O Rei Negro escrita por Oráculo Contador de Histórias


Capítulo 9
Descompasso




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Debruçado sobre seu cavalo e quase inconsciente, ele chegou aos grandes portões de aço e madeira no meio da noite. Os quatro soldados que guardavam a entrada se aproximaram cautelosos, com as espadas em punho e tochas para iluminar melhor o indivíduo. Nas duas torres de vigia, arqueiros estavam preparados para reagir a qualquer sinal de ameaça. De repente, o homem deslizou para o lado e caiu de costas no chão, causando um barulho forte graças ao seu tamanho e armadura.

—É o capitão Decarlo! – constatou um dos soldados.

Ele foi levado às pressas até a grande torre do Conselho dos Magos de Calendria, onde um mago foi acordado para trata-lo.

No dia seguinte, uma carruagem preta com detalhes dourados parou em frente a grande torre. Dela desceu um homem muito velho, de longos cabelos brancos, barba feita e sem a mão esquerda. Ele adentrou o edifício, sendo guiado por Sir Louzada através das escadas espirais até o terceiro andar para enfim entrar em um quarto sem janela, com duas tochas nas paredes e uma cama velha sobre a qual estava o capitão.

—Saiam. – ordenou seco e todos saíram, fechando a porta ao passar – Nunca imaginei que o veria nesse estado tão deplorável.

Decarlo moveu lentamente a cabeça para o lado. Havia queimaduras em seu corpo inteiro, mas principalmente no rosto, onde a cicatriz transversal parecia ter crescido um pouco. Ao abrir a boca, mostrou estar se esforçando para falar e diante disso, Walther se mostrou indiferente.

—Quem? – indagou.

—A... la... bas... – respondeu com a voz rouca, tossindo em seguida – Mor... to... E o garo... to... fugiu...

—Então Alabas estava protegendo o moleque porque sabia que se tratava do regicida. Nunca poderia imaginar que algum dia ele o ajudaria. Eu o tive tão perto... – rosnou por fim, batendo forte com o punho na parede de pedra e fazendo a luz das tochas tremular, bem como a poeira descer – Não posso deixar que essa maldita lagarta crie asas, tenho que exterminá-lo imediatamente! Para onde ele foi? Diga para onde! – vociferou.

—El... fos...

—Aurora? Não... Não! Como aquele garoto estúpido pode ter ido para Aurora?! – ele levou a mão ao rosto, incrédulo e perturbado – Não posso enviar meus soldados para lá, soaria como uma declaração de guerra, isso é óbvio. Se eu tentar convencer Merlin e as outras casas sobre a ameaça que representa esse sujeito, teria toda a força militar disposta a pressionar os elfos para que o entreguem. Mas... Eu não tenho como provar que é mesmo o maldito regicida. Alabas protegendo um pirralho e uma maldita vidente picareta não significam nada. Preciso pensar em algo.

Walther caminhou até a porta e puxou a maçaneta enferrujada, olhando uma última vez para Decarlo. Ao arquear uma das sobrancelhas, esboçou um sorriso amarelado horrível e fez surgir várias rugas em seu rosto:

—Meus parabéns, Decarlo! Embora o merdinha tenha escapado, você se livrou de uma verdadeira pedra em nossos sapatos. Além do mais, tem sorte de ter lutado contra Alabas e sobrevivido para contar. O mérito é todo seu. – e saiu fechando a porta.

Mas Decarlo não parecia feliz. Não estava satisfeito com a forma como as coisas tinham acontecido e não sentia que tinha mérito algum.

Durante o café da manhã no grande salão, Gabriel que outrora ficaria embasbacado diante de tanta fartura e luxo, agora comia calado e pensativo as fatias arredondadas de pães com um creme que lembrava queijo, porém mais suave. O rei estava sentado na primeira cadeira da mesa, enquanto a rainha se acomodava ao lado dele, seguidos por Leeta e o garoto de um lado, bem como mais dois elfos do outro.

—Estou melhorando minha pontaria. – disse um elfo de cabelos prateados e olhos verdes. Este é o príncipe Sael Luyah, o segundo na linha de sucessão.

—Deveria esquecer o arco e flecha. É melhor com a espada. – aconselhou uma elfa de cabelos brancos trançados e olhos azuis. Seu nome é Aelin Luyah, a princesa que é a primeira na linha de sucessão.

—O que acha, Leeta? Arco ou espada? – perguntou Sael interessado, mas várias vezes olhando de soslaio para o garoto humano ao lado da irmã mais nova.

