Nos caminhos da vingança escrita por Lilium Longiflorum


Capítulo 14
Não tem como fugir




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A cozinha da senhora Yuri era uma das mais simples que Tatsuo já havia visto. Havia um fogão a lenha próximo de uma porta, uma mesa de madeira onde era dispostos as frutas, verduras, pães e outros alimentos  para servir aos hóspedes da estalagem. A parede era decorada com dois quadros de flores pintadas minuciosamente e algumas máscaras de teatro Nô. Tatsuo passou a mão em uma dessas máscaras, deu um sorriso de canto e disse:

— Meu pai gostava muito de teatro Nô.

— Ele assistia muitas peças? – perguntou Yuri enquanto mexia em uma panela.

— Sim, ele até chamava os atores para fazerem peças de teatro em casa mesmo.

— Que bom saber disso. Eu era atriz desse tipo de teatro, mas meu trabalho não vingou.

— Por quê? – perguntou Tatsuo atônita.

— Meu pai ficou doente e tive que voltar para cá para ajudar minha mãe a cuidar dele. Eu viajei muito com uma turma de jovens atores – Yuri deu um suspiro de satisfação – bons tempos aqueles.

— Então você aproveitou bem sua juventude, apesar de perder toda sua família numa briga de clãs.

— Sim, eu consegui superar essa dor.

Tatsuo olhou para a senhora Yuri lavando um punhado de arroz e percebeu que essa última frase tinha algo de subliminar. Aproximou-se dela e perguntou:

— A senhora quer dizer algo com isso?

Yuri se virou para a japonesa, parou o que estava fazendo e disse:

— Eu não deixei de aproveitar a vida e ser feliz, por causa da dor da perda. Infelizmente não vejo isso em você.

— Mas eu tenho aproveitado a vida a minha maneira.

Yuri deixou escapar uma risada e disse:

— A verdade é que você tenta fugir do trauma que lhe atormenta, por isso tem uma vida agitada de uma heroína, mas o pior que é você não consegue se salvar de si mesma.

— Por que está dizendo estas coisas? – perguntou Tatsuo se sentindo incomodada.

— Nem se apaixonar você se permite. Desde que seu esposo morreu não teve mais ninguém e quando aparece um homem decente você o despacha.

— A senhora nem me conhece. Como pode deduzir essas coisas sobre mim?

A senhora Yuri cruzou os braços e respondeu com sua mansidão própria:

—É um costume que tenho em procurar saber da história dos meus hóspedes antes deles virem para cá, para conhece-los melhor. E sua história me surpreendeu e quando você chegou... Senti que eu precisava falar com você.

(...)

Tatsuo não estava acreditando no que estava acontecendo. Como uma senhora que ela mal conhecia poderia deduzir tanta coisa sobre sua vida? O pior é que ela estava certa. Katana havia se anulado quase que por completo para colocar seu triste passado por debaixo do tapete. Pensava que poderia esquecê-lo, mas ele estaria sempre ali em sua memória, não tinha como escapar. 

Ao encontrar um banquinho de madeira, Tatsuo fez questão de se sentar. Respirou fundo e perguntou:

— O que mais tem a dizer para mim?

A senhora Yuri sorriu com uma ternura de mãe. Verificou oque havia na panela, segurou as mãos de Tatsuo erguendo-a e disse:

— Não deixe a chance de o amor passar na frente de seu nariz como uma fumaça e deixa-lo desaparecer.

A conclusão é que não era preciso telepatia para descobrir o sentimento de Tatsuo pelo espadachim, a sabedoria de uma anciã a revelaria facilmente. Tatsuo respirou fundo, sorriu e disse:

— Vou pensar no que a senhora me falou.

— Pense mesmo, minha querida e não se atrase, pois o misô já estará pronto.

— Pode deixar.

Em seguida Katana se retirou deixando a senhora Yuri na cozinha para preparar o jantar.

(...)

Já era por volta das onze da noite, Tatsuo não conseguia dormir. Rolava de um lado para o outro no futon e nada do sono vir. As coisas que a senhora Yuri disse dançavam em sua mente desde a hora do jantar preferindo comer isolada dos outros. Tinha certeza que tinha causado estranheza o seu comportamento, mas mesmo assim não se importava.

