Ser ou não ser escrita por Eica


Capítulo 7
Capítulo 7




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Há uma coisa que precisa ser dita: tomar banho não é um momento fácil para mim. Na verdade, qualquer momento que necessite tirar a roupa é difícil. Mas Marcos já havia me falado para eu me “entrosar” com minha nova parte íntima.

            Ao chegar em casa após o trabalho, levei a toalha ao banheiro, tirei o tênis, peguei roupas limpas e fui ao banheiro.  Comecei a me despir. Na hora em que abaixei a cueca, lá estava a “coisa” com seus dois companheiros olhando para mim.

— Deus do céu!

            Já sem roupa, continuei olhando para baixo. Dei-lhe umas cutucadas.

— Você é muito feio, sabia?

            Inclinei o corpo para ver os seus detalhes.

— Você ocupa um espaço muito grande na cueca. Não é como uma... deixa para lá.

            Levantei o tronco. Balancei o corpo de um lado a outro e a “coisa” balançou junto.

— Deus! — Exclamei, levando as mãos ao rosto. — Não vou conseguir me acostumar com isso.

            Liguei o chuveiro e entrei debaixo da água morna.

— Vamos ter que nos entender. — Disse, passando a mão no cabelo que já começava a ficar ensopado. — Eu não mexo com você e você não se mexe. Consegue fazer isso? Consegue ficar quietinho sem me dar dor de cabeça?

            Após o banho, troquei de roupa e fui para o quarto. Abri meu guarda-roupa e vi minhas roupas femininas. Senti saudade de minha vida como mulher. Ser homem é um tanto complicado, mesmo que Marcos tenha falado que muitas coisas eram fáceis. De noite, tentei fazer xixi em pé. A “coisa” me pertencia, claro, mas não conseguia segurá-lo. Era preciso. É claro que era preciso. Eu precisava praticar. Se ficasse como homem para sempre, até o dia de minha morte, precisava fazer coisas que garantiriam minha “sobrevivência” neste mundo de testosterona.

            Curiosa sobre um detalhe, mandei uma mensagem no Whats’ de Marcos. Minha pergunta foi bastante direta: “Vocês não limpam o... Você sabe o que, né?”. Sua resposta foi: “Do que você está falando?”. Prossegui com a pergunta. Ele riu e respondeu: “Não, é só sacudir. Sacode aí, cara!”. Quando senti vontade de ir ao banheiro de novo, fui testar o que Marcos me dissera e confesso que sacudi o “dito cujo” como se estivesse tirando gotas de um frasco de remédio.

            Continuei com minha higiene pessoal em dia, mesmo sendo homem. Obviamente que não iria descuidar da saúde. Ao rever Marcos no serviço, comentei que queria raspar a cara, já que o bigode e a barba começavam a aparecer.

— Você não tem gilete? — Indagou-me.

— Não. Quero dizer, eu tenho, mas acho que não vai servir para esse propósito. Tem que ser uma gilete específica, não tem?

            Ele deu de ombros.

— Você quem sabe. Mas vai precisar de um pincel e um creme para barbear. Pelo menos.

— É muito caro?

— Sei lá. Faz séculos que comprei o meu.

            Ponderei.

— Deve ter algum kit de barbear em alguma loja por aí.

            Marcos fez uma careta.

— Tem que ser um kit? Compre tudo no mercado mesmo. Não precisa ser nada afrescaralhado.

— Não posso ao menos comprar um kit? A barba é minha.

— ‘Tá certo. Faça como quiser.

— Vai me ensinar a fazer a barba? Não sei usar essas coisas.

— É só seguir as instruções. Não tem como errar.

            Marcos acabou cedendo ante meu olhar pidão. Então, depois do serviço, Marcos foi comigo até uma loja. Comprei um kit de barbear que vinha um creme, um pincel, uma loção pós-barba e até mesmo uma toalhinha. Também comprei uma gilete. Marcos foi comigo à minha casa.

— Espero não estar atrapalhando sua vida. — Disse, olhando-o com atraso.

            Ele suspirou.

— Não tinha intenções de encontrar-me com nenhuma garota.

— Vamos direto ao ponto.

            Peguei o meu kit de barbear e fomos ao banheiro. Marcos passou um pouco de creme de um lado do meu rosto e disse para eu fazer o mesmo do outro lado. Explicou-me como eu devia usar a gilete (bom, ao menos falou como ele fazia). Não foi difícil. Foi bem divertido e interessante. Lavei o rosto e por fim usei um pouco da loção.

— Ótimo! — Disse Marcos, ao meu lado, olhando meu reflexo no espelho. — Está parecendo um bebê!

— Valeu.

— Ah, não me agradeça. — Disse ele, saindo do banheiro.

            Segui-o.

— Quer ficar por aqui ou tem planos mesmo não tendo planos?

— Hmmm... Depende.

            Chegamos à sala. Marcos se sentou no sofá.

— Vou tomar banho e tirar essa roupa.

— ‘Tá. Eu posso pegar água?

— Pode. Se quiser comer alguma coisa... acho que deve ter alguma porcaria no armário e na geladeira.