—Seu talento tende para a espada, mas do que adianta se dedicar a algo que não deseja, meu irmão? – disse a elfa docilmente.

—É, tem razão. O seu amigo aí... Ele não fala?

O rei olhou para Sael com severidade e este baixou a cabeça, percebendo o claro sermão que poderia levar sobre sua indelicadeza.

—Gabriel, querido. Coma um pouco mais. – disse a rainha na tentativa de despertar o garoto de seus devaneios.

—Hum? – ele olhou em volta meio perdido e continuou a comer seu pedaço de pão – Desculpem minha falta de educação. Eu... – olhou para frente e viu dois elfos que até então não conhecia. Teriam sido apresentados enquanto estava distraído? Ficou constrangido, mas não fez rodeios nessa situação – Olha, eu realmente sinto muito. Se me disseram seus nomes, não prestei atenção. Prazer, sou Gabriel Fer... Só Gabriel. – sorriu fraco.

—Aelin Luyah, é um prazer.

—Sael Luyah, prazer.

Yliel sorriu ao perceber que as coisas estavam fluindo razoavelmente bem. E diante do garoto mais ativo, decidiu se arriscar:

—Deveria aprender a arte da espada, amigo. Temos bons mestres que poderiam lhe ensinar.

—Eu aceito, senhor. – respondeu de imediato, determinado – Sei que estou abusando da sua hospitalidade e, pior ainda, colocando Aurora em um grande perigo, por isso quero aprender o mais rápido possível para partir e deixa-los em paz.

—Não está cometendo nenhum abuso, Gabriel. – disse a rainha com um sorriso fraterno.

—E não precisa se preocupar com a segurança de Aurora, meu rapaz. Nenhum reino ousará ultrapassar nossas fronteiras. – afirmou o rei repleto de convicção e soando de certa forma ameaçador – Leve o tempo que precisar. É a sua segurança que me preocupa.

—Obrigado, majestade. – disse o garoto abaixando a cabeça com naturalidade, bem diferente da forma como fizera na sala do trono.

—Mandarei chamar um mestre espadachim para que...

—Não precisa, papai. – interrompeu Aelin, apoiando os cotovelos sobre a mesa, entrelaçando os dedos e repousando o queixo delicado sobre o dorso das mãos em uma postura observadora e confiante – Eu o ensinarei a arte da espada.

Todos olharam para a princesa. E o rapaz ficou ainda mais confuso ao perceber a estranheza dos demais para com aquela afirmação.

—Está certa sobre isso, filha? Você é extraordinária, mas não é do seu feitio algo que exige tanta socialização.

—Não se preocupe, mamãe. Minha única condição para ele é que esteja disposto a treinar pesado.

Gabriel e Aelin se entreolharam. O garoto ficou absolutamente sério e, sem pestanejar, afirmou:

—Estou disposto, senhora.

—Senhorita. – corrigiu Leeta num sussurro próximo ao ouvido dele.

—Pois bem, assim que terminarmos aqui, o treino terá início. Me encontre nos jardins do palácio.

As aves cantarolavam e trocavam de galhos sobre as grandes árvores da floresta. Alguns pássaros eram azuis e se camuflavam com extrema facilidade, enquanto outros tinham um belo amarelo, vermelho... A natureza definitivamente sabia como dar o seu show. O sol conseguia invadir a enorme clareira onde ficava o palácio aos pés do rochedo em forma de arco, dando aos detalhes dourados do edifício real uma nova vida, afinal, era difícil saber se ficava mais bonito durante o dia ou pela noite. Ao fundo, uma enorme cerca viva abraçava os jardins, divididos ao meio por um riacho que possivelmente estava conectado àquele da ponte de madeira elevada, na entrada da cidade e terminando em algum lugar entre as árvores ao fundo.

Quando o garoto colocou os pés sobre o convidativo tapete de grama, viu que Aelin executava alguns movimentos com a espada bem diferente daqueles que tinha visto nos militares de Calendria. Sua lâmina era mais fina, mais curta e possuía algumas inscrições que ele não conseguiu ler. A empunhadura era bem elaborada, com o punho feito de algum tipo de madeira e o pomo exercendo apenas sua função de contrapeso. A elfa não parecia desconfortável em se mover com aquele sobretudo de tecido fino cobrindo sua calça e camisa de manga longa justa, tudo em harmoniosos tons de verde. Fosse para a direita ou para a esquerda, suas tranças alvas balançavam, ela parecia estar dançando um ritmo perigoso e ao mesmo tempo muito bonito.

