Ser ou não ser escrita por Eica


Capítulo 5
Capítulo 5




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Fernanda começou o dia seguinte reclamando de uma espinha que estava prestes a “nascer” no seu queixo. Ficou o dia inteiro passando a mão na cara lamentando o quanto ficaria feia na próxima semana. Marcos passou apuros por não ter trazido dinheiro para carregar o celular. Ficou sem internet e isso foi completamente difícil para ele. Na hora do almoço, tive que dividir meu fone de ouvido para ele poder escutar música, porque, além de estar sem internet, ele não havia carregado seu aparelho.

            Ficamos sentados um ao lado do outro, numa das mesas da praça de alimentação, observando as pessoas passar. Cada um com um fone no ouvido. Ouvimos um pouco de rock clássico e depois terminamos o dia ouvindo um Nerdcast.

            Tive de ir ao banheiro, e desta vez, entrei primeiro para que ele não me incomodasse com aquela história de usar o mictório. No fim do expediente, quando nós quatro caminhávamos em direção a uma das saídas do shopping, Nikki comentou que os pais do namorado tinham uma chácara em Araçoiaba, e que ele pretendia fazer uma festinha.

— Queria convidar vocês.

— Olha! Que boa amiga! — Disse Fernanda, dando-lhe um abraço rápido.

— Tem que levar alguma coisa ou só a vontade de beber e vadiar? — Perguntou Marcos.

— Vai ter muita gente? — Indagou Fernanda.

— Os amigos dele. Eu chuto umas vinte pessoas. Por aí. É só um chute. E lá tem piscina. Quem quiser levar toalha, biquíni, sunga... vocês vão?

— Que dia vai ser?

— Sábado. O próximo.

— Benzadeus! Beleza. — Exclamei, satisfeito. — Não vou ter nada para fazer mesmo.

            Todos aceitamos o passeio. Na terça-feira, quatro dias antes da grande festa, Marcos teve a audácia de perguntar, no serviço, se minhas pernas estavam peludas.

— Sim, elas estão peludas. — Respondi, erguendo uma perna de minha calça para mostrar-lhe.

— Ótimo. — Disse ele, após checar. — Sério que você se incomoda tanto com pelos?

— Bom, não no inverno. — Confessei. — No inverno, como só usava jeans, eu meio que relaxava nessa parte.

— Sério? — Indagou, curioso e surpreso. — No inverno você deixa as pernas peludas?

— Não era seeempre... chega uma hora em que você se incomoda. Mas falando sério. Se você visse uma mulher toda peluda parecendo um urso de pelúcia...

            Ele rachou de rir.

—... ia olhar para ela?

— Ia. O estranho também chama atenção.

            Olhei-o demoradamente. Ele virou a face para mim ao perceber.

— Já deixou a barba crescer para ver como fica? — Perguntei.

— Eu já deixei, lembra?

— Sim, mas fica maior do que estava daquela vez?

— Fica. Fiz isso quando tinha vinte e dois, se não me engano.

— Fica parecendo um viking? — Indaguei, sorrindo.

— É, é estilo viking.

— Que demais!

— Gosta de homem com barba?

— Acho que sim.

— Quando eu ainda estava no colégio, eu era gordo e deixava a barba estilo Moisés...

— Repartida ao meio?

            Botei a mão em frente à boca para não gargalhar na frente de todos os clientes que estavam dentro da livraria. Marcos não riu junto comigo.

— Quis dizer que estava bem volumosa. Foi uma piada.

            Não consegui parar de rir.

— Ah, vai se ferrar!

— Desculpa, desculpa! Mas... — após me recuperar: — Você era gordo mesmo? Não consigo te imaginar acima do peso.

— Acima do peso é ser delicado. Eu era gordo. Gordo. Aí eu decidi mudar radicalmente quando cansei das piadinhas. Na época do colégio mesmo eu emagreci mais de doze quilos.

— ‘Tá de sacanagem! Uau!

