A Queda Divina escrita por Vinefrost


Capítulo 5
A Mensageira Divina




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Estou no carro com Caim enquanto ele dirige para o nosso destino, o rancho da médium. Além da residência nada modesta, Caim também possuía uma relíquia sob quatro rodas que mantinha cuidadosamente guardada em sua garagem, um Corvette 1953. Sua influência na região o permitiu ter um estoque de gasolina para abastecê-lo, algo escasso ultimamente. O veículo de dois lugares é pequeno e compacto, mas gracioso, seu exterior é branco e as poltronas vermelhas.  

Chamativo, pensei assim que o vi. Está claro que Caim gosta de chamar atenção, questionei o porquê da escolha do modelo antigo, como sua casa é moderna, achei que o carro seguiria o mesmo estilo. Quando realizou a compra da residência, o dono insistiu para que incluísse o veículo na compra, queria se livrar do carro, e ele não recusou. Em suas palavras, assim que viu o Corvette foi amor à primeira vista.  

Caim parece possuir um apego exagerado as comodidades humanas, me pergunto se tanto tempo encarnado não o fez repensar sobre sua natureza demoníaca, escolhendo viver uma rotina mais reclusa e repleta de caprichos terrestres. 

Entretanto, entendi o que ele quis dizer sobre o carro assim que deu partida e seguimos o trajeto com a capota aberta, o modelo antigo me arrebatou em um sentimento intenso de nostalgia. Recordei da época que observava os humanos, apesar da década de cinquenta ser um pouco nebulosa em minha memória. Quando se tem duzentos anos de idade e a rotina permanece quase a mesma, alguns momentos da história podem se tornar facilmente esquecíveis ou embaralhados a outros.

— É a primeira vez que vou encontrá-la, pode ser que nossa recepção não seja acalorada, assim que perceber minha natureza demoníaca, Dorothea pode querer nos mandar para fora – comenta, quebrando o silêncio.

— Dorothea – repito em voz alta, o nome parecia familiar, será que já a observei do Céu? - O que mais você sabe? Quero estar preparada.

— A mulher é praticamente um artefato histórico ambulante – franzo a testa ao retirar os óculos de sol que me emprestou antes da viagem, mostrando minha insatisfação com o comentário ao encará-lo séria. – Ela tem noventa e um anos.

— Isso foi rude! Se aparecermos com esse tipo de comentários, seremos enxotados sem nem passarmos pela porta de entrada – repreendo, ele parece não ligar.

— Como estava explicando – umedece os lábios e completa: - em um aspecto você está certa, devemos ser cuidadosos. Desde que as pragas foram liberadas, Dorothea parou de atender como médium e se tornou reclusa no rancho da família. Perdeu alguns entes queridos e a visão quando a praga da cegueira atingiu os maiores de cinquenta anos.  

É difícil imaginar que a Terra esteja passando por um momento tão difícil quando Caim reside isolado em meio a suas mordomias, o trajeto de pouco mais de cem quilômetros até a residência de Dorothea é repleto de florestas, até nos aproximarmos dos arredores de Nova Orleans e a vegetação pantanosa dominar o cenário. Mas ainda sem sinal da civilização humana, passávamos por uma casa ou outra, e pareciam todas abandonadas.

Fora isso, indícios do Apocalipse são quase imperceptíveis. Não sei se teria coragem de explorar para fora dessa bolha, quem sabe se fosse extremamente necessário para a investigação. Olhar de cima não foi nada agradável, viver aquela realidade seria muito mais impactante e desoladora.

— Pobre mulher - suspiro.  

Caim ignora meu comentário e segue falando sobre o histórico de Dorothea, que desde jovem mantém contato com o mundo espiritual. Até que começou a receber mensagens divinas avisando sobre o Apocalipse, sempre que uma praga estava prestes a ser liberada, Dorothea era alertada e transmitia sua mensagem para quem acreditava em sua palavra. Ela acabou se tornando famosa, mas todo dom carrega um preço, algumas pessoas subverteram sua missão de mensageira divina para precursora da desgraça. Como se seus alertas tornassem real aquilo que falava, precisavam de alguém para culpar por todas as desgraças, Dorothea começou a receber ameaças e decidiu parar com os atendimentos. Fechou o local que os realizava e se mudou para o antigo rancho de sua família nos arredores de Nova Orleans.

Atualmente, a médium ainda vive reclusa em seu rancho com o que resta de sua família e seguidores devotos preocupados com sua segurança. Caim parece mais centrado em nosso objetivo conforme nos aproximamos. Aproveito para pensar em como explicarei para a médium que, apesar de expulsa do Paraíso, não sou uma ameaça. Torço para que Dorothea me receba em sua casa e me acolha com seu dom, é a minha única esperança no momento.

— Se prepare, o rancho não fica mais do que dez quilômetros seguindo por esta estrada de terra – avisa, a expressão séria pode ser notada através dos óculos de sol que usa, placas sinalizando para os visitantes darem meia volta são vistas com frequência ao redor da estrada.

— Você parece temeroso, devo ficar preocupada? - questiono intrigada, Caim parecia menos atrevido que o usual.

— Após várias perdas e a popularidade negativa, Dorothea e sua família se tornaram hostis. Atenderam alguns clientes por um tempo, consultas para contato com amigos ou familiares que faleceram, mas nada mais complexo que isso. Há boatos que algo muito grave aconteceu, por isso começou a usar o dom com moderação.

— Tem alguma ideia do que pode ter causado isso?

— Nenhuma – confessa sincero. - Mas não é como se estivesse realmente interessado na época.

— Tenho fé de que irá nos ajudar - digo confiante.

