Ser ou não ser escrita por Eica
Estávamos agora em outubro. E outubro é época de Halloween. De descontos nos produtos da loja. E época de decoração. Ajudei Marcos a pendurar alguns enfeites. E como éramos os mais altos da livraria, ficamos encarregados deste serviço. Depois de terminarmos de enfeitar a loja, revisamos os enfeites para ver se estavam em ordem.
Marcos soltou um riso.
— Ontem, dei uma olhada no meu jogo do Warcraft. Meu avô entrou no meu quarto e quis saber o que eu estava jogando. Expliquei meio “por cimão”. Ele achou bem interessante, mas não quis aprender a jogar. Ele mal consegue mexer no mouse! Disse que prefere xadrez e quebra-cabeça.
— Seu avô curte xadrez?
— Ele foi bicampeão quando era jovem.
— Sério? Que legal!
— Quando eu jogo com ele, sempre perco. Ele não me deixa nem ao menos ser café com leite.
Ri.
— Ele é muito bom.
Fernanda aproximou-se.
— Ficou ótimo, meninos. — Elogiou ela, sorridente.
— Você tem medo de altura, Marcos? — Indaguei.
— Não, por quê?
— Porque eu tenho.
— Mas você subiu tão destemidamente na escada.
Ri.
— Pois é. Eu consigo disfarçar.
Marcos afastou-se de nós e foi até o fundo da loja. Fernanda continuou perto de mim. Quando a olhei uma última vez, lembrei-me de algo.
— Como é mesmo o nome daquela outra fanfic que você me falou? Dos gêmeos.
— “O outro”. Adoro aquela fic. Está interessado em ler? Posso te mandar o endereço pelo Face’.
— É bem curta a fic, né?
— Só tem três capítulos, mas garanto que vale a pena.
Quando virei o rosto na direção da entrada, vi uma pessoa familiar cruzá-la. Hoje, tal pessoa não usava seu uniforme, mas uma blusinha rosa de alcinha e short jeans. Uma bolsa bem grande pendia em seu ombro direito. Fernanda não a viu.
— Fernanda, posso fazer uma pergunta?
— Faça.
— Eu sou assim tão bonito quanto dizem?
— É, claro que é. — disse ela, sorrindo. — Ainda duvida? Não se olha no espelho?
— Sim, mas... está vendo aquela moça de blusinha rosa e bolsa bege?
Quando ela a viu, contei quem era.
— Vixi! — Exclamou. — Ela veio por sua causa. De novo! Vou me afastar para ela ficar mais à vontade.
— Faz isso não, mulher!
Fernanda se afastou de mim com um sorriso debochado. Nervoso, dei umas voltas pela livraria, fingindo não ter visto a moça. Mas ela, é claro, me viu.
— Oi. — Disse, ao se aproximar.
— Oi.
— Trabalhando bastante?
— Por enquanto o movimento está baixo. — Respondi, com simpatia.
— Hoje é meu dia de folga. — Comunicou, com um grande sorriso.
— Que bom! Passeando?
— É.
Procurei meus colegas de serviço com prudência, para que ela não percebesse. Vi que Marcos e Nikki estavam ocupados e Fernanda conversava com Estela. Bruna olhou para os livros na prateleira diante de nós enquanto eu pensava no que deveria fazer: se me afastava ou continuava ao lado dela. Resolvi me afastar cautelosamente, mas quando me movi para dar o primeiro passo, Bruna disse:
— Há quanto tempo trabalha aqui?
— Desde a inauguração.
— Sério? Eu também comecei a trabalhar aqui desde que inaugurou o shopping. Estranho nunca ter te visto.
Sorri, sabendo a razão disso.
— Há algum livro que você me recomendaria?
— O que você gosta de ler? Poesia, romance, fantasia, ficção...?
— Ficção. O último livro que li foi “Os nove”.
— Hm... Então você pode gostar de “Dança dos espíritos”, que inclusive é do mesmo autor de “Os nove”.
Levei-a até o livro em questão. Ela pegou-o e o folheou.
— Não sabia que era do mesmo autor. — Disse. — Uma amiga havia me falado sobre “Os nove”. Foi ela quem me emprestou o livro para ler. Ela curte um suspense. Achei o final bastante surpreendente.
— E o DVD que você comprou? Já assistiu?
— Já! — Exclamou, com os olhos brilhando. — Foi muito divertido. Você já tinha assistido ao filme?
— Sim, no cinema.
