter o sustento, como se tudo ali, toda a tinta dentro daquela moldura, fosse a coisa mais valiosa.

            Como é belo o poder de transformar uma paisagem em palavras! Elas tomam cores e forma, sentimentos e emoções, e nos tragam em nostalgia, nos induzem a pensar e nos colocam à sua mercê. O efeito belo, simples e igualmente imperial de nos conduzir a um lugar onde nunca estivemos.

            A tarde logo chegaria ao seu fim e, quando o sol se retirasse por completo, as estrelas tomariam conta do céu para cumprir a sua meta secular, sem queixas, nem cobrança. Apenas boiar no firmamento negro, suspensas no nada, seguras, longe de nossas mãos. Sim, elas estariam seguras.

            Para muitos, essas palavras poderiam não fazer nenhum significado. Mas para Anne era diferente. Era cega. Toda a sua percepção se resumia a isso: palavras e sons, o clima sob a pele, o vento nos cabelos. Era a sua forma especial de “enxergar”.

            Sentada sob um rochedo, sorria toda vez que as ondas quebravam aos seus pés, respingando em seu rosto a água salgada com gosto de entardecer. O cheiro de fim de expediente lhe trazia boas sensações, expectativas de que o melhor estava por vir. Em suas mãos, um guarda-chuva vermelho girava com maestria, como se, a cada giro, o mar obedecesse ao movimento.

            Apenas quinze anos. Era assustador como ela sorria com naturalidade, espontaneamente. A escuridão em seus olhos não a apavorava, ela era guiada por um misterioso sentido, algo que as pessoas não poderiam notar, mesmo que a observassem durante todo o dia. Um sorriso perpétuo parecia ter sido costurado em seu rosto de forma gentil, com uma agulha feita dos próprios raios de sol. Poeticamente piegas para quem nunca havia enxergado aquele sorriso transformador.

            - Hei, Anne! – uma voz gritou do calçadão, há uns dez metros do píer – Já está escurecendo!

            Anne virou-se em direção a voz.

            Sempre está, irmã. Sempre.

            Ela usou a ponta do guarda-chuva para se apoiar sobre um rochedo, deslizou as mãos no lodo, desequilibrou por uma fração de segundo, mas não caiu. Saltou sobre a menor pedra, que seus pés conheciam muito bem, e, finalmente, alcançou a areia fria com as pontas de seus dedos.

            - Anne! – gritou a irmã, finalmente alcançando-a – Quantas vezes preciso dizer? Não quero você em cima daquelas pedras. Você pode cair, e eu posso não estar perto para ajudar.

            A irmã mais velha segurou Anne pelo braço.

            - Bree, você é sempre tão protetora – queixou-se Anne – eu mereço meu espaço, certo?

            - Você pode ter o seu espaço quando chegarmos em casa. Vamos, antes que o papai queime o peixe que coloquei no forno.

            Anne sentiu a mão de Bree guia-la pela trilha de areia. Mais velha, com dezessete anos, Brigitte cumpria com o papel ideal de mãe, mas havia desaprendido a ser simplesmente irmã mais velha.

            Eram muito parecidas. Os mesmos cabelos longos e castanhos, exceto a parte em que Bree sempre os usava em forma de tranças. Os olhos compartilhando do mesmo tom azul-acinzentado, os lábios finos. A maior diferença era o nariz de Anne, fino e delicado, como o da mãe, enquanto Bree tinha o seu um pouco mais adunco, provavelmente herança do avô judeu, um velho estereótipo vivo.

            - Acho que vai chover – comentou Anne quando alcançou a calçada, a cabeça em direção ao céu, mesmo que não pudesse ver nada além do véu negro que lhe cobria a visão.

            - Não seja boba. O mar está calmo, e fez sol o dia inteiro. O que te faz pensar isso?

            - Não sente o cheiro? – perguntou Anne – Ah, claro que não. Você só enxerga.

            As duas riram, mas Bree manteve, em seu íntimo, essa verdade. Anne sabia, embora ninguém entendesse como, o que se passava a sua volta, mais do que qualquer pessoa, e isso intrigava a irmã. “É assustador”.

