O Rei Negro escrita por Oráculo Contador de Histórias


Capítulo 8
O Rei Negro




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—Eles entenderão pelo medo!

—Tolice!

Quem está falando em sua cabeça? A escuridão não lhe permite ver, a dormência não lhe permite sentir. Ali, no vazio, tudo o que consegue é escutar vozes distantes que ecoam de um lado a outro.

—Saia do meu caminho se não quiser ter o mesmo destino!

—Majestade, eles chegaram.

—[...]Isso é realmente importante se quisermos...

Essa voz aveludada e odiosa... Walther...

—Fujam! Fujam! Ele está louco!

—Nenhum de vocês sairá vivo daqui!

Quando abriu os olhos, se deu conta de que estava repousado em alguma coisa extremamente macia. Sua cama não tinha nem metade daquele conforto, mas ainda assim se lembrou com carinho do seu quarto. Estava embaçado... Teria sido tudo um sonho? Agora, era só se levantar e tomar um banho para ir ao trabalho. Folhas azuis? Levantou-se depressa, olhando para os lados e não vendo ninguém. Estava no mesmo quarto onde tinha se trocado e vestido as roupas que, reparando agora, ainda usava. Procurou pela espada na cintura, porém não a encontrou. Nesse momento, ouviu passos vindos de muito perto, certamente atrás das cortinas que separavam aquele espaço da sacada.

—Sinto uma grande perturbação vinda do seu interior. – disse uma voz de mulher – Muitas coisas aconteceram em tão pouco tempo. – ela se revelou como sendo a rainha Erilla. Em suas mãos, como se carrega uma criança, estava a espada dada por Alabas, guardada em sua bainha.

—Me... devolve... isso. – falou o garoto em tom de advertência.

—Claro. – respondeu a rainha com tanta gentileza que era fácil se lembrar de Leeta.

Quando recebeu de volta a espada, colocou ao seu lado na cama e tornou a fitar Erilla com muita desconfiança.

—Eu só quero ir embora. Não vim fazer mal a ninguém. – apelou ele.

—Se quiser ir, pode ir. Não é um prisioneiro em Aurora, Gabriel. Mas não acha que se faz necessário responder a algumas perguntas antes de partir? – sugeriu ela, sentando-se graciosamente na beirada da cama. Diferentemente da filha, Erilla possuía olhos verdes e cristalinos, embora seu tom de verde não se equiparasse ao do garoto.

—Seu marido me furou no peito igual ao Decarlo. Ele disse algo sobre alma, eu não entendo direito. Mas depois que isso começou, estou tendo pesadelos horríveis e malucos. O que vocês querem comigo? Estou cansado das pessoas fazerem o que bem entendem a meu respeito. – desabafou.

—Primeiro, vamos compreender o que aconteceu na sala do trono. Yliel é o atual guardião de Elindora, que na língua dos homens significa A Luz do Alvorecer. É a espada que ele usou para se conectar à sua alma e não ao seu corpo. Somente ele seria capaz de tal feito. Você estava morrendo, por isso não houve tempo para explicações. Ainda assim, peço perdão por todo o sofrimento que experimentou, nunca foi nosso objetivo atormentá-lo.

Havia muita sinceridade no rosto da rainha e isso deixou o garoto desconcertado, entretanto, ficou repetindo a si mesmo para ter cuidado e prestar muita atenção no que estava acontecendo ali.

—Como assim eu estava morrendo? E o que é tudo isso sobre duas almas dentro de mim?

As portas se abriram e o rei adentrou, fazendo com que o garoto recuasse nos cobertores. Em seguida, os guardas do lado de fora fecharam a entrada.

—Quando o homem das duas espadas perfurou seu peito, não tinha ideia do que estava fazendo. Duvido muito que ele tenha desejado as consequências que isso traria. – começou a explicar Yliel, encarando o rapaz com um ar de seriedade – Como eu lhe disse antes, amigo, existem duas almas em seu interior e ao mesmo tempo uma só. Elas convergem. É realmente complexo para mim, pois nunca vi nada parecido. – admitiu com uma expressão pensativa, dando meia volta de maneira a balançar seus longos cabelos dourados e entrelaçando as mãos atrás da cintura – Há uma profecia de vinte anos atrás feita por Erilla que nos dá algumas respostas sobre isso.

A rainha acenou positivamente com a cabeça e mudou de uma expressão serena para algo completamente sem emoção, enquanto seus olhos brilhavam tais como os de Leeta quando se sentiu ameaçada pelo garoto na floresta:

Os olhos atentos do vigia foram cegados pelo mais puro e profundo ódio. Diante daquilo que seus antepassados lutaram para destruir, ele sucumbiu e em sua arrogância mergulhou. Nymira foi traída, mas nada passa por ela sem a devida cobrança. Diante do desejo de um homem acorrentado, ela atendeu. Diante da traição, ela concedeu à sua própria maneira. O vigia voltará de um longínquo mundo sem nada saber, sem nada entender, até vir o seu amadurecimento na estação certa e uma vez mais ficar diante do seu destino. Uma vez mais o vigia terá de escolher entre sucumbir ou seguir em frente.