            Ele sorriu de lado e se levantou. Fui para o banheiro. Após o banho, fiz companhia a Marcos na sala. Peguei meu notebook e alternamos em ver vídeos e ouvir Nerdcasts. Por volta das sete e meia, ele foi embora. Despedimo-nos na calçada.

            Cinco dias se passaram. Certamente que a moça deve ter ficado desapontada por eu não ter ligado. E não fiz por mal. Não tinha interesse nela e nem em fingir estar interessado. Após esses cindo dias, fiquei matutando se ela não estaria me amaldiçoando pelo “fora” que lhe dei. Evitei passar em frente à loja em que ela trabalhava. Indaguei a Marcos se ele havia mandado mensagem para ela através do Whatsapp e ele, para minha surpresa, disse-me que a adicionou.

— Tirei minha foto de perfil só para deixar as coisas mais interessantes. — Riu.

— Não vai me dizer que está se passando por mim!

— Não, não. Disse para ela que sou seu amigo.

            Estávamos sentados numa região do estacionamento do shopping com sombra fresca. Havíamos terminado de tomar nossos refrigerantes. Estávamos encostados à parede, só deixando o tempo passar. Hoje não almoçamos nada. Apenas porcariadas.

— Isso não me deixa mais tranquilo. — Confessei, desanimado, tirando uma embalagem de chiclete do bolso do jeans.

            Ofereci um chiclete para ele.

— Quer ler a nossa conversa? — Perguntou, estendendo seu celular.

— Vocês conversaram? — Indaguei, perplexo, com minha mão no ar.

            Ele pegou o chiclete e eu peguei seu celular. Sua página do Whats’ já estava aberta, por isso, comecei a ler a conversa que se desenvolveu entre Marcos e Bruna.

“E aí! Eu te adicionei. Tem problema?”

“Sem querer parecer meio desligada, mas nos conhecemos?”

“Sou amigo do Bernardo. Marcos.”

“Ah! Da livraria?”

“É. Trabalhamos juntos.”

“Ele te deu meu número?”

“Eu peguei dele.”

“Não precisa me dizer mais nada. Já sei o que aconteceu. Pelo visto ele não gostou de mim.”

            Olhei-o momentaneamente, com os olhos esbugalhados. Ela realmente escreveu o que escreveu? Continuei lendo.

“Não por isso. Ele é um cara legal. Só está passando por um momento complicado.”

            Olhei-o novamente. Marcos apenas sorria, sem olhar-me face a face. Tornei a ler.

“Por que ele não me mandou nenhuma mensagem?”

“Ele não vai te falar qual o problema, então tive que me intrometer. Ele te achou legal.”

            Suei frio.

— Deus do céu, cara! Quando que eu falei isso?

            Marcos riu.

— Vai. Continua.

— Não! — Exclamei, devolvendo o celular. — Já vi qual é o desfecho. Você a deixou com esperanças. Por que fez isso?

— Eu não dei esperança. — Disse ele, pegando o celular e guardando no bolso.

— Deu sim! Dizer que eu a achei legal é o mesmo que falar que eu a achei interessante e bonita.

— Bonita ela é.

— Sim, mas...

— E ela te pareceu interessante?

— Sei lá. Só troquei meias palavras com ela. Não dá para conhecer ninguém só com meias palavras.

— Vou adicioná-la no nosso grupo.

            Suspirei.

— Não quero enganar a coitada.

— Não vai ter que enganar. Vamos fazer amizade.

— Ah! Isso não vai dar certo.

            Não achava certo o que estava fazendo, mas Marcos realmente a adicionou ao nosso grupo como disse que faria. E hoje, em meu dia de folga, recebi uma mensagem dele enquanto limpava a casa. Fazia bastante calor. Estava de chinelo nos pés, bermuda e regata. Verifiquei o celular quando ele vibrou sobre a mesa da cozinha, que era o local onde eu terminava de faxinar.

            Marcos me mandara uma mensagem.

“Estou almoçando. Adivinha o que?”

            Mandei-lhe a resposta: “Frango?” e ele segundos depois me respondeu: “Como adivinhou?” e eu novamente mandei-lhe: “Você gosta de frango.”.

“Fazendo o que?”

“Faxina.”

“Que chato!”

“Pois é.”

            Não trocamos mensagens pelo grupo, mas vi mais tarde que Fernanda e Nikki deram as boas-vindas a Bruna. Minha faxina só me ocupou durante toda a manhã. Minha casa era pequena e não exigia muito de mim. Após um banho para tirar o suor de todo o esforço da limpeza, fui ao mercado para comprar meu almoço e à sorveteria para garantir minha sobremesa. Fiz absolutamente nada o resto do dia. Apenas comi e mexi em meu notebook.

            No dia posterior, Nikki e Fernanda continuaram puxando assunto com Bruna pelo celular. Perguntaram a ela sobre a loja, sobre o shopping, sobre roupas, maquiagem, e depois começaram a falar sobre homens quando Marcos entrou no papo. Dois dias mais tarde, me chamaram para conversar pelo Whats’. Este foi o momento em que não pude mais ficar incógnito. Tive que responder às perguntas e comentários que fizeram.

