Ser ou não ser escrita por Eica


Capítulo 4
Capítulo 4




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Horas depois, fui trabalhar com o pior dos ânimos. Nikki percebeu que eu estava cabisbaixa e perguntou qual era o problema.

— Estou me sentindo meio sozinha. Sozinho. Quero dizer, vocês três estão me ajudando e tudo mais, mas eu falo de sozinho emocionalmente falando. Digo...

— Ooooh! Entendi.

            Abraçou-me rapidamente.

— Queria te ajudar. — Disse, com olhar piedoso.

            Trabalhei com aquele sentimento ruim no peito, de que, estando do jeito como eu estava, com corpo de homem, jamais arranjaria companhia. Não ajudava o fato de meu objeto de afeição estar tão perto e tão inacessível. Também ajudava menos ainda quando o via conversar com outras moças. E dentre todas elas, Ágata, a mais bonita, era quem me tirava do sério. Se como mulher ele não dava a mínima para mim, como homem... Deus do céu! Nem tem como comparar!

            Por uma estranha coincidência, Ágata apareceu mais cedo na livraria, o que não era o seu costume. Mas não usava uniforme, o que significava que estava passeando. No momento em que a vi adentrar na livraria, consegui esconder-me atrás de uma prateleira. Se ela me visse usando o uniforme, certamente que perguntaria a Estela sobre minha pessoa, e como Estela não faz a mínima ideia de que eu sou homem, esconder-me era um caso de vida ou morte.

            Por conta de minha tristeza psicológica, tencionava almoçar com Nikki, mas Marcos me chamou para ir com ele. Sem escolha, segui-o pelo shopping, enquanto olhava para o horário no celular. Ele também mexia no seu aparelho e evidentemente, pelos sons, estava no Whatsapp. Naquele instante, tive vontade de afastar-me dele. De fugir furtivamente de sua vista. Quando me sorriu e quis mostrar um vídeo, olhei de esguelha para seu celular e mal produzi palavra. O vídeo era engraçado, mas me forcei a não rir.

            Ele espreguiçou-se, levantando os braços.

— Hoje quero comer um bife e tomar um refri’ bem gelado.

            Olhei para as lojas ao nosso redor, evitando olhar para a cara dele. Minha tristeza mesclou-se ao meu ódio pela natureza desgraçada ter-me transformado em homem. Enquanto almoçávamos na praça de alimentação, imaginava como conseguiria sobreviver a isso tudo. Coloquei os fones nos ouvidos e escutei algumas músicas, enquanto Marcos fazia o mesmo.

            Ele chegou a me corrigir algumas vezes, quando me movimentei de modo nada másculo.

— Vou precisar ir ao banheiro. — Informei, ao terminar de comer.

            Levantei-me com minha bandeja, levei-a até o balcão do restaurante, depois de ter jogado meu lixo fora, e tornei a sentar em frente a Marcos. Ele ainda comia (quando se come mexendo no celular, demora-se uma vida para terminar de almoçar). Uns minutos depois, fomos ao banheiro. Chegando lá, percebemos que estava vazio.

            Marcos aproximou-se do mictório e indicou-o para mim.

— Não. Assim vai me deixar traumatizado.

— Vamos lá. Só quero te ajudar. E se algum dia...

— Continue insistindo nisso que eu te agarro agora mesmo!

            No mesmo instante, Marcos arregalou os olhos e correu para uma cabine. Fechou-se lá dentro e ficou. Notei que ele havia se escondido, pois um senhor e um adolescente haviam entrado no banheiro exatamente na mesma hora em que eu proferia aquelas palavras homossexuais. Não me importando com seus olhares indagadores e duvidosos, saí do banheiro, esquecendo-me da vontade de usar o banheiro.

            Voltei para a praça de alimentação e parei num lugar onde Marcos poderia me enxergar se saísse do banheiro. O senhor e o rapaz saíram antes dele. Quando Marcos me viu, aproximou-se rapidamente.

— Ficou maluco? — Exclamou, revoltado.

— Aaaaah! Vocês homens são tão idiotas. — Retorqui, começando a andar.