O rapaz ficou em silêncio, confuso sobre o que tinha acabado de presenciar e, principalmente, sobre as palavras ditas pela rainha em seu estado de transe ou o que quer que fosse. Era realmente estranho.

—Espera... – pediu ele, levando os dedos indicadores até as têmporas para se forçar a pensar mais do que achava ser capaz – Quando diz que “o vigia voltará de um longínquo mundo sem nada saber”, está falando de mim, não é? Porque é exatamente assim que estou me sentindo, ainda que eu não entenda o porquê ser chamado de vigia.

—Você é o vigia. – respondeu Yliel, repousando carinhosamente a mão sobre o ombro da esposa, que tombou a cabeça para se apoiar nele, como quem precisava descansar – “Os olhos atentos do vigia foram cegados pelo mais puro e profundo ódio”, se refere ao que aconteceu a Gabriel Eichen, também conhecido como o Rei Negro. Ele se encheu de ira e atacou Calendria, derrubando toda a família real dos Valthor. Matou um por um diante dos calendrinos e pôs fim a uma longa linhagem.

Não sabia como reagir e era difícil imaginar alguém executando uma família real inteira diante do próprio povo.

—Então ficamos sabendo sobre a batalha no porto sul da Cidade Sombria, que outrora foi o reino de Emberlyn. Dizem que o grande chefe do Conselho dos Magos de Calendria, Merlin, marchou para longe da capital no momento em que Gabriel Eichen foi ao porto preparar uma emboscada para os reis do outro lado do mar, das terras de Moroeste. Só o que temos sobre isso são boatos. Lá, aconteceu a Batalha da Tempestade Eterna, onde o Rei Negro assassinou todos os monarcas que desembarcaram, porém foi derrotado por Merlin que deu um fim a essa loucura. Os calendrinos dizem que Gabriel, ao qual eles chamam de regicida, tentou induzir os reinos do sul de Moroeste a derrubarem o pilar do Escudo do Mundo que lá está, enquanto ele próprio derrubaria o pilar de Eastgreen, permitindo dessa forma que a Escuridão do Sul cobrisse a tudo e a todos.

—Então o Rei Negro queria que a Escuridão do Sul engolisse tudo? Por que? – indagou o garoto.

—Não sabemos. Tampouco queremos acreditar que esse seja mesmo o caso, no entanto, conforme diz a profecia e também pelo que vi com meus próprios olhos, “diante daquilo que seus antepassados lutaram para destruir, ele sucumbiu”. Nós sabemos muito pouco sobre a família Eichen, pois ao longo do tempo, por alguma razão, seus registros se perderam. Houve um rei de Aurora que conseguiu obter informações em Valtara acerca da história antiga e este escreveu nas pedras que protegem este palácio. Sobre os Eichen, é dito apenas que foram os vigilantes de Emberlyn. O que vigiavam? Não sabemos, mas só posso entender se tratar de um grande mal.

—E Gabriel Eichen sucumbiu a esse mal... – disse o garoto, que por vezes se lembrava daquele rosto distorcido e dos vermelhos olhos irados – Desculpe, senhor. Mas ainda não entendo por que fez aquilo comigo.

—O Rei Negro morreu na Batalha da Tempestade Eterna, sobre isso não há dúvidas. E aqui está você, amigo. Têm o mesmo nome, não? Têm os mesmos olhos raros.

Sua barriga começou a congelar. Sabia o rumo que aquela conversa levaria, porém não queria acreditar que suas suspeitas estivessem certas. Queria se esconder da realidade, mesmo sabendo que isso nunca seria possível.

—O vigia voltou, mas nada sabe. Gabriel Eichen e você são o mesmo indivíduo.

—Não...

—E quando o homem das duas espadas o perfurou, involuntariamente despertou a parte da sua alma que esteve adormecida nesses vinte anos.

—Não pode ser! Por que ele... Por que eu... Como isso é possível?

—Ouça-me, amigo. – pediu, gesticulando com a mão para que se acalmasse. Nesse instante, a rainha ficou de pé ao lado do marido – O ferimento que ele lhe causou estava dividindo uma alma da outra e por entre elas, sua energia vital ficou exposta, ameaçada. Quando eu o perfurei, selei novamente suas almas uma na outra. É difícil de entender agora, não se force a isso. Saiba apenas que embora agora você vá precisar lidar com ele, está vivo e é isso que importa.

—Por favor, senhor! Tire ele de mim. Você consegue ver o que as outras pessoas não conseguem, né? E com a sua espada, pode alcançar minha alma. Faz uma cirurgia, qualquer coisa, eu te imploro! – disse o garoto desesperado, saindo da cama para se ajoelhar aos pés de Yliel.