— É. — afirmou, sorrindo. — Raspei a barba, deixei o cabelo crescer... ninguém acreditou que o gordinho com os dedos salgados era eu.

— Resumindo: você fez sucesso com as meninas?

— Arranjei uma namorada.

— Sério? Que bacana! Perder peso é uma desgraça. É uma das coisas mais chatas que tem. Quando eu era mulher...

— Aaaah, não vai me dizer que você se achava gorda, porque gorda você não era.

— Eu tinha uma pancinha. — Disse, tocando no meu abdômen só para frisar a pancinha de que estava falando.

— Onde? Onde que você tinha pança?

— A roupa encobria. — Expliquei.

— Você só tem pança quando nem roupa encobre. Como eu, por exemplo. Eu era alto e gordo. Parece que a banha era muito bem distribuída, mas não.

— Uma vez minha professora de biologia disse que os pais são os filhos no futuro. Se seu pai tem barriga, você tem muita chance de desenvolver uma quando mais velho.

— Pelas fotos que vi do meu pai, ele não era gordo. Nem minha mãe. Meus avós também não são gordos. Meu avô é mais magro que minha avó. E olha que eles comem muito. Se bem que eles fazem caminhadas todos os dias de manhã.

— Verdade?

— Eles vestem suas roupas de caminhada: camisetas largas, tênis confortáveis, bermudas, e vão para as ciclovias caminhar.

            Para não passar apuros, comprei uma bermuda e uma regata para ir à chácara. Um dia antes da festa, coloquei uma toalha dentro da minha mochila, desodorante, uma cueca e outra bermuda, caso fosse necessário. Já no sábado, tomei um banho e me aprontei antes de sair. Fiz um lanchinho leve e saí de casa com o carro. Como ia dar carona a Fernanda, peguei-a em frente a uma praça — local onde também nos encontraríamos com Marcos, de moto. Estacionei o carro do lado da guia e Fernanda entrou. Vestia um short bem curto e uma regata.

— ‘Tá cheiroso! — Exclamou.

— É o perfume.

— Já estou usando meu biquíni. — Disse ela, mostrando a alça que era amarrada atrás do pescoço.

            Quando ela levantou a regata, pude perceber que o biquíni mostrava muito!

— Seus pais deixam você sair só com isso, menina?

            Ela deu uma batidinha no meu braço. Apesar de pequeno, o biquíni era muito bonito, com uma estampa super colorida e alegre. Mas eu não o usaria se fosse mulher.

— Eu me depilei ontem. — Disse ela, virando-se, tentando colocar-se de joelhos no banco.

            Espantosamente, ela começou a abaixar o short jeans.

— Será que ficou bom? Quer dar uma olhada?

            A maluca perdeu o equilíbrio das pernas e acabou tombando na minha direção. Resultado: seus peitos me sufocaram. Ela apoiou-se no meu banco para se levantar.

— Me desculpa!

— Olha, olha!! Já estão se pegando! — Disse Marcos, que chegara naquele momento.

            Parou a moto do lado da minha janela. Infelizmente ele vira o momento constrangedor em que eu era sufocado pelos peitos da Fernanda. Ela, fazendo-lhe uma careta, voltou a sentar-se, mas antes levantara novamente o short.

— Vocês estavam se pegando mesmo? — Indagou ele, todo sorridente.

— Não! — Dissemos, ao mesmo tempo.

— Só queria mostrar uma coisa pro Bernardo. Coisa de mulher.

— Queria mostrar os mínimos detalhes dos seus peitos para ele? — Riu.

            Eu, com a cara vermelha, voltei a colocar o cinto de segurança.

— Vamos logo, minha gente? Não pretendo chegar tarde.

            Marcos abaixou a viseira do seu capacete. Vestia uma calça e jaqueta. Nas costas, carregava uma mochila. Liguei o carro e começamos nosso passeio até Araçoiaba, que era encostada com Sorocaba. Como Marcos tinha moto, podia se enfiar no meio dos carros e ficar na nossa frente, mas às vezes ficava para trás de propósito só para provocar e eu provocava de volta.