            Anne girava o guarda-chuva no pulso, cantarolando baixo, lembrando-se do som das gaivotas. Bree ouvia atentamente, admirando a afinação impecável. Era um dom. Entre tantos outros escondidos em Anne Sue Williams.

            Não demorou muito para chegarem. Perto da praia, a poucos metros da areia branca, uma casa branca de dois andares, com arbustos rasteiros e dois coqueiros ao flanco, se erguia discretamente, em um bairro residencial à beira-mar, onde pescadores, empresários solteiros e toda a sorte de pessoas adorariam morar.

            - Acho que o peixe queimou, Bree. – comentou Anne, rindo.

            - O que é, agora? Sente o cheiro de queimado? – exasperou-se Brigitte.

            - Não. Você gastou dez minutos de casa ao píer. Levamos quinze minutos para chegar aqui. Soma-se isso ao tempo em que já estava no forno quando você saiu. Matematicamente falando, é tempo o suficiente para preparar o peixe. E queimá-lo, é claro.

            Anne gargalhava, divertida, enquanto Bree corria com urgência em direção a casa, batendo a porta da frente e gritando “Burra! Burra!”.

A irmã mais nova não precisava de guia em sua cidade. Conhecia cada degrau, cada declive e todas as deformações do passeio. Com a ajuda de seu guarda-chuva, caminhou até o jardim, entrou cantarolando.

 

            O jantar estava posto. O queijo da pizza escorria pelas bordas e a ruga de frustração na testa de Bree crescia discretamente, enquanto seu pai tentava salvar qualquer parte do peixe.

            - Pai, o senhor é um ótimo pescador – falou Anne, apalpando a mesa até encontrar um copo – mas, tenho que dizer. Essa coisa de peixe não é um talento seu, ham?

            - Eu sou bom com a rede, querida. Não com o forno.

            - Pai, senta logo – pediu Brigitte – Venha, vamos dar graças pelo Rony’s Pizza e esquecer peixe por hoje.

            Loui Williams era o tipo de pai exemplar. Consertava a torneira da cozinha, o chuveiro, entre outras coisas. Preparava a ceia de natal e ação de graças (apenas a decoração), mas, quando se tratava de cozinha, ele meio que era um pescador de merda, com o perdão da palavra.

            Jantaram como sempre, os três. Rindo, relembrando bons momentos na casa do campo, quando Verônica Sue Williams ainda era viva, quando a família ainda tinha uma mãe que se preocupava com a pequena Anne e a crescidinha Brigitte. Para Anne era fácil falar da mãe, já falecida, o que intrigava o pai, que nunca segurava uma lágrima com a simples pronúncia do nome da esposa.

            A pizza foi devorada em questão de minutos. Loui já estava lavando os pratos, enquanto Bree e Anne balançavam na rede da varanda, nos fundos da casa, comentando sobre o longo dia que tiveram.

            - Paul não quer nada comigo, Anne. Não adianta tentar.

            - Não seja pessimista – respondeu, pousando a cabeça no ombro da irmã mais velha – eu sei que ele gosta de ver. Precisa ouvir como a voz dele fica pesada quando está perto de você. Acho que ele pensa muito antes de falar, como se não quisesse dizer nenhuma besteira. Aposto meus olhos nisso.

            Bree sorriu, fitando a irmã com aquele olhar tenro, amável. Sim, ela acreditava na irmã, pois já presenciara várias vezes, suas deduções se confirmando. Não era um simples sentido apurado pela perda da visão. Era um dom.

            - Como sabe diferenciar essas coisas, Anne? Quer dizer, as pessoas são tão confusas pra mim. Eu nunca sei quando “sim” quer dizer “sim”, ou “não” quer dizer “não”. Tem alguma técnica.

            - Eu não sei – Anne admitiu – acho que não tem uma resposta.

            - Garota, você é estranha.

            Ela riu.

            - É. Eu sei.

            Ambas ficaram em silêncio por algum tempo, até que uma nova dúvida invadiu a mente de Bree. Decidiu perguntar, escolhendo bem as palavras.

            - Anne... Você é forte. Sabe disso, não sabe?

            - Eu? Forte? – ela pareceu confusa – o que quer dizer?