—Oi.

—Olá, humano. – respondeu virando-se para ele e lhe apontando a espada, embora estivessem a certa distância.

—Devagar com isso, senhorita. Está lidando com um recém-nascido na arte da espada. – disse ele descontraído, erguendo as mãos em rendição.

—Não vou mentir. É irônico ouvir isso logo de você. – ela sorriu de canto e baixou a espada – É verdade que não se recorda de nada?

—Se refere ao outro eu?

—Bom... Isso.

—Nada, nada.

Ele se prontificou a desembainhar a espada e a ficar em guarda. Aelin se aproximou e começou a ajustar sua postura com a mão livre.

—Erga o queixo, seu adversário está na sua frente. – passou o pé atrás do dele e o puxou – Pés afastados. Tenha atenção ao seu pé de apoio, sem isso você cai. E se você cai, está morto. Nunca deixe que te derrubem e se acontecer, levante o mais rápido possível. Role no chão, derrube o adversário de alguma forma, faça o que puder para se recompor. Entendeu?

—Sim, senhori-

O garoto viu tudo se mover muito rápido para cima e então sentiu suas costas colidirem contra a grama, bem como a espada que segurava cair ao seu lado. Ao abrir os olhos, viu Aelin apontando a lâmina contra o seu rosto e sentiu um calafrio.

—Morto. Demorou muito para reagir. De pé!

Rapidamente se levantou e apanhou do chão a espada, tentando ficar na posição certa como ela tinha ensinado.

—Hum... Seu pé de apoio...

E ele consertou o erro, olhando para ela claramente como quem espera aprovação.

—Meio desengonçado, mas o caminho é esse. Vem cá!

Aelin trocou a espada de Gabriel por uma de madeira, também fazendo o mesmo consigo.

—Segure o punho na frente com a sua melhor mão e atrás com a outra mão. Isso faz toda a diferença na sua postura, pois se é destro agirá de uma forma e se é canhoto, de outra.

—Deixa eu ver... – ele segurou o punho primeiro com a destra e depois com a canhota.

—Não existe uma posição ideal. Mas nenhuma delas deve conter aberturas ou erros. Existem espadachins que usam mais de uma espada ou lutam com outros tipos de armas. Nesse caso, as chances de te pegarem com a guarda aberta são maiores a depender das diferenças de habilidades entre vocês.

Ele se lembrou da luta entre Alabas e Decarlo, onde o velho lutava com uma única lâmina contra as duas do capitão e ainda assim se defendia de ambas com destreza.

—Evite movimentos demorados, pois até completa-los, a sua guarda ficará aberta. Cortes de cima para baixo, cortes transversais, é preciso saber a hora certa de usá-los. E quanto mais rápido for o seu adversário, menores as chances de lutar assim. Opte por movimentos curtos até se acostumar à luta e estudar o inimigo. Você perde em força, mas ganha em firmeza e sua defesa segue impenetrável.

Ela o atacou e ele bloqueou, porém foi chutado na barriga e derrubado. Rapidamente rolou na grama de maneira a fugir do próximo golpe que certamente lhe atingiria, tentou se levantar e foi acertado no braço pela espada de madeira da elfa que não o permitiu escapar uma segunda vez.

—Suas decisões foram acertadas, porém ficou devendo em preparo físico. Acho melhor dividirmos os nossos treinos em três partes: o cuidado com o corpo, o cuidado com a aura e a arte da espada, exatamente nessa ordem. – decidiu-se com o indicador sobre o queixo, então olhou para o garoto no chão e lhe estendeu a mão para ajuda-lo.

—Obrigado. Desculpe, senhorita, mas o que é a aura?

—É a energia que toda vida possui. Está atrelada a energia vital, por isso é importante ter um bom controle para não exagerar e acabar causando mal a si mesmo. Os mais poderosos são aqueles que se dedicam a aperfeiçoar o domínio da aura, fazendo bom uso cada qual a sua maneira. Soube que meu pai usou Elindora em você.

Instintivamente olhou para o peito e o tocou com a canhota, concordando com a cabeça.

