A Queda Divina escrita por Vinefrost


Capítulo 4
Tentação




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Estou caindo...

O desespero avassalador da Queda me consome novamente, dessa vez a experiência é mais intensa, como se minha velocidade em direção ao solo estivesse mais acelerada do que a primeira vez. O estômago embrulha, sinto que o coração vai saltar do peito a qualquer momento de tão forte e rápido que está batendo com a adrenalina proporcionada pelo momento, minha garganta arde e a voz sai falhada após incontáveis gritos de socorro. Minhas asas não obedecem aos meus comandos, o temido impacto nunca chega, é uma descida infinita.  

Desperto inquieta com um espasmo do meu corpo, me agarro ao colchão como garantia de que não estou em queda livre, muito pelo contrário, da cama eu não passo, estou segura.

— Foi apenas um sonho - sussurro a frase algumas vezes para torná-la mais real a cada repetição.

Sendo mais específica, um pesadelo, mais uma sensação horrível para adicionar a minha coleção desde que encarnei na civilização humana. Assim que meus sentidos começam a normalizar e me sinto mais calma, finalmente reparo no cenário ao meu redor. 

A claridade que atravessa pelas janelas de vidro me permite ter uma visão ampla do ambiente. As paredes em cimento queimado se complementam com as poltronas de couro e o armário de madeira, o objeto parecia antigo, como uma relíquia familiar. A cama box, desarrumada pelo meu sono turbulento, com lençóis e travesseiros em tons de cinza. Retiro a coberta de cima do meu corpo tentando aplacar o calor e suor causados pelo pesadelo, me levanto desorientada e apoio meu corpo na mesa de cabeceira para recuperar o equilíbrio. Estou vestindo apenas uma camisola branca, que também parece ser antiga, assim como o armário. A última lembrança que tenho é de estar voando carregada por Caim.  

Apesar da confusão momentânea, me sinto descansada, e o mais importante, poderosa, minha energia foi restaurada. Me aproximo da janela e afasto ainda mais a cortina, revelando uma porta de vidro. Assim que a abro respiro fundo o ar natural e deixo o oxigênio invadir meus pulmões, não preciso disso para sobreviver, mas a sensação é calmante. Encosto no deck de madeira e observo os últimos resquícios do nascer do sol no horizonte. É uma bela casa, de fato, isolada e em meio a natureza. Fecho os olhos por alguns instantes e ergo o rosto sentindo os raios solares em contato com a pele. 

Diferente dos humanos, não precisamos de comida sólida para nos mantermos, repomos nossa energia por meio de tudo que é vivo, todos possuem dentro de si uma parcela de essência divina derivada do processo de criação de Deus. E é claro, também recuperamos parte de nossas energias enquanto dormimos. Podemos comer se tivermos interesse, ou curiosidade, mas não é como se nossa existência encarnada dependesse apenas disso. A sensação dos raios solares em minha pele é relaxante, abro os braços para que cada pedacinho possa recebê-los.  

Com os sentidos aguçados, ouço a porta do quarto ser cuidadosamente aberta, sinto seu cheiro amadeirado, os passos em minha direção são tão leves que não poderiam ser ouvidos por humanos, ele se posiciona atrás de mim e permanece ali, à espreita:

— Sei que está aí - anuncio enquanto me viro e flagro Caim encostado no batente da porta de vidro, os braços cruzados enquanto me observa.

— Você parecia distraída - comenta ao desviar o olhar para o cenário que prendia minha atenção segundos atrás.

— É a minha primeira vez na Terra, tenho muito para observar e compreender. A vista que havia de cima não faz jus à que estou tendo em primeira mão - completo melancólica: - Só esperava que o motivo de estar aqui embaixo fosse outro - suspiro, seu rosto se ilumina com a revelação, parece surpreso.

— Sua primeira vez, não é mesmo... - Caim esfrega a barba com a mão direita, como se estivesse pensando. - Olhou-se no espelho?

Não havia prestado tanta atenção ao meu corpo encarnado desde que o materializei, estava ocupada demais sentindo os temores da Queda. Nego com a cabeça e ele faz uma proposta:

— Venha se conhecer, Celeste – Caim gesticula, indicando para segui-lo. 

O acompanho até a suíte do quarto, ele me posiciona em frente ao espelho, seu tamanho possibilita enxergar meu corpo inteiro. Com o demônio tão próximo de mim, nossa diferença de altura se torna ainda mais evidente através do objeto. O reflexo que me encara de volta é completamente desconhecido, não sei como reagir e permaneço parada, estática. Observo e absorvo as características do meu recente corpo, de fato, bem distinto da forma que assumia no Céu. Caim nota minha falta de ação e se posiciona atrás de mim:

— Está vendo esses cabelos longos e escuros – ele desliza uma mecha entre os dedos, em seguida toca meu rosto, percorrendo toda a sua extensão, até encontrar meus lábios e contorná-los. - A pele branca como porcelana, os lábios rosados, os traços fortes e a expressão destemida.