— Lindo cabelo, gata! — Gritei para ele, fazendo-o mostrar-me o dedo do meio.

            Chegamos em frente à chácara, cujo portão estava aberto. Já havia cinco carros estacionados no gramado da frente. Estacionei próximo a eles. Marcos estacionou um pouco mais perto da casa. Desliguei o motor. Fernanda saiu do carro primeiro que eu. Analisei a chácara. Ficava do lado esquerdo do terreno e do lado dela ficava um campinho de futebol. Pelo visto a casa era toda circundada por uma varanda.

            Não havia ninguém na varanda da frente. Olhei para Marcos. Ele tirava o capacete. Colocou a mochila no chão e despiu a calça e a jaqueta. Enfiou-as na mochila. Ficou só de bermuda e regata, como eu. Quando nos viu se aproximar, sorriu maliciosamente. Já imaginando que ia tirar sarro de nós, tirei sarro dele primeiro:

— Sua avó deixou você sair de casa?

— Já sou crescido.

            Dei risada. Procuramos Nikki e Alexandre adentrando na casa pela porta da frente. Impressionei-me com o interior dela, que era muito chique por sinal. A sala de estar tinha lareira, TV de tela plana, sofás de couro, uma mesinha de centro de vidro e decorações bastante elegantes. Através de um corredor amplo, chegamos à cozinha, mas antes de chegarmos à cozinha, espiamos os quartos cujas portas estavam abertas. Todos os quatro dormitórios tinham camas de casal, cômodas, aparadores e cortinas nas janelas. Todos os cômodos eram pintados com cores vibrantes.

            Na cozinha, havia um armário que cobria toda uma parede. O armário não tinha portas e gavetas. Todos os utensílios ficavam à vista. No centro da cozinha, havia uma mesa. Em frente à mesa, uma geladeira. Do outro lado da cozinha ficava a pia, o fogão e o garrafão de água mineral.

            Quando cruzamos a porta dos fundos da cozinha, demos de cara com uma varanda e a alguns metros da varanda, a piscina. Ao lado da piscina, havia uma casinha com varanda. E nesta varanda estavam Nikki, Alexandre e alguns de seus convidados. Estavam sentados numa mesa, conversando e bebendo. Haviam colocado um rádio sobre a pia. O cheiro de churrasco já começava a elevar-se pelo ar, junto com a fumaça.

            Pelo falatório, estavam todos muito animados. Fomos para lá. Como Nikki havia descrito, a chácara tinha até mesmo um lago que podia ser usado tanto para nadar quanto para pescar e ficava muitos metros depois da piscina, lá embaixo.

            Cumprimentamos os oito desconhecidos que já haviam chegado. Segundo Alexandre, chegariam muitos mais. Ofereceram-nos cerveja que estava dentro da geladeira ali da cobertura. Marcos pegou uma para ele e passou uma para mim. Antes que eu pudesse dizer que não queria, ele deu-me uma piscadela. Nikki desprendeu-se do namorado e encarregou-se de mostrar toda a chácara.

            Descemos até o lago, circundamos a piscina, passeamos pelo gramado de futebol e depois andamos pela varanda da casa até encontrarmos uma mesa de bilhar. Como não tínhamos a intenção de “socializar” naquele momento, Marcos e eu resolvemos tirar uma partidinha.

            Nikki ficou um tempo conosco, depois voltou para o fundo da chácara. Fernanda nos fez companhia.

— Meu taco é mais potente que o seu. — Zombei, toda vez que eu conseguia fazer, na sorte, uma tacada profissional.

            Fernanda ria e Marcos revidava toda vez que ele conseguia me ultrapassar. Após muitas partidas de bilhar, sentamos em cadeiras na varanda de frente para a piscina. Até aquele momento, eu não havia tocado em minha cerveja. Não havia nem mesmo aberto a latinha. Quando a olhei pela última vez, perguntei a Marcos porque havia me oferecido cerveja.