Ela voltou a olhar para o livro. Depois o devolveu à prateleira.
— Embora eu trabalhe aqui no shopping, vou muito pouco ao cinema. — Comentou, sem me olhar.
— Eu também. Acho que é culpa da vontade de querer ir embora logo.
Bruna riu.
— Ou é a falta de uma boa companhia para ir com a gente. Ou é esta mesma companhia que pode não gostar do mesmo filme que a gente.
— Também tem essa questão.
Enquanto ela olhava para outros livros ao redor daquele que havia devolvido à prateleira, ocupei-me a fazer outra coisa, não muito longe de onde ela estava para não ficar aquele momento constrangedor.
— Já vou indo.
— Tudo bem. — Sorri.
Vi-a andar devagar em direção à porta. Vi que mexeu na bolsa por um instante, virou, voltou-se rapidamente, vindo em minha direção. Estendeu-me o folheto.
Olhei para ele, confuso, depois para ela.
— O meu telefone está marcado em cima.
Ela apenas me deu um sorriso encabulado e saiu a passos apressados da livraria, sem ao menos dar-me chances de despedir-me ou mostrar qualquer reação. E, de fato, como constatei ao olhar para o folheto, logo acima dele, haviam marcado com caneta azul um número de celular.
Repentinamente, senti alguém pegar na minha cintura. Era Nikki.
— O que ela queria?
Mostrei o folheto.
— Batons? — Perguntou, perplexa. — Ela veio falar sobre batons para você?
— Não! Ela deu o número do celular dela.
Nikki começou a rir num ânimo descontrolado. Isto chamou a atenção dos outros dois fofoqueiros da loja. Souberam, não por mim, mas pela tagarela e inconveniente da Nikki, que a moça me dera o seu número.
— Ela está a fim de você! — Disse Marcos, fazendo um sinal de orgulho.
— Viu quantas vezes mexeu no cabelo? — Avisou Fernanda.
— Viu a forma como sorria? — Disse Nikki, ainda.
— E o jeito como mexia o corpo?
— Vocês ficaram reparando esse tempo todo? — Indaguei, pasma.
— Vai ligar para ela? — Indagou-me Marcos.
— Não! Nem a conheço.
— Mas ela quer te conhecer. Veio aqui para te dar o número dela. — Disse Nikki.
— Está sugerindo que eu ligue? — Perguntei, incrédula. — Mulheres não me interessam.
— Para você, não dá para ficar com homem. Você mesmo disse. — Argumentou Marcos.
— Continuam sugerindo... não vou ligar para ninguém. — Assegurei. — Alguém pode jogar esse folheto para mim?
— Espera! — Exclamou Marcos, enquanto eu amassava o papel. — Não posso ficar com o número dela?
— Você quer? — Indaguei, surpreso.
— Me deixa incluí-la no Whats’. — Disse ele, pegando o papel amassado da minha mão.
— Vai mesmo? — Indagou Nikki, incrédula.
— Ela está a fim do Bernardo. Não de você. — Lembrou Fernanda.
— Eu sei...
Ele realmente pegou o número dela e depois amassou o folheto para jogá-lo fora.
— Por que fez isso? — Questionei-o, confusa.
Marcos volveu-me um sorriso aberto cheio de malícia. O que me deixou bastante curiosa. Curioso. Após uma hora mais ou menos, Estela chamou-me um momento. Fui até o estoque.
— Como você está? Tudo bem? — Indagou-me.
— Está tudo bem.
— Precisando de alguma coisa?
— Não. No momento, não.
— Eu conheço um livro que talvez lhe interesse. É sobre um transexual que conta sua vida, desde a tenra idade já à vida adulta. É uma narrativa interessante e emocionante. Se quiser, eu posso arranjá-lo para você.
— Ah, obrigado.
Fiquei sem graça. É claro que achei sua atitude muito bonita, embora ela não tivesse entendido o que se passava comigo. Mas tudo bem. Ela só queria me ajudar.
— Você teve o apoio de sua família?
— Minha família é complicada. — Disse, evasiva.
— Oh. Bom, se precisar de alguma coisa, pode contar comigo. Sempre gostei de você, Rafaela. Digo, Bernardo. — Disse ela, sorrindo-me ternamente. — Você sempre foi muito esforçada. Diferente de alguns por aqui que parecem estar passeando ao invés de trabalhando.
Soltei um risinho, imaginando quem seriam esses funcionários que só passeavam.
— O que eu puder fazer por você... pode falar.
— Claro. Obrigado.
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