Arfo e ele percebe, encorajando sua investida ousada. Caim prende seu olhar ao meu pelo reflexo, sua respiração tão próxima me causa uma sensação curiosa, sinto meus pelos arrepiarem e permaneço calada. Quando ele alcança minha nuca com os dedos, meu estômago despenca e a sensação é intensificada pelo o que diz em seguida, Caim se inclina para mais perto e sussurra em meu ouvido:

— Olhe para os seus olhos, tão azuis quanto o céu do qual caiu – enquanto uma das mãos permanece em minha nuca, eriçando os cabelos no local, a outra percorre meus braços com as pontas dos dedos, ele completa com a voz rouca: - É um belo corpo, Celeste. Definitivamente divino, celestial. 

Solto o ar que está preso em meu peito de uma só vez, aliviando toda a tensão provocada por suas palavras e seus gestos:

— Limites – digo encarando seu reflexo no espelho, seu olhar sustenta o meu, Caim dá um passo para trás e levanta as mãos em rendição.

— Como desejar – antes de sair, ele dá meia volta e completa: - Nádia deixou algumas roupas para você no armário. Tome o tempo que desejar se preparando, estarei lá embaixo lhe esperando para conversarmos.

— Quem é Nádia? - questiono confusa.

— Minha governanta, um de meus serviçais - ele nota o meu incômodo com essa palavra e sorri satisfeito, está me provocando, mas essa provocação desaprovo. - Mais um detalhe, banhos rápidos. Ainda temos água encanada, o sistema está conectado ao poço da propriedade, e a energia ao gerador, mas estamos racionando os recursos desde que o fim dos tempos os tornara escassos. 

Assim que Caim me deixa sozinha no quarto, retiro a camisola que cobre meu corpo e o analiso por inteiro. Toco cada pedaço como se fosse algo novo e exótico, e realmente é. Afago o cabelo sedoso, contorno minhas curvas com as mãos, dobro os dedos dos pés maravilhada por cada peculiaridade que descubro. Para alguém que passou de não ter forma alguma, sendo apenas uma entidade de energia, um corpo carnal representa uma incógnita. Mas uma incógnita que quero desvendar. Além da curiosidade, é uma questão de sobrevivência, preciso saber exatamente do que sou capaz e quais os meus limites nesta forma.  

No momento que afundo na água quente da banheira, sinto meus músculos relaxarem, meu corpo se torna mais leve. Por alguns instantes deixo de pensar na minha situação complicada e me considero apenas humana, massageio meus braços com a esponja, seguindo do resto do meu corpo. Desembaraço meu cabelo molhado com os dedos e aproveito para massagear minha cabeça. Depois de longos minutos aproveitando cada sensação nova, termino meu banho e me apronto para encontrar Caim. Ao vestir as roupas separadas, novamente tenho a sensação de que são de outra época.

O restante da casa também possui as paredes em cimento queimado e o piso de madeira, a decoração segue o mesmo aspecto masculino, deixando bem claro que o dono da residência é um homem adulto. O andar de baixo é repleto de janelas de vidro, de qualquer área da casa é possível enxergar o cenário que o terreno elevado proporciona dos morros e floresta quase infinita.  Encontro Caim sentado na sala encarando a lareira com uma taça de vinho na mão, como descreveu anteriormente no lago. Assim que nota minha presença, serve mais uma:

— Agora que está entre os humanos, qual tal desfrutar uma de suas criações? - diz ao me oferecer a segunda taça.  

A agarro, não sinto fome, mas anseio em descobrir o sabor que o líquido terá. Aproximo de minha boca e o tomo despretensiosamente, Caim se aproxima e explica:

— Tem que apreciá-lo, misture o vinho delicadamente na taça e em seguida sinta seu aroma, note como é perfumado – ele completa: - Depois o deguste, separei este especialmente para a ocasião. Encorpado, aromático e complexo, assim como você Celeste.  

Caim me encara profundamente ao dar o próximo gole e acabar com o vinho em sua taça. Sigo suas instruções e repito seu gesto, sustento seu olhar enquanto o faço, em seguida anuncio meu veredito:

— O gosto permanece na boca após ser ingerido. Insistente – quebro nossa troca de olhares e completo: - Assim como você.

— É engraçada – ele franze a sobrancelha e recolhe a taça da minha mão, depositando as duas na mesa de centro: - Para um anjo. 

— E você está sendo estranhamente agradável... Para um demônio - rebato. - Nossa relação é estritamente profissional, chega de joguinhos, Caim. 

O demônio se acomoda no sofá, faço o mesmo. Cruzo as pernas, corrijo minha posição para uma que me faça sentir imponente ao exigir com firmeza:

— Vamos ao que interessa, me fale sobre a médium que conversa com os anjos.


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