— Você não sabe a pressão que a gente sofre. — Disse ele, ainda muito agitado.

— Pressão? — Olhei-o, indignada. — Você não faz a mínima ideia do que é pressão.

— Vamos mesmo discutir nossas diferenças agora?

— Não. — Respondi, retomando meu humor. — Porque não há o que discutir. Nós mulheres somos superiores.

            Ele riu.

— Acha que não? Não só somos superiores como manipulamos vocês. Vocês só têm uma cabeça e ela não costuma ser usada para pensar.

            Marcos riu ainda mais.

— Que preconceito!

— Não, não. Vocês têm outra cabeça sim. Mas ela só funciona em modo pré-histórico.

            Ao terminar de gargalhar, ele disse:

— Não vá contando vantagem. Você é homem agora e querendo ou não, suas duas cabeças vão começar a funcionar como manda a natureza.

— Minha mente ainda é de mulher. — Disse, quando chegamos à escada rolante.

— Mas sua outra cabeça não.

            Encarei-o, semicerrando os olhos.

— Te odeio.

            Ele gargalhou.

— Vamos voltar.

            Quando Fernanda e Nikki haviam saído para almoçar e só estávamos Marcos, Estela e eu na livraria, alguém se aproximou de mim pela esquerda enquanto eu organizava alguns livros numa prateleira. Olhei para o lado, já que a aproximação da pessoa provavelmente queria dizer que estava precisando de meu auxílio como vendedor.

            Primeiramente por causa de seu uniforme todo preto, e depois por causa de seu cabelo, é que reconheci a moça da loja de perfumes e cosméticos.

— Oi.

— Oi! — Respondi, com a mesma educação e simpatia.

— Onde ficam os DVDs?

            Mesmo achando curioso que ela não os tenha encontrado — já que a palavra DVD está escrita na parede em letras pequenas o bastante para um gigante ler — ainda assim indiquei-lhe o local e ela se afastou.

            Assim que terminei meu serviço, dei umas voltas pela livraria bastante calma. Vi que Marcos mostrava uns aparelhos de celular para um homem lá na frente. Uns minutos mais tarde, a moça da loja de cosméticos aproximou-se de mim novamente, para avisar que ia levar um DVD. Fui com ela até o caixa.

            Estela havia desaparecido dali. Provavelmente estava dentro do estoque. A moça deu-me o dinheiro para o pagamento da mercadoria.

— É a primeira vez que entro aqui. — Comentou ela, observando o interior da loja. — Não sabia que vendiam tanta coisa.

— Aquela também foi a primeira vez que entrei na sua loja. — Menti. Se não me engano, eu já havia entrado lá, mas na época em que eu ainda era mulher, então...

— Qual o seu nome?

— R... Bernardo.

            Por educação, perguntei o dela.

— Bruna. — Respondeu, toda sorridente.

            Seus cabelos claros estavam soltos. Seus olhos claros eram realçados por lápis e os lábios brilhavam por causa do brilho labial. Entreguei-lhe o troco e o DVD, já dentro da sacola. A moça despediu-se e saiu.

            Antes de sairmos do serviço, Nikki perguntou se não podia passar em casa. Fomos ao mercado e compramos algumas tranqueiras para comer. Chegamos em casa. Coloquei alguns itens na geladeira e pedi-lhe que ficasse à vontade, enquanto eu tomava banho. Já vestida com uma roupa mais confortável, fui até a cozinha onde Nikki já havia colocado água para ferver.

            Compramos pão de batata, pão de queijo e roscas de chocolate. Nikki fez chá enquanto eu, café. Ela se sentou em frente à mesa e colocou açúcar em sua xícara enquanto eu terminava de coar o pó do café.

— Sabe o que o Alexandre falou para mim? Que estava guardando dinheiro para dar entrada num apartamento.

— Ah, é? Que legal!

— Ele estava guardando dinheiro há três anos! Três anos e não me falou nada!

            Ri. Peguei o café quente da leiteira e o botei sobre a mesa. Sentei-me em frente à Nikki. Coloquei café na minha xícara e adocei.