— Fé, Celeste? Não enxerga até onde a “fé” lhe trouxe – debocha ácido. - Devia contar com a sorte e suas próprias habilidades, no final das contas, estamos todos sozinhos. Você é o maior exemplo dessa premissa. 

Permaneço calada, por mais que me doa admitir, fé ainda é uma das maiores motivadoras de minha jornada. Eu sou inocente, não há dúvida alguma sobre isso. Só preciso provar que um engano foi feito para recuperar meu lugar de direito no Céu.

— Apesar da sua agitação, acho que não deveria ficar tão preocupado – digo, tentando lhe acalmar. - Afinal, são apenas humanos.

— Jamais subestime os humanos – diz, suas palavras são carregadas de tensão. 

Caim para o veículo assim que chegamos à porteira que dá passagem ao sobrado, quando termina de afastar completamente a estrutura de madeira, um tiro o pega de raspão na lateral da cintura. Um grito de dor e surpresa escapa de seus lábios, retorna apressado para o veículo. Observo uma mulher armada na varanda da casa com um autofalante em mãos:

— Saíam da propriedade imediatamente – anuncia.

— Precisamos falar com Dorothea, é urgente. Não viemos para causar nenhum mal - grita em resposta Caim, em seguida vira em minha direção e sussurra: - mas se acertarem o meu carro esteja preparada para revidar. 

A mulher repassa através do rádio a mensagem para o atirador posicionado na janela do andar de cima do sobrado. O observo recarregar a arma, uma das minhas habilidades sobre-humanos, visão e audição aguçadas.

— Como você está? - pergunto ao ver o sangue encharcar sua camisa branca.

— Dolorido, mas nada que algumas horas não regenere o tecido – ele pausa quando outro tiro nos atinge. - Se acertarem o meu carro mais uma única vez... 

Caim está sendo dramático, mas um embate é tudo que menos espero no momento, não conquistaríamos a confiança da médium machucando um dos seus. Em um súbito lampejo de adrenalina, faço algo que acredito poder reverter nossa situação. Abro a porta do carro e saio do veículo com as mãos para cima em sinal de rendição:

— Não atire – sigo com as mãos para o alto enquanto caminho em frente ao carro e ajoelho entre o automóvel e a porteira aberta. - Não somos uma ameaça, preciso da ajuda de Dorothea. Por favor, repasse meu recado, se ela recusar me receber iremos embora.  

Levanto meu rosto e olho em direção ao atirador, em seguida abro minhas asas. Mais uma vez sinto dor, não estava totalmente curada ainda, levaria mais alguns dias e custaria boa parcela da minha essência angelical. Ouço o atirador suspirar e correr para o andar de baixo, alguns minutos depois retorna pela porta da frente, faz sinal para aproximarmos. Ele nos recepciona de cara fechada na varanda da casa, os fios grisalhos se sobressaem em meio aos escuros, indicando que está próximo dos temidos cinquenta anos, se apresenta como George:

— O que um anjo e um demônio querem com Dorothea? - pergunta tenso, a arma apontada em nossa direção.

— Preciso falar com minha família, caí do Céu e perdi contato.

— Caiu como? Tropeçou numa nuvem e despencou de cima? - questiona sarcástico. - Seja direta, o que você fez para lhe expulsarem lá de cima?

— É isso que preciso descobrir, não sei o motivo – respondo sincera. 

George devolve a arma para o coldre e passa as mãos pelos cabelos, em seguida as cruza no peito, as sobrancelhas arqueiam, parece estar ponderando sobre o que fazer em seguida:

— Apenas o anjo entra no quarto. Você - ele aponta para Caim – permanece aqui fora comigo.  

Agradeço sua compreensão e voto de confiança, mas ele completa:

— Por mim não teriam cruzado a porteira, mas Dorothea insistiu em vê-la, ficou intrigada com um anjo pedindo sua ajuda. Deus nos ajude, mas quando aquela mulher põe algo em sua cabeça, não há nada que a faça mudar de ideia.

— Vocês não irão se arrepender, eu garanto – digo sustentando seu olhar, George permanece desconfiado.

— Sua palavra não me vale nada, pode ter origem divina, mas não passa de uma desconhecida – corta, em seguida aponta para a escada. - Última porta à esquerda, Dorothea está lhe aguardando.  

O sobrado aparenta estar parado no tempo, sua decoração é modesta e antiga, mas aconchegante e acolhedora. Caminho até o quarto da médium, assim que chego na porta, o guarda armado que faz sua segurança me revista, quando constata que não carrego nenhuma arma, abre a porta me liberando passagem. Dorothea está deitada numa cama de casal, sua aparência é frágil, como se cada suspiro fosse seu último. Está coberta até a cintura, as mãos pendem uma de cada lado juntas ao corpo, a pele negra enrugada e os cabelos completamente brancos destacam ainda mais sua idade avançada:

— Me dê sua mão, anjo, e me diga seu nome – solicitada com a voz fina e trêmula, levanta a palma da mão esperando meu contato.

— Celeste – respondo esperançosa, encaixando minha mão na sua. Os olhos com a coloração esbranquiçada tornaram-se completamente brancos quando as pupilas retorcem para trás, estava tendo uma visão ou estabelecendo contato com os anjos. 

Meu toque causa uma reação extrema, se antes parecia calma e serena, agora a médium se remexe em desconforto. Aperta minha mão e em seguida solta rapidamente, como se tivesse pego em algo tóxico, proibido: 

— Saia, agora! - grita em plenos pulmões, é mais forte do que aparenta. - Não é bem-vinda em minha casa, Celeste.  


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