—Elindora é uma das melhores espadas já forjadas em todo o mundo, porém exige do seu portador um refinamento no domínio da aura. Se você ou eu, por exemplo, tentarmos usar Elindora de maneira displicente, podemos acabar esgotados em um instante. Meu pai possui um grande domínio da sua aura e consegue enxergar as almas dos seres vivos, bem como acessá-las até certo ponto. Em outras palavras, ele pode matar sem ferir o corpo.

Gabriel sentiu calafrios só de imaginar o perigo que isso representava. Porém, lembrou-se de que Decarlo também era capaz disso.

—Senhorita Aelin, aquele que vocês chamam de O Humano das Duas Espadas também consegue fazer algo parecido.

—Não conheço muito bem as habilidades desse humano. Pessoalmente, acho estranho que ele consiga fazer “algo parecido”, pois sobre isso, não se trata de uma técnica comum. Meu pai é um guerreiro extremamente poderoso, com décadas de treino e aperfeiçoamento. Se esse humano também consegue acessar a alma como dizem, então Calendria conta com alguém muito forte.

“Ou contava”, pensou consigo, secretamente desejando que aquele sujeito estivesse morto lá onde o deixou.

Mais tarde, logo após um almoço farto com algo que lembrava uma deliciosa macarronada ao molho, eles voltaram aos jardins e se refugiaram sob a sombra do rochedo. O clima era bastante agradável, fácil de respirar e a calmaria tornava simples ter foco em qualquer coisa.

—Sente-se em posição de lótus.

—Em posição de que?

—De lótus. Assim. – ela se sentou com as pernas cruzadas e os pés em oposição às coxas, estendendo o dorso das mãos sobre os joelhos, mas mantendo a coluna ereta.

Levou quase um minuto para que ele pudesse replicar a tal posição de lótus, até que enfim conseguiu.

—Primeiro, respiramos bem fundo até encher nossos pulmões de ar... Isso... Agora solte pela boca devagar... Repetimos... Solte... Vamos fechar nossos olhos. Pare de pensar tanto, pare de se preocupar, esvazie sua mente... Deixe que sua energia flua por cada centímetro do seu corpo... O domínio e o fortalecimento leva tempo, mas é possível sabermos quanta aura nós temos a qualquer momento. De olhos fechados, note a chama que queima em meio a esse vazio...

Embora se esforçasse, não conseguia enxergar nada de olhos fechados e ficou ansioso ao pensar que estaria fazendo algo errado.

—Sua respiração está descompassada, você não está esvaziando sua mente. Esqueça tudo, Gabriel... Só por agora... Esqueça tudo... E procure pela chama em seu interior.

Aos poucos, foi deixando de pensar tanto, de se preocupar tanto e se entregou a calmaria do lugar. Já não se importava se estava ou não na postura certa, nem se estava respirando da maneira certa. Tudo o que queria era acessar aquela chama, onde quer que estivesse...

Onde quer que estivesse...

Foi então que viu algo. Parecia uma fogueira e era possível ouvi-la crepitando. Ao passo em que ficava cada vez mais próxima, seu tamanho aumentava mais... E mais... Até onde isso iria? De repente, foi como se uma mão em sua cabeça o puxasse para trás.

Quando abriu os olhos, viu que o rei Yliel estava com a destra estendida sobre sua cabeça. Assustado, olhou em volta e viu a rainha, Leeta, Sael e Aelin. Todos o encaravam com um ar de medo e preocupação.

—O que aconteceu?

—Não se lembra? – perguntou Sael assustado.

—Você estava medindo sua aura. – disse o rei, abaixando a mão – Mas acabou perdendo o controle, o que é incomum. Geralmente, medir a aura é um processo seguro e muito simples. Acontece que no seu caso, é como tentar medir uma tempestade.

—Querido, vai assustá-lo! – apelou Erilla angustiada.

—Amigos dizem a verdade! – replicou Yliel irredutível – É perigoso que continue treinando com Aelin. Assim sendo, eu mesmo me encarregarei da tarefa.

—Também é perigoso para ele que seja você a treiná-lo, querido.

—Minha rainha não confia no seu rei? – perguntou com um sorriso para ela.

—Sabe que eu confio. Só... Fiquem seguros...

O garoto olhou para as próprias mãos e, cabisbaixo, notou que a grama em volta dele estava amassada em um raio considerável. Percebeu ao longe algumas cadeiras e outros objetos revirados. Para piorar, já estava anoitecendo. Durante quanto tempo esteve fora de si? O que de fato aconteceu? E por que tinha se tornado um perigo para Aelin? Outra vez estava cheio de perguntas e sua angústia só crescia.

 


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