— Vai te deixar com mais cara de homem. E vai te deixar muito mais se souber segurá-la direito.

            Mostrou-me como eu devia segurar a latinha e me aconselhou a não fazer cara feia toda vez que eu bebia. Houve um momento em que fiquei sozinho com Fernanda, porque Marcos sumiu do nada. A essa hora do dia, a casa já estava lotada de amigos e amigos de amigos de Alexandre. A música estava alta e as primeiras carnes assadas já haviam sido servidas. Não comi absolutamente nada e não tinha muito interesse em comer. Pelo menos não naquele momento.

            Algumas meninas já estavam passeando pela chácara só de biquíni. Outras já haviam mergulhado. O ambiente já havia ganhado mais vida. Quando Fernanda saiu de perto de mim para ir até Nikki, dei uma voltinha básica pela casa e deparei-me com algo que eu não esperava: numa das varandas, peguei Marcos beijando uma moça. Minha primeira reação foi afastar-me discretamente, fingindo não ter visto nada. A segunda foi xingá-lo mentalmente. Depois, lamentar o que eu vivia lamentando.

            O dia havia perdido a graça depois do flagra. Retornei à varanda de frente para a piscina e sentei-me na mureta para ficar bem longe daquela terrível visão. Bebi uns goles da cerveja, para tornar meu dia ainda pior e amargo. Nikki apareceu. Parou do meu lado.

— Se divertindo?

— É bem legal aqui.

— Não foi isso o que eu perguntei. — Disse ela, rindo.

— Cadê a Fernanda? Não estava com você?

— Deve ter ido ao banheiro. Ela ficou um tempinho comigo e depois sumiu.

— Já tinha vindo aqui antes?

— Não. É minha primeira vez. — Disse ela, sorrindo. — Faz pouco tempo que eles compraram a chácara. O Alex disse que estão pensando em alugá-la para festas. Essas coisas.

— É uma boa.

            Após uma pausa, analisei a roupa de Nikki. Estava usando uma saia e nada por cima, apenas um biquíni.

— Vai nadar?

— Hmmm, não sei. Cadê o Marcos?

— Beijando. — Respondi, suspirando.

— Que?

— Está beijando uma menina por ali. — Apontei com o dedo para a direção em que estavam.

— Mas já?

— Demorou, até.

            Observei o pessoal na piscina. Depois olhei para o lago. E para as árvores que se avizinhavam do cercado da propriedade. Nikki afagou as costas da minha mão direita. Olhei-a. Ela me mandou um sorriso de ternura.

— Não é o fim do mundo. — Expliquei-lhe, quando compreendi o que aquele olhar significava. — Eu vou superar. Podemos superar tudo. Até mesmo eu.

            Naquele instante, duas meninas se aproximaram de nós. Trocaram algumas palavras com Nikki. Aparentemente se conheciam bem. Uma delas resolveu puxar-me para a conversa, perguntando meu nome. Conversamos nós quatro até que Nikki se afastou, me deixando sozinho com as duas. Não falei muito, mas mostrei-me bastante interessado no que tinham a dizer.

            Após uns minutos, uma delas foi para a piscina. Levantei-me da mureta, dizendo para Maria — a que ficou comigo — que eu daria uma volta pela chácara.

— Posso ir com você? Também quero esticar minhas pernas.

            Consenti. Caminhamos um pouco pelo gramado. Descobri por nossa conversa que ela trabalhava numa loja de roupas, mas que fazia faculdade de arquitetura. Mostrei-me curiosa sobre seus estudos e ela me falou, bastante animada, sobre como era frequentar a faculdade e como eram suas aulas e seus colegas de curso. Terminamos nosso passeio numa das varandas — a oposta da qual Marcos estava. Havia duas redes ali. Fui em direção da mais próxima. Sacudi-a, para que não acabasse dando de cara com um inseto ou aracnídeo. Sentei carregando minha latinha de cerveja que estava ainda um pouco cheia.