— Sabe o que isso quer dizer?

— Que ele estava querendo fazer surpresa? — Arrisquei, pausadamente.

— Exatamente! Ele mesmo me contou que juntou um dinheiro considerável durante esses três anos. E sabe por quê?

— Hmmm, deixa ver se eu adivinho... — falei, com um pão de queijo na mão. — Vocês já namoram há anos... Ele começou a juntar dinheiro para um apartamento... é óbvio que ele quer morar com você.

— Exatamente!

— Por que essa cara de indignação?

— Ora! Dá até para pensar que ele quer casar comigo.

— Talvez só queira morar com você.

— Isso é quase casamento.

— E você não quer?

            Ela mordeu um pedaço de seu pão de batata antes de responder.

— Não sei... quando ele me falou que já tinha dinheiro para dar entrada num apartamento, ele parecia tão feliz...

— E isso não é ótimo? Isso não demonstra o quanto ele quer dar continuidade à relação?

            Mordi meu pão enquanto olhava para o rosto de Nikki. Agora parecia agoniada.

— É que eu não sei se estou pronta para isso. O que você faria no meu lugar?

— Sei lá. Você é quem sabe. O namoro é seu.

— Eu sei, mas, por exemplo, se você estivesse namorando o seu gatinho, fofo, maravilhoso... O Marcos. — Ri. — E ele desse entender que quer morar com você. O que você faria?

— Não sei... tudo tem o seu pró e o seu contra. Mas se você gosta da pessoa e já tem um convívio com ela, obviamente que você vai querer arriscar.

            Continuamos comendo nossos pães, enquanto ainda falávamos sobre o assunto casamento. Confessamos que nunca pensamos em nos casar.

— O Alex não é muito romântico... por isso eu não esperava que ele fosse fazer isso, sabe? —Reconheceu.

            Coloquei um pouco mais de café em minha xícara.

— Sabe o que você pode fazer? Se ele comprar um apartamento, passe uma semana com ele. Ou então duas e veja como é. Você mal reclama dele. Dá até a impressão de que o relacionamento de vocês é perfeito.

            Ela sorriu.

— Mas não é. Às vezes ele é um pouco ciumento. Acredita que até já reclamou do Marcos me mandando mensagem?

            Dei risada.

— Porque quando ele quer mandar mensagem, ele manda. — Continuou. — Ele manda umas quinhentas num único dia e depois não manda nada por três semanas seguidas.

            Sacudi a cabeça, concordando.

— Ele é estranho. Fica mudo uma semana inteira e de repente, do nada, começa a falar sem parar. Especialmente no Whats’.

            Nikki foi até a pia lavar sua xícara.

— Se vocês morassem juntos, tenho certeza de que você ia mandar nele.

— Por quê? — Indaguei, virando o rosto para ela.

— Mesmo quando você fala na brincadeira para ele fazer alguma coisa, ele faz. Reclamando ou não, ele faz.

            Ela voltou para a mesa, depois de colocar a xícara no escorredor e secar as mãos.

— Ele também sempre quer ouvir sua opinião quando conversamos sobre alguma coisa. Se vocês morassem juntos, acho que iam se dar bem.

— Nem me fale uma coisa dessas. — Suspirei, abatida. — Eu ainda admiro muito aquele homem. É difícil não pensar na pessoa quando você a vê todo dia.

— Por falar em pessoa, não sei se percebeu, mas as clientes femininas aumentaram na livraria. Você consegue imaginar por quê?

            Fiz que não, após fitar seu olhar insinuante.

— O Marcos já atraía mulher, agora com outro homem gato na livraria, o movimento feminino dobrou. Especialmente de lojistas.

            Quando ela disse a palavra “lojistas”, lembrei-me da moça da loja de cosméticos e perfumes. Quase cheguei a comentar sobre ela, mas achei melhor me calar para Nikki não ter mais certeza ainda de que as moças vão à livraria por minha culpa.

