A Queda Divina escrita por Vinefrost


Capítulo 3
União Profana




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Me espanto com a sua declaração, Caim foi punido por Deus ao matar seu irmão, Abel, e recebeu uma marca que o protegia de possíveis tentativas de homicídio para que tivesse tempo de se arrepender de suas ações, a infame Marca de Caim. Seu remorso nunca ocorreu, e quando finalmente morreu por causas naturais, sua alma não foi aceita no Paraíso. Vagou pela Terra como um espírito amargurado, até que encontrou refúgio no Inferno.  

Anos convivendo entre almas tão más quanto a dele, e demônios das mais diversas categorias, o fizeram incorporar toda essa perversidade. Logo, Caim se tornou forte o suficiente para se materializar como um demônio no meio humano, para tal feito, a entidade maligna deve ser extremamente poderosa ou terá que se conformar em possuir uma pessoa para poder caminhar entre os homens. 

Fico em aleta, Caim pode ser poderoso, mas eu não sou indefesa. Uso o que resta de minhas forças para um movimento ousado, assim que ele se afasta, grito em sua direção e seu corpo é lançado alguns metros para trás até bater no topo de uma árvore e cair no chão.

— Se vamos trabalhar juntos, preciso impor alguns limites, nunca mais me segure sem meu consentimento novamente. Não serei uma ameaça, se você também não for uma - mantenho minha pose firme enquanto Caim se levanta e sacode a sujeira de seu terno preto, sua próxima ação me choca, ele ri descaradamente.

— E ela morde! Dessa vez você me pegou de surpresa - ele se aproxima o suficiente para que veja seus olhos se tornarem mais uma vez escuros. - Mas não se esqueça que eu também mordo... ou faço pior. 

Vacilo e seu sorriso se estende, Caim é perigoso, isso é um fato. Contudo, a recente motivação por respostas e minha origem divina também não me deixavam para trás. Se houvesse um embate, não cairia fácil, pelo menos não em plena capacidade.

— Que garantia tenho de que não irá se cansar do mistério e decidir se livrar de mim?

— Não há - Caim pausa e umedece os lábios - mas na sua situação, aceitaria qualquer ajuda que me oferecessem.  

Pondero, ele não está errado, mas aceitar sua ajuda não me impede de desconfiar de suas ações, ficarei atenta todo o momento que estiver ao seu lado. Se meus irmãos e irmãs traíram minha confiança, não poderia depositar minhas esperanças em um demônio que mal conheço. Muito menos se esse demônio carrega o título de Primeiro Assassino.

— Bom, sendo assim, nós temos um acordo? - pergunto decidida.

— Não diria que um acordo, uma cortesia pela sua situação.

— Vou precisar de um pouco mais do que isso para aceitar sua “cortesia”.

— Minha palavra não serve como garantia? – Rebate sério, dessa vez eu que rio descaradamente.

— Um demônio de palavra, deve ser o primeiro!

— É o máximo que vai receber, por enquanto.  

Confirmo com a cabeça, seria ingenuidade minha achar que conseguiria mais do que isso de alguém naturalmente programado para causar o mal, principalmente quando se trata de assuntos angelicais. Acertamos o início de nossa jornada, foi um longo dia para ambos e Caim oferece sua residência para descansarmos. Assim como os anjos, demônios que também assumem corpos humanos na Terra precisam de algumas horas de sono para restaurarem suas energias.  

A casa fica a alguns quilômetros de onde estamos e no topo de uma montanha, como Caim chegou voando, teremos que retornar da mesma forma. Ele abre suas asas e fico fascinada pela sua estrutura, como se fosse uma reprodução, proporcional ao seu corpo, das asas de um morcego. Sigo seu exemplo e materializo minhas asas também, imediatamente me arrependo do ato, achei que o processo de cura que realizei mais cedo fosse o suficiente para curar todos os machucados resultantes da queda, mas estava enganada.  

Minhas asas doem, algumas penas caíram e o restante está queimado ou chamuscado. Levaria mais alguns dias para voltarem ao normal. Assim que desperto do meu transe ao encará-las, noto Caim olhando fixamente para o mesmo local:

— Algum problema? - Questiono confusa.

— Nunca vi um anjo com penas carmesins... Celeste, você é a única com essa coloração - ele se aproxima e percorre com os dedos uma extensão das minhas asas, recuo em desconforto.

— Não sei o que isso significa, nunca as materializei antes – assumo com sinceridade. Como não temos a mesma forma no Céu, nunca precisei realmente abri-las, sempre achei que seriam parecidas com as que os anjos tornavam corpóreas aqui embaixo, brancas.

— Muito menos eu, se tivesse que apostar, diria que está relacionado com a sua Queda.

— Lúcifer quando caiu também não teve as asas transformadas?

— Não, Lúcifer sequer conseguiu mantê-las. Elas queimaram durante a Queda, quando chegou a sua prisão no Inferno, só restava sua estrutura óssea como um lembrete da divindade que ele deixou de ser por conta de sua rebeldia – Caim parece admirado e intrigado com minha particularidade. - Posso carregá-la, se me permitir. A caminhada é longa, e a subida pela montanha cansativa para quem estiver a pé, no seu estado não sei se aguentará. Um desperdício de tempo e esforços para ambos. 