            Fiquei um pouco incomodado quando Maria se sentou do meu lado, afinal, fazia muito calor. Não bastasse isso, virou o rosto na minha direção umas cem vezes. Olhei-a muito pouco enquanto conversávamos sobre todos os assuntos corriqueiros e banais. No momento em que virei meu rosto para fitá-la pela última vez, bastou um movimento pequeno dela para seus lábios colarem nos meus.

            Naquele instante, meu sangue congelou e eu virei pedra. Maria, uma desconhecida para mim, que eu nunca vi na vida, havia acabado de me dar um beijo! Não sei o que eu fiz para ela achar que tinha essa liberdade. Só estava sendo simpática com ela desde o início, mas isso não queria dizer que queria ficar com ela.

            Algum gesto de minha parte a fez interpretar mal as coisas. Mantive meu olhar esbugalhado durante o beijo que não durou muito. Completamente nervosa e pasma, tentei mascarar meu desconforto num sorriso, assim que ela se afastou e sorriu.

            Voltou a ajeitar-se na rede.

— Tem Whats’?

— O que?

— Tem Whatsapp?

— Não sei.

            Ela riu.

— Não sabe se tem Whats’?

— O que?

            Riu de novo.

— Ham... Devo ter. — Disse, nervosíssima, segurando minha latinha. — Não sei.

— Seu celular está com você? Assim a gente vê se você tem Whatsapp.

— Hmmm... Não. Não está aqui comigo. Eu deixei dentro do carro.

            Bebi um pouco da cerveja, querendo apagar o beijo da minha memória. Ela havia metido a língua na minha boca, tentando encontrar a minha pelo caminho. Nunca me senti tão lésbica na minha vida!

— Se eu tivesse caneta e papel, anotaria o meu número para você me adicionar.

            Certamente que ela acabaria dando um jeito, com as palavras, de me fazer pegar meu celular no carro para adicioná-la. Minha sorte foi que minha salvação apareceu na varanda naquele exato momento. Minha salvação, quando me viu, sorriu e caminhou até nós.

— Você está aí. — Disse Fernanda. — Queria saber se não vai entrar na piscina. Não quero entrar sozinha.

— E a Nikki?

— Se enfiou em algum lugar. Não acho ela. Bom, eu não procurei muito. Vamos nadar um pouco?

— Não posso simplesmente mergulhar as pernas na água? — Disse, levantando-se da rede, completamente aliviada por poder me afastar de Maria.

— Contanto que fique um pouco na piscina comigo... é chato ir sozinha. Não conheço ninguém.

            Antes que eu pudesse avisar Maria que estava indo com Fernanda, ela se levantou da rede também e começou a conversar com Fernanda e a caminhar junto conosco. As duas deixaram os shorts e regatas sobre a mureta da varanda e caminharam de biquíni até a piscina. Caíram na água. Eu apenas me sentei na beirada, mergulhando as pernas na água como disse que faria. Coloquei minha latinha de cerveja do meu lado direito.

            Nadaram próximas de mim, conversando um pouco, sorrindo, ajeitando os biquínis. Subitamente, alguém se sentou do meu lado esquerdo. O todo sorridente Marcos havia aparecido, também com uma latinha de cerveja na mão.

— Você está de moto. Quer continuar bebendo? — Indaguei, olhando-o rapidamente.

— Sou bem resistente e essa é minha segunda latinha.

            Havia outras pessoas na piscina. O sol não estava tão devastador, mas meu cabelo estava quente.

— Não vai entrar também? — Perguntou-me Marcos.

— Sei lá. Mesmo sem peitos, parece que vou ficar exposta, sabe? — Confessei, baixinho.

            Marcos riu e se levantou subitamente.

— Vamos lá dentro comigo? Quero pegar outra latinha.

— Outra? — Perguntei, levantando-se em seguida.

            Susto! O safado do Marcos me empurrou para a água. Enquanto meu corpo submergia, ouvia as risadas dele e de Fernanda. Ao emergir minha cabeça, olhei para Marcos. O arteiro se sentara novamente na beira da piscina e ria.