            Setembro. Como sempre acontecia pela manhã, nós quatro ficamos parados em frente à livraria esperando por Estela. Como de costume, Fernanda perdeu alguma coisa dentro de sua bolsa/buraco negro. Marcos mexia em seu celular, enquanto mantinha o capacete da moto no chão entre seus pés.

            Hoje, Estela achou que Marcos era eu e pensou que eu fosse Fernanda. Era incrível como Estela conseguia fazer tantas confusões. Quando na livraria, ela costumava ficar no balcão do caixa. Não sei como, mas conseguia identificar as notas de dinheiro e ainda usar a máquina para pagamentos em cartão. Usava óculos que claramente não ajudava sua visão debilitada. Ficava a maior parte do tempo ouvindo áudio books. Mal falava conosco, o que, em minha situação atual era perfeito.

            De vez em quando, é claro, eu tinha mini ataques cardíacos. Por causa dela e por causa do pessoal do turno da noite. Eu tinha que sair de fininho após bater o cartão de ponto ao maior estilo ninja.

            Sei, é claro, que em algum momento alguém vai estranhar o fato de me ver saindo da livraria com uma roupa semelhante à roupa dos funcionários e justo quando estão todos indo embora. Sem contar o fato de que minha fama de lindo maravilhoso estava ganhando força e haveria a possibilidade de me descobrirem.

            Nesta sexta-feira, como não tinha nada importante para fazer em casa, fiquei um tempinho no shopping para comer algo diferente. Fui a um restaurante e pedi uma tábua com filé mignon, batatas fritas, farofa e vinagrete. Ainda assim, não estava me sentindo satisfeita. Satisfeito! (Por favor, me policiem).

            Pedi um prato com salmão, já que não era sempre que comia salmão, e achava o sabor maravilhoso. Fiquei ali, sozinho, sentado numa mesa, a devorar meu prato de salmão com legumes e arroz com brócolis. Como era sexta-feira, o shopping estava fervendo, especialmente a praça de alimentação onde eu me encontrava. O falatório dos vários grupinhos de amigos, famílias e afins começou a ganhar proporções bíblicas.

            Após pegar meu celular, notei que Nikki havia me mandado uma mensagem pelo Whats’. Ela e Marcos. Disse-me ela que estava esperando Alexandre vir buscá-la, pois iam sair. Já Marcos, quis fazer inveja, dizendo que sua avó havia feito frango assado e purê de batata, além, é claro, de uma excelente salada de maionese e farofa. Mandei-lhe apenas uma risada em resposta. Marcos vivia elogiando a comida da avó e pelas coisas que ele já me contara, ela adorava cozinhar para ele. E cozinha bastante tornando o fato de Marcos não ser gordo admirável.

            Nos próximos dias, aprendi algumas lições valiosas com ele: seios atraem o olhar como ímãs. Os homens são “obrigados” a olhar para os seios como se uma força da natureza incontrolável os obrigasse a olhar. Quando alguma moça aparecia na livraria usando um decote, por menor que fosse, Marcos olhava discretamente.

            Meu interesse era olhar para os caras bonitos. E nas vezes em que dava sorte de entrar um rapaz bonito na livraria e eu teimava apreciar a visão, Marcos dava uma acotovelada no meu braço.

— Continue olhando para homem, que eu chuto os seus colhões. — Ameaçava.

            Também, em nossos horários de folga, precisei demonstrar menos empolgação ao olhar para as lojas, afinal, homens não curtem fazer compras.

— Você não é mais mulher. Pare de ficar olhando para shorts e blusinhas estampadas. — Advertiu-me.

            Meus olhos simplesmente eram atraídos para as vitrines. Era bonito de ver. Tudo era bonito de ver. Como ele não conseguia sentir isso?

— Você tem que deixar de ser mulher. — Disse ele, em gracejos. — Homens são precisos no que tem que ser: se querem camisas, entram na loja, olham apenas as camisas, compram e saem.

— Que vida chata!

            Ah! Estava me esquecendo de outro detalhe semelhante aos seios: as bundas. Os olhos de Marcos pareciam ter vida própria. Quando um bumbum feminino aparecia na sua frente, ele dava uma olhada discreta. Às vezes nem sempre eram olhadas discretas, mas ele olhava.