—Isso não é possível, amigo.

—Não é fácil estar na sua posição, Gabriel. – disse a rainha, se precipitando para ajuda-lo a se levantar – Os feitos que cometeu na vida passada já estão te assombrando.

—Mas não sou eu, senhora! Ele e eu não somos a mesma pessoa! Eu não me lembro de nada, não fiz nada, não matei ninguém! – esfregou os cabelos com ambas as mãos, claramente transtornado – Estava vivendo uma vida normal no meu mundo! Já sonhava em me casar e formar uma família. De repente sou trazido pra cá, perseguido, humilhado, espancado e agora descubro que na vida passada fui um tirano louco que matou várias pessoas e queria dizimar todo mundo. Apenas o fato de dizer meu nome já traz problemas. E eu... Por que vocês...

Confuso sobre a razão para serem amigáveis com alguém que carregava uma vida passada tão nefasta, se lembrou das palavras de Leeta:

“Não esperamos Gabriel Eichen, pois ele cometeu um grande erro e muitos pagaram por isso. Esperamos você, um novo Gabriel, com uma nova vida e uma segunda chance de fazer o que deve ser feito. Se vai nos desapontar ou não, isso o tempo revelará.”

—Estão me superestimando.

—Pare de ser tão duro consigo. Erros foram cometidos, é verdade, mas como eu já disse, em meio a toda essa história existe muita falácia. É fato que seu eu anterior se entregou ao ódio e cometeu atrocidades, todavia a verdade sobre tudo o que aconteceu não está clara. – disse o rei com aquele ar de seriedade.

O garoto sentou no chão com os joelhos flexionados e levou as mãos ao rosto. A rainha olhou para o marido e silenciosamente concordaram que deveriam deixa-lo sozinho. Assim que as portas se fecharam, ele se jogou deitado de barriga para cima sobre o tapete. Estava sobrecarregado de informações e precisava processar tantas coisas, tantos detalhes que sua cabeça parecia prestes a explodir.

Isso explicaria o fato de ser órfão? Foi parar na Terra da mesma maneira inexplicável como tinha chegado ali? Aquele mundo o odiava e estavam com a razão. Walther estava com a razão. Regicida. E não era? Um homem que mata uma família real inteira era ainda pior. Seu estômago embrulhou e sentiu náusea quando começou a pensar assim, afinal, tinha muita aversão ao velhote da nobreza de Calendria e aos seus militares, exceto Alabas. Por outro lado...

O que teria acontecido para enfurecer tanto Gabriel Eichen? Afinal, segundo a profecia, ele era o vigia de Emberlyn. Mas... Segundo Heler, o rei emberlano teria conspirado a favor da Escuridão do Sul, embora ela mesma não fosse crédula nisso. Que complicação! É tão fácil acreditar que o outro Gabriel apenas tentou dar seguimento aos planos do antigo rei de Emberlyn. Só que ao mesmo tempo, estava se referindo ao mesmo indivíduo que tinha salvado e protegido a Vila dos Farrapos.

—Droga! – respirou bem fundo e soltou o ar sem se conter, bufando de exaustão – Você tá aí? Tá me ouvindo?

Silêncio.

—Diga o que aconteceu. É tão mais fácil se você mesmo explicar, outro eu. – tentou enquanto olhava para as folhas refulgentes.

De súbito, toda a vista do teto foi substituída por dois olhos gigantes em meio a escuridão. Eram eles... Escarlates... Cheios de todo aquele ódio imensurável. E tão rápido quanto apareceram, se foram, devolvendo a vista do quarto ao garoto que se sentou na mesma hora.

—Não vai facilitar as coisas? Está louco, não é? – sua voz foi se enchendo de zanga ao passo em que ele se levantava e procurava por um espelho, até por fim encontrar um bem grande ao lado do armário – Eu preciso entender o que está acontecendo! Ao contrário de você, sou fraco e não sei sequer segurar uma droga de espada! Tenho sorte de ter encontrado os elfos, mas não posso me demorar em Aurora ou uma guerra pode acontecer. É assim que funciona, não é? Calendria me perseguirá e as pessoas ligadas a você e eu vão sofrer! Não se importa com elas? Não se importa com Heler? Será que nesse seu coração frio e violento, há espaço para ela?

Silêncio.

—Quer saber? Que se dane! Você é um covarde que errou e não tem coragem de recomeçar, mas eu farei isso. Vou aprender a arte da espada, vou ficar mais forte e dar fim a essa loucura. Ah! E nem tente me atrapalhar, Eichen! – advertiu com o dedo apontado para o espelho.

Do lado de fora, em um corredor completamente vazio, Leeta escutava atentamente as palavras do rapaz. Seus olhos azuis estavam perdidos em uma direção qualquer, mas logo recuperaram o foco ao mesmo tempo em que a elfa... Sorriu.


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