— Um dia eu dou o troco. Pode esperar. — Jurei, enxugando o rosto.

            A água da piscina batia no meu tórax.

— Pode me derrubar. Não tem problema. Estou preparado. — Me chamou.

            Como já estava na água mesmo, nadei até ele e apoiei os braços no piso ao seu lado.

— Assim é bem melhor, né, Bernardo? — Disse Fernanda, se aproximando. — Nesse calor é bom se refrescar.

            De fato, eu me refrescara, mas não do jeito que eu gostaria.

— Tira essa camisa. — Disse ele, ainda com um olhar espertinho na cara.

— Está bom assim.

— Ajudem ele, meninas. Ele é tímido.

            Ao virar o rosto para trás, Fernanda e Maria já se abeiraram. Pegaram na minha regata e começaram a erguê-la. Não tive escolha a não ser tirar a regata e ficar com o tórax e abdômen à amostra. Fingi não me ter importado (para não dar uma de maluco) e sei que não era para tanto, mas convivi mais de treze anos com um par de seios. Quando eu olho para baixo, é como se eles ainda estivessem ali.

            As meninas começaram a rir, animadas. Peguei minha regata e a coloquei na beira da piscina. Após três minutos desconfortantes, quando eu já não era mais o assunto principal, tornei a sentar ao lado de Marcos. Inclinei o corpo na direção dele e falei, em tom confidencial:

— Me zoe de novo e eu juro que te dou um beijo na boca na frente de todo mundo.

            Ele virou o rosto surpreso e risonho para mim.

— Você não faria...

— Provoque que eu faço numa boa.

— Olha só, você...!

            Sorri triunfante.

— Isso é golpe baixo.

— Ainda estou meio sensível. — Confessei, em tom baixo. — Minha percepção está meio zoada.

            Quando Marcos se levantou para ir à cozinha, aproveitei a deixa para ir junto e me afastar de Maria. Fernanda e ela, aliás, parecera não ligar quando nos afastamos. Lá na cozinha, Marcos jogou fora sua latinha de cerveja e fuçou a geladeira. Encostei-me à mesa, enquanto observava. Não entrei molhado na casa. Minha bermuda estava mais seca que meus cabelos.

— O que está procurando?

— Qualquer coisa.

— Está com fome? Não comeu carne?

— Não estava a fim. Está quente demais para comer comida quente. Prefiro algo mais gelado.

            Não achou nada. Resolveu tomar um gole de um suco de caixinha que estava na porta da geladeira. Pegou um copo no armário e o encheu.

— Seus avós tinham uma chácara, né? — Indaguei, me sentando numa cadeira.

— Tinham. — Disse ele, devolvendo a caixinha de suco na geladeira, após me oferecer um pouco.

— Venderam?

— Para comprar uma casa. Eu fui lá quando era menor. Eles tinham pé de limão, pé de goiaba, pé de laranja, abacate... Muita coisa. Para uma criança, era um paraíso. Eu subia nas árvores e fazia a festa comendo as frutas.

            Marcos se sentou também. Espreguiçou-se. Colocou o cotovelo sobre a mesa e apoiou o queixo na mão. Olhou para mim depois de um tempo olhando para a mesa. Ao olhar para a direção da porta — atrás de mim — virei levemente e vi Fernanda adentrar na cozinha.

— É verdade, Rafa? — Perguntou ela, excitadíssima.

— Que?

— É verdade que você e a Maria se beijaram? Ela disse que beijou.

— Essa... Por essa eu não esperava! — Gargalhou Marcos. — Sério? Você levou a sério ser homem, hein?

            Corei.

— Não quis beijar ninguém. — Expliquei, irritada. — Acontece que estávamos conversando. Eu na maior inocência. E ela me beijou.

— Se você ainda fosse mulher, ia ser interessante ver as duas se beijando. Ela tem um corpo excelente para os meus padrões. — Debochou ele.