            - A forma como você... Fala da mamãe. Não dói em você, como dói em mim, ou no papai. É como se... Como se, pra você, ela nunca tivesse partido.

            Anne piscou algumas vezes, absorvendo as palavras da irmã. Suspirou, sentindo o frescor da noite, pensou e, por fim, falou.

            - Pra mim, ela nunca partiu. Claro, isso é apenas uma sensação – murmurou.

            - Essa não é mais uma daquelas conversas bregas suas, ou é?

            - Não, Bree – riu a irmã – não é. Mas, você sabe... Eu nunca vi o rosto dela, nem mesmo o seu ou o do papai. Crescer sem essa coisa de enxergar me ensinou algumas coisas, sabe... Mamãe, pra você, eram os “cabelos louros, o rosto rosado, o sorriso fino”, como o papai sempre dizia. Mas, para mim, ela era o perfume de dálias, misturado ao cheiro de orvalho, era a voz suave, o toque macio. Quando ela se foi, descobri que havia um pouco dela no perfume das dálias que cresciam no campo, perto da praia. Descobri que, assim como sua voz, o vento assobiava com gentileza perto do rochedo e, da mesma forma, as gotas do mar eram frios e macios, como os dedos da mamãe.

            - Uau... Você nunca tinha me dito isso.

            - Eu não vou a esses lugares para me encontrar com ela. Sei que mamãe não está em nenhum lugar. Não aqui.

            - Acha que ela pode nos ouvir? – perguntou Bree, jogando os braços por cima dos ombros da irmã.

            Anne acenou negativamente com a cabeça.

            - Não. Mas é melhor assim. Não quero que ela ouça as besteiras que você vive dizendo.

            - Hah.Hah. Você é hilária.

            Elas trocaram sorrisos por um segundo, e voltaram sua atenção ao céu escuro, e ao mar que começava a se jogar de um lado para o outro de forma violenta.

            - Vou prestar mais atenção ao perfume, da próxima vez – Bree fez uma anotação pessoal, mas garantindo que sua irmã também ouvisse.

            - Bre... Me diz uma coisa. – Anne ajustou as pernas sobre a rede, puxou a coberta de lá até os ombros e abraçou seu guarda-chuva – como é o azul?

            A irmã mais velha pareceu surpresa.

            - Mas, Anne, eu já te disse umas, sei lá, mil vezes.

            - Eu sei... Mas, da primeira vez, o azul era úmido como o mar. Da outra vez, era seco e gelado como o vento no céu. Eu quero entender, sabe. Fale-me do azul, por favorzinho.

            Anne sorriu irresistivelmente, derrubando qualquer tentativa de Bree se esquivar da entediante conversa.

            - Ok, ahn... O que eu posso dizer... Caramba, azul é azul, horas.

            - Vago, vago, vago...

            - Ta bom, ta bom. – Bree suspirou.

            Azul. O que poderia ser o azul? Naquele momento, foi como se Brigitte aprendesse um pouco mais sobre o mundo misterioso de Anne. Ela não poderia dizer, “da cor do mar”, ou “da cor do céu em dia sem chuva”, como se costuma falar com crianças. Não podia apontar para alguma coisa e dizer, “aquilo é azul”. Não. Para alguém cego, as cores eram como o pote de moedas de ouro no fim do arco-iris. Inalcançáveis, uma idealização. Apenas um pensamento subjetivo.

            - Azul... – Bree repetiu – Tudo bem, ouça... Sabe agora? Nesse momento? Agora está azul. Azul é paz. Tem cheiro de calma, sabe?

            - Tem gosto de queijo?

            - É – riu Bree – Tem sim.

            O silêncio reinou por mais alguns minutos, enquanto ambas admiravam o azul em que viviam naquele momento. Por fim, Anne suspirou, sorrindo para si mesmo.

            - Eu gosto de azul. Azul é bom.

            - Azul eram os olhos da mamãe.

 

            Anne acabou adormecendo, enquanto Bree passava o tempo contando as estrelas, perdendo as contas e começando tudo outra vez. Logo, as estrelas começaram a sumir, e a brincadeira ficou mais fácil.

            Bree desistiu de contar estrelas quando elas se esconderam atrás das nuvens, e a chuva começou a cair.


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