Aceito sua oferta e ele me encaixa em seus braços, logo estamos voando no céu. Encaro seu rosto, firme e sem demonstrar qualquer emoção, parecia indiferente ao momento. Desvio a atenção para o céu noturno com a lua cheia em seu auge, me sinto mais próxima de casa, concentro meu olhar nas estrelas e fecho meus olhos mantendo-as em mente. Tento me comunicar com minha família telepaticamente e falho, a única voz que escuto na mente é a minha, uma sensação estranha e que intensifica minha solidão.

— Não consigo falar com eles, estão mudos, como se nossa conexão fosse cortada – suspiro magoada.

— Sua família? - seu rosto suaviza, atreveria dizer que em empatia pelo meu desabafo.

— Sim, meus irmãos e irmãs. Não há ninguém, somente eu... - Completo segurando o choro e limpando a única lágrima que teimou em cair.

— Conheço alguém que pode ajudá-la, uma médium humana. Já transmitiu algumas mensagens vindas diretamente do Céu. Deve ser a sua melhor chance no momento, pode ser o primeiro passo para desvendar esse mistério.

— Amanhã, depois de descansarmos, vamos pedir sua ajuda – um fiapo de esperança se instala em meu peito, uma luz no fim do túnel, diriam os humanos.   

 Estou aterrorizada com o que a médium poderia revelar, minha família não deve estar contente comigo, o que devem estar pensando de mim ao me verem nos braços de um demônio?

— Um anjo e um demônio, devem estar se revirando no Céu - sussurro com escárnio.

— Uma união profana, diriam – Caim sorri ao replicar, deve estar pensando o mesmo, a ironia da situação.  

Balanço a cabeça concordando e nossa conversa termina, seguimos nosso trajeto em completo silêncio. Aos poucos o cansaço toma conta do meu corpo, manter os olhos abertos parece uma tarefa impossível, mais uma nova experiência. Confesso que perder o controle do meu corpo para algo tão banal quanto dormir assusta, me sinto mais humana e menos angelical a cada momento. Imagino que outras sensações poderei experimentar, deve ser por esse motivo que poucos anjos encarnam na Terra, é muito fácil se perder em meio a tantos novos sentidos e sensações em um corpo carnal. Minha experiência durante e pós Queda foi um exemplo, senti cada emoção negativa com extrema intensidade, foi difícil controlá-las. Imagine o êxtase com as positivas, felicidade, amor, prazer... A perdição para determinados anjos.

Ouvi boatos de anjos que escolheram nunca mais voltarem para o Céu e permanecerem vivendo entre os humanos. Desertores, os chamavam, eram poucos, mas existiam. São casos curiosos, tenho pouco conhecimento sobre, não é um assunto bem recebido no Céu, talvez por vergonha. O que realmente sei sobre o destino dos anjos desertores, é que aos poucos sua essência angelical é perdida ao se manterem longe do Paraíso por muito tempo. 

Mas o processo leva décadas para se concretizar, e ao final do último resquício celestial, o anjo se torna completamente humano e vive o resto de sua vida como mortal. Esse é o meu destino se não descobrir uma maneira de voltar para casa, assim como os desertores, um anjo muito tempo afastado do Céu também perde seus poderes gradativamente. 

Quando um anjo caminha entre os humanos em corpos físicos, tem de tomar extremo cuidado com a manutenção do corpo encarnado. Se forem feridos brutalmente por armas não-humanas, de origens angelicais ou demoníacas, ao ponto de o processo de cura ser ineficaz, podem perder seu único acesso a civilização terrestre na forma física. É concedido apenas um corpo para cada anjo quando precisar tratar de assuntos que ultrapassam a esfera angelical, nosso dever é cumprir essa missão e nos preservar para as futuras. Dessa forma só poderemos nos manifestar de forma astral para os humanos.  

Por mais que passasse toda a minha existência estudando as peculiaridades humanas, não desejava me tornar uma. Amava minha família e minha condição angelical, havia tanto para aprender ainda, estava apenas no início do meu treinamento de séculos.  Cheguei a imaginar se deveria me livrar dessa casca para retornar ao Céu, mas se fui expulsa, nem em minha forma angelical seria aceita de volta. Ficaria sozinha vagando pela Terra como um espírito, e nem ao menos uma vida poderia construir, até que desapareceria completamente. Seja qual for o motivo de minha Queda, não merecia tamanha crueldade, devo me apegar a este corpo com todas as minhas forças. 

Afasto os pensamentos negativos por alguns instantes, questionamentos e lamentações terão que ficar para mais tarde, me permito finalmente descansar e me rendo ao sono nos braços de Caim. 


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Notas finais do capítulo

Mudei um pouquinho da história da Marca de Caim, ela não serviu exatamente para isso...
Enfim, espero que tenham gostado! ♥



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