            Olhei para Fernanda, ignorando o engraçadinho.

— Não quero nada com ela. Fui pego de surpresa.

— Ela pediu o seu telefone. Eu não falei porque não sabia de cor. E não ia dar sem saber se podia.

            Virei-me para Marcos, que ainda ria um pouco.

— Acha minha situação engraçada, seu cabeludo impertinente?

            Depois me voltei para Fernanda.

— Não dê o telefone para ela. De jeito nenhum. Se não quiser desapontá-la dizendo que não estou a fim dela, arranje uma desculpa se ela insistir no assunto com você.

            A chácara era espaçosa, mas não consegui fugir de Maria em certos momentos. Não voltei para a piscina. Fiquei na sala com Marcos e Fernanda. Vimos Nikki poucas vezes. Ela tinha suas outras amizades, além disso, provavelmente queria ficar perto do namorado. Ligamos a televisão e ficamos reclamando da programação.

— Por isso não assisto mais televisão. — Comentou Marcos. — A TV não é mais como era antigamente. Antes os programas valiam à pena.

            Antes de escurecer, eu já procurei Nikki para avisar que estava de partida. E como Fernanda não queria ficar só, pediu se eu não podia levá-la embora. Marcos acabou indo no embalo e se despediu.

            Enfim, tirando o fato de terem me beijado, de terem me envergonhado na piscina e de eu ver meu amor secreto beijando outra mulher, a festa foi realmente animada e divertida. Fernanda pediu que eu a deixasse em frente ao terminal, mas como sou gente boa, levei-a até sua casa. Ao voltar para a minha, fiz um jantarzinho caprichado: macarronada e pizza. Assisti a uns filmes e depois me deitei na cama para descansar corpo e mente.

            No domingo, Marcos e Fernanda me lembraram, e contaram a Nikki, o que havia me acontecido durante a festa na chácara. Durante as risadas e comentários maldosos, perguntaram se eu havia gostado do beijo, e fui honesta:

— Foi uma das coisas mais estranhas que já me aconteceu. A primeira delas, é claro, foi ter-me transformado em homem.

— Ela não era de se jogar fora. — Reconheceu Marcos.

— Ultimamente tenho sido muito o centro das atenções, não podem mudar o disco?

— Não é todo dia que alguém muda de sexo. — Disse Fernanda.

— Já falei que não gostei do que me aconteceu. Estão satisfeitos?

            Pararam e não voltaram a me lembrar do beijo. Eu mesma me fazia lembrar, já que foi um choque e tanto quando aconteceu. Após todos termos almoçado, Estela chamou-nos rapidamente no fundo da livraria.

— Há uma coisa que preciso falar para vocês quatro. Ontem me perguntaram sobre um rapaz que trabalha aqui na livraria. — Nos entreolhamos. Imediatamente, comecei a congelar. — Perguntaram o nome do tal funcionário que dizem trabalhar aqui. Não foi uma só pessoa quem me indagou sobre ele. Vocês sabem que minha visão não está boa, por isso não tem como identificar o rapaz que dizem trabalhar aqui no período da manhã. Não me refiro a Marcos, mas a outro rapaz...

— É melhor você contar, Rafa. — Disse Nikki.

            Sacudi a cabeça, me negando, enquanto todos olhavam para ela e depois para mim.

— Não tem outro jeito. — Admitiu.

— O que a Rafaela tem a ver com isso? — Indagou Estela, confusa.

— Conta, Rafa. Por favor. A gente te ajuda.

            Marcos sacudiu a cabeça para mim, como se não houvesse alternativa. Fernanda fez o mesmo. Eu sabia que este momento chegaria. Em algum momento chegaria, mas não esperava que chegasse tão cedo. Os três foram me encorajando, enquanto eu fitava o olhar confuso de Estela. Tive, sem ter o que fazer, respirar fundo e abrir a boca.