            De certo modo, eu o compreendia. O belo deve ser admirado. Mulheres também olham para os homens bonitos. Eu também virava minha cabeça a trezentos e sessenta graus quando uma maravilha aparecia diante de mim...

            Certo dia, Marcos mandou-me uma cara feia quando eu olhei um lindo rapaz distanciar-se de nós e andar na direção da escada rolante, quando estávamos almoçando na praça de alimentação do shopping.

 — Deus do céu! — Suspirei, quando o rapaz desapareceu entre a multidão, sentindo o coração apertado. — Onde se escondem esses caras? Onde se escondem?

— Quando você fala isso, é extremamente gay, sabia?

— Não sou gay, mas você está querendo me transformar em gay, me obrigando a olhar para os decotes das meninas. Sei como os peitos são. Eu já tive peitos. Não sei se lembra.

            Marcos soltou um riso.

            Havia outra coisa também. Ele me disse que se eu precisasse cortar o cabelo, deveria ir a um barbeiro ao invés de ir a um cabeleireiro. Vá a um barbeiro, disse ele, e de preferência, volte com uma cicatriz de guerra no rosto. O avô de Marcos ia ao mesmo barbeiro há mais de quinze anos. Marcos também frequentava o lugar e deu-me até mesmo o endereço para o caso de eu precisar.

            Outra coisa: não pega bem dar uma de chorão. É preciso engolir o choro e agir como macho. Não que ser sensível fosse algo ruim, mas não é bem visto pelas outras pessoas. Eu nunca fiz o tipo chorona, mas chega uma hora em que é muito acúmulo de coisa ruim na cabeça e seus olhos explodem. Aconteceu comigo, certo dia, enquanto eu dirigia até em casa. O dia foi tão péssimo, que eu desabei a chorar.

— Pode até enxugar a cara com um lencinho bordado e todo rosa, — disse ele. — Mas faça isso na sua casa.

            Um dia, segundos depois de a livraria abrir, Marcos me dirigiu uma dancinha obscena só para me lembrar do que eu tinha entre minhas pernas. Para me deixar ainda mais constrangido, Fernanda aproximou-se de mim, junto de Nikki, e perguntou “como era”. Nikki desatou a rir.

— Nunca viu um, mulher? — Retorqui, nervosa.

— Já vi, mas... como é? — Insistiu ela, com os olhos brilhando.

— É uma pergunta muito íntima.

            Marcos aproximou-se de nós e quis saber qual era o papo.

— Queria saber como é o pintinho da Rafa.

            Nikki e Marcos gargalharam. Corei violentamente.

— Pintinho? Que coisa feia para se dizer! — Retruquei.

— Você prefere o termo grosseiro ou o termo usado mundialmente? — Perguntou-me Marcos.

— Pênis. É um pênis. — Corrigiu-se Fernanda, não conseguindo me fazer sentir mais confortável. — Como é o seu pênis?

            Nikki e Marcos continuaram dando risada.

— “Como é”? É uma pergunta muito vaga. — Argumentou Marcos. — Quer saber o tamanho, peso, circunferência?

— Me desculpe, — comecei. — Mas não sei nem o tamanho, nem o peso e nem a circunferência.

— Parem com isso vocês dois. — Disse Nikki, franzindo a testa. — Não está sendo fácil para ela.

            Concordei, passando a mão pelo rosto. Começara a suar.

— Mas é bonito de ver? — Continuou Fernanda.

            Marcos rachou de novo.

— Podemos parar por aqui? — Perguntei. — Ainda não consegui me acostumar a ele e você quer que eu diga o que eu penso a seu respeito?

            Felizmente não me atazanaram mais. O único problema é que Marcos às vezes se lembrava e dava risada. Quando fomos almoçar juntos, graças aos céus não conversamos muito. Ele não deu risada de novo. Ficou ouvindo música no celular. Fiz o mesmo. Hoje eu estava almoçando filé de frango e tomando suco de laranja. De vez em quando levantava o olhar para Marcos para ver o que estava fazendo. Agora eu o odiava por ser tão bonito. Os cabelos dele eram bem longos. Às vezes prendia algumas mechas para trás, às vezes fazia um rabo, às vezes fazia um coque.