            Num sábado em que o shopping estava movimentadíssimo, Nikki saiu comigo para almoçar e teve a brilhante ideia (olha o sarcasmo!) de ir à loja de perfumes para ver o preço de um produto indicado por Bruna (que consistia num hidratante facial que ela disse usar). Pelo caminho, protestei.

— Com que cara eu vou olhar para ela? Eu praticamente me recusei a ligar. É claro que depois o Marcos explicou o ocorrido. Explicou do seu modo jumento, mas explicou.

— Tudo se resolveu.  — Disse Nikki, parecendo bastante tranquila. — Vocês conversaram pelo Whats’.

— Que coisa vergonhosa! — Falei, nervosa. — Posso te esperar do outro lado do corredor?

— Ai, menina! Que frescura!

— Estou nervosa! Nervoso.

— Ela não vai te tratar mal. Deu tudo certo.

            Para meu tormento, chegamos à loja. Meu nervosismo subiu num nível absurdamente alarmante. Como verifiquei ao parar diante da entrada da loja de perfumes, havia quatro vendedoras lá dentro e uma delas era Bruna. Nikki deu os primeiros passos para dentro da loja em direção a ela. Segui-a. Quando nos viu, Bruna sorriu. Nikki a cumprimentou. Sorri para ela, nervoso, e ela me sorriu sem demonstrar desconforto ou qualquer sentimento ruim.

— Me mostra aquele hidratante que você me falou. — Pediu Nikki, animada.

            Segui as duas até uma prateleira, onde estava o hidratante da qual Nikki falara. Depois que anunciou que o compraria, Nikki olhou-me rapidamente, ainda com o hidratante na mão.

 — Ah! Te contei que a Fer quer ir ao bar de novo? Quer dar uns beijos. Quer ir? Ela pensou numa noite só para mulheres.

            Dirigi-lhe uma careta.

— Não sei se você notou, mas não sou mulher.

            Nikki riu.

— Ah, é! Foi mal! Você será exceção, Ber.

— Vou estragar a noite de vocês.

— Vai nada. Você pode ficar comigo e a Fernanda pode sair atrás de companhia. — Nikki olhou para Bruna. — Quer ir com a gente? Conhece o Taverna do Rock? Fica aqui no Campolim mesmo. Se não tiver que fazer hora extra ou se não tiver outro compromisso, a gente vai.

            Bruna pensou um pouco.

— Tudo bem. Podemos combinar pelo Whats’?

— Claro! Sem problemas. Nos vemos depois. ‘Brigadão!

            Nos despedimos e saímos da loja, depois que Nikki pagou pelo hidratante. Marcos riu da minha cara ao ficar sabendo da noite das “mulheres”. Não riu só pelo falo de minha cabeça ser de mulher, mas também pelo fato de Bruna ter demonstrado interesse em ir conosco.

— Vou te dizer: seu poder de sedução é de mais de oito mil!

            Na quinta-feira, quebrando um pouco o próprio costume, Marcos chegou ao shopping poucos minutos depois de nós três. Para nossa surpresa, não carregava seu capacete, que já até virara um de seus adornos.

— Que aconteceu, menino? — Indagou Fernanda.

— Levei minha moto para uma revisão. Só vai ficar pronta no sábado. — Informou, segurando seu celular.

— Virá de ônibus igual todo mundo? — Disse Nikki, olhando-o com um olhar debochado.

— Para vocês verem... — respondeu ele. — Nem me lembrava como usava o cartão de ônibus.

— Credo! — Exclamei.

— Faz anos que tenho a moto. Acho que só usei o cartão do ônibus uma única vez na minha vida. Depois que saí do colégio, claro.

— Tadinho! — Disse Fernanda. — Vai ter que suportar ônibus lotado, gente fedida, crianças barulhentas, grupinhos de amigos tagarelas durante os próximos dias?

            Marcos apenas sorriu, abaixando os olhos na direção de seu celular. Chamou-nos a atenção e mostrou, através de seu aparelho, a imagem de uma tatuagem de dragão. Era um desenho muito bonito, bastante detalhado. Tão bonito que não pude deixar de elogiar a arte.

— Vai fazer? — Indagou Fernanda.

— Vou.

— Quando? — Perguntei.

— Daqui a duas semanas, depois do pagamento.

— E onde vai fazer? — Indagou Nikki.

— Nas costas.

— E é grande?

— Vai praticamente cobrir toda minha costa.

— Que dor! — Exclamamos Fernanda e eu.

            Marcos já tinha experiência com tatuagem. Fizera um animal mitológico na panturrilha direita.

— Vai ficar parecendo o Shiryu com esse dragão nas costas. — Comentei.

            Fernanda soltou uma risada.

— O que deu em você para fazer uma tatuagem tão grande? — Indagou Nikki, olhando para a foto no seu celular mais uma vez.

— É o desenho mais foda que já vi. Vai combinar com minha personalidade.

— Sim, porque você também é um grande animal. — Gracejei.

            Marcos me mostrou o dedo do meio.


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