— Eu sou homem agora. — Confessei, suando. — Me transformei em homem da noite para o dia. Desculpe não ter falado antes. Eu fiquei com medo de perder o emprego.

            Encaramos seu olhar perdido.

— Como...? Rafaela...?

— Ela mudou de sexo. — Acrescentou Nikki. — O rapaz que o pessoal do segundo turno viu é ela.

— Mudou de sexo? Como assim mudou de sexo?

            Repentinamente, Estela exclamou um longo “Ah!” de compreensão.

— Você mudou de sexo! Meu Deus, Rafaela! Nunca imaginei que você fosse trans!

— Não! — Retruquei. — A natureza me mudou porque ela quis! Mas, por favor, Estela, não conte a ninguém.

— Deus!

            Ela se aproximou de mim e apalpou meu rosto.

— Eu tenho dois primos gays. Eu entendo dessas coisas. Você estava tomando hormônios?

            Marcos levou a mão à boca para não rir.

— Por que não me disse antes? Bem que desconfiei que algo estava errado, mas não sabia o que. Mas não se preocupe, Rafaela. Quero dizer, qual o seu nome agora?

— Bernardo.

— Que nome bonito. — Disse ela, me sorrindo. — Combina com você. Impressionante como mudou! Quando foi a cirurgia?

            Olhei para meus amigos. Nikki deu de ombros.

— Não estou me sentindo muito seguro para falar agora. — Foi só o que consegui dizer para me livrar dos “detalhes” que não existiam.

— Desculpe. Eu não quis ser indiscreta. Como eu disse, meus dois primeiros são gays. Eles têm muitos amigos gays, lésbicas e transexuais como você. Eu li muitas matérias e livros sobre o assunto. Você não tem com que se envergonhar. — Disse ela, pegando na minha mão e me olhando com ternura. — Se precisar de alguma coisa, não hesite em me procurar. Pode contar comigo.

            Agradecido, voltei ao trabalho. Nem eu e nem meus amigos esperávamos essa reação de Estela e embora ela não tenha compreendido o que realmente aconteceu comigo, foi justificável a confusão pela loucura da história. Senti até mesmo um alívio por termos esclarecido as coisas, sabia que em algum momento me descobririam e eu não estava errado.

            Algo bom aconteceu. Pelo menos hoje, Estela mostrou-se mais solícita à minha pessoa e eu me senti mais livre para trabalhar sem medo de nada. Em dado momento do dia, Nikki se aproximou de mim para conversar.

— Por que não pensamos nessa desculpa antes?

— Não sei, mas ainda é uma mentira. Não sou transexual.

— Mas falar que você mudou de sexo do nada soa muito mais como uma mentira. Quem iria acreditar além da gente? Pelo menos seu emprego está a salvo.

— É. Fico feliz por isso.

            Nikki levou a mão ao meu rosto. Sorrimos.

— Você não me contou o que ficou fazendo na festa. — Disse a ela, interessado.

— Fiquei com o Alexandre a maior parte do tempo. A chácara estava cheia de mulheres de biquíni. Não ia deixar...

— Marcando território? — Olhei-a, espantado. — Isso não faz o seu estilo.

            Ela fez uma careta de desdém.

— Algumas amigas dele são muito vagabundas.

            Dei risada.

— O Alexandre sempre me pareceu um cara inteligente. Eu vejo as coisas que ele posta no Facebook. Ele não me parece o tipo de cara que dá corda para vagabunda, como você diz.

— Hm.

— Além disso, vocês vão se casar!

            Foi a vez dela rir.

— Não, não vamos.

— E já pensou sobre o apartamento?

— Tenho pensado. Tem hora que quero morar com ele e tem hora que não quero. Não sei. Se eu disser que não, ele vai ficar decepcionado.

— E a relação pode ficar estranha.

— Exatamente.

— Então more com ele. Mostre a mesma empolgação que ele mostrar quando ele tocar de novo no assunto. Vocês formam um casal muito bonito.

            Ela agradeceu, com um sorriso cheio de dentes.


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