            Por causa do seu cabelo longo, já chegaram a confundi-lo com mulher ao ir a bares beber com os amigos. Mas apesar deste detalhe, Marcos não tinha nada de feminino. Também não usava jeans apertados. Usava sempre roupas com cores neutras (inclusive foi seu estilo que me inspirou em minhas roupas masculinas). Marcos andava como qualquer outro homem andava. Marcos era perfeito demais. Tanto seus sorrisos fechados quanto os abertos eram muito charmosos e seu olhar muito intenso. Não que eu o tenha endeusado demais. Ele era bonito e qualquer um enxergava isso.

            As meninas diziam que meu rosto masculino também tinha muito charme, mas um charme diferente do charme de Marcos.

— Você já está seduzindo muitas lojistas. — Comentou Fernanda, numa terça-feira. — Duas já perguntaram o seu nome. É sempre assim. Elas vêm aqui, fazem uma pergunta besta, do tipo: “Ele trabalha aqui?”, depois perguntam o seu nome. Sempre dão uma desculpa qualquer só para justificar o quanto ficaram taradas por você.

            Riram. Até eu ri.

— Somos verdadeiros deuses. — Brincou Marcos, pondo a mão no meu ombro.

            Dirigi-lhe uma careta cética.

— Mas é o mínimo. — Refleti. — Se a natureza vai me moldar conforme sua vontade, o mínimo era me moldar para uma criatura mais apreciável. Visualmente falando.

— É claro. — Concordou Marcos, rindo.

— E por que a natureza faria isso? — Indagou Fernanda.

— Sei lá. — Respondi. — Eu não desejei ser homem.

— Maaas, você queria um homem. — Disse Nikki, lançando-me um olhar malicioso.

— É o que eu estou dizendo. — Insistiu Marcos. — Este é o seu “exemplo” de perfeição masculina...

— Não. — Retorqui. — Eu estou bonito, sim, mas não é esse o meu exemplo de perfeição masculina.

— Ai, você está um gato. Agora fica difícil ver homem e não comparar com você.

            Agradeci à Fernanda. Marcos soltou uma exclamação de desagrado.

— Você também é gato, Ma. — Disse Fernanda, abraçando-o.

            Nikki tocou no meu braço.

— Olha ali!

            Olhei para a entrada da livraria e reconheci a moça da loja de perfumes e cosméticos. Bruna. Estava acompanhada de uma moça de cabelos negros e lisos.

— Não é a primeira vez que ela vem. — Comentou Fernanda. — Que eu me lembre, ela veio aqui outro dia.

            Nikki comentou rapidamente que achava que ela havia gostado de mim. Fizeram piada para não perderem o hábito. Espalhamo-nos pela livraria. Quis fugir da moça, entretanto, em algum momento nossos olhares se cruzaram e ela me sorriu. Não veio falar comigo. Aos poucos, fui me distanciando dela até trombar com Fernanda. Pisei-lhe no pé.

— Ai!

— Desculpa!

            Parei ao seu lado, atrás da prateleira.

— Que foi?

— Nada.

            Ela olhou para Bruna há metros de distância de nós. A livraria não era pequena. Pelo contrário. Era espaçosa.

— Quer que eu traduza os olhares dela para você?

— Não, não precisa. — Disse, nervosa. Nervoso.

            Parei do seu lado direito.

— Eles estão dizendo: “Que cara quente! Tomara que ele me queime todinha um dia desses”.

            Fernanda riu discretamente.

— Não, ela não está interessada em mim. — Disse, apoiando as mãos na prateleira.

— Rafa! Bernardo, ela está te olhando a cada dez segundos.

— Só está olhando. Olhar não quer dizer nada.

— Ela já veio aqui antes e veio por sua causa.

            Sem esperarmos, Bruna e a outra moça passaram por nós se despedindo. Naqueles rápidos segundos, quase congelei.


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