Olhou para Cassie que dormia profundamente e sorriu pensando como ela poderia estar tranquila e sem preocupações. Levantou-se e pode ver pela janela aberta a lua que estava muito brilhante. Podia ver constelações inteiras dali e ficou encantada. Olhou para a porta e resolveu descer para poder relaxar melhor com a brisa da noite. Vestiu um quimono simples que havia trazido e saiu.

Ao descer as escadas não deixou de ser notada pela senhora Yuri.

— Está sem sono, menina?

— Um pouco – Tatsuo respondeu terminando de descer os degraus – acho que comi demais.

— Não acho que você comeu muito, mas deve ser outra coisa que não lhe deixa dormir, mas não se preocupe. Vou lhe servir um chá.

— Muito obrigada, senhora Yuri. Vou ficar um pouco aqui no alpendre.

— Fique a vontade.

Enquanto a senhora Yuri foi preparar o chá, Tatsuo foi para o alpendre e se sentou em um degrau de madeira. Não demorou muito e Yuri veio com uma xícara de porcelana bem trabalhada nas mãos. A fumaça que saía dela indicava que o chá estava bem quente e isso trazia satisfação para Tatsuo.

— Agradeço a preocupação, senhora Yuri, e peço desculpas.

— Pelo que?

— Não fui muito amistosa com a senhora quando conversavamos na cozinha.

— Fique tranquila. Eu imagino como você deve ter ficado, mas saiba que falei isso para o seu bem.

— E me sinto feliz por isso.

— Que bom, menina. Aproveite o chá que está uma delícia.

— Pode deixar.

Após senhora Yuri se retirar, Tatsuo respirou fundo, soprou o chá fazendo a fumaça dele se esvair e bebericou um pouco. Ficou segurando a xícara e olhando para a lua enquanto o chá esfriava.

Seus pensamentos estavam tão longe que não havia percebido a chegada de Kenshi que estava de pé a uma certa distância dela. Ele se aproximou e perguntou:

— Posso apreciar a beleza da lua com você?

Tatsuo se assustou com a voz grave do espadachim que a tirou da viagem de seus pensamentos. Ele vestia uma camiseta de algodão e uma calça feita de tactel deixando a japonesa surpresa por somente ve-lo em seu uniforme.

— Sente-se, por favor. – ela disse.

Kenshi sentou ao lado dela e Tatsuo começou a estudar o rosto dele sem a faixa nos olhos. Se sentia mais atraída por ele, mas não queria transparecer aquele sentimento e voltou seu olhar para a lua.

— Acho que você deve pensar como eu devo apreciar a beleza da lua sendo cego. – falou Kenshi tentando uma descontração.

Tatsuo sorriu como se quisesse rir e disse:

— Cada um tem seu jeito de admirar a lua, mesmo os que não a podem ver.

— Gostei da sua resposta.

— Obrigada, senhor Takahashi.

— Faço questão que você me chame pelo primeiro nome. – ele falou pousando a sua mão no joelho da moça que logo corou.

Tatsuo tomou um pouco do chá e disse:

— Como quiser, Kenshi.

— Assim é melhor – ele disse – Mas eu queria saber o motivo de você ter se isolado de nós no jantar.

Katana engoliu seco, segurou com firmeza a xícara e respondeu:

— Eu não estava muito bem.

— Pois acho que você estava com medo de eu ler seus pensamentos – arriscou Kenshi num sorriso sarcástico.

— Por que diz isso? – perguntou Tatsuo atônita.

— Penso que é a única explicação plausível.

— Não sei porque estamos falando sobre isso.

Kenshi sorriu, baixou a cabeça e disse como se estivesse olhando para ela:

— Não sou um invasor de pensamentos, faço isso quando necessário.

Nisso ele sentiu o aroma do chá e perguntou se podia tomar um pouco. Tatsuo olhou para ele e colocou a xicara nas mãos do espadachim. Ela sentiu a pele áspera das mãos dele e Kenshi fez uma observação sorrindo antes de tomar um pouco do chá:

— Suas mãos são macias.

Tatsuo mordeu os lábios e sorriu timidamente. Depois ficou observando Kenshi tomar o chá. Quando ele terminou, percebeu que o canto de seus lábios ficou sujo e delicadamente o limpou com a ponta de seu polegar.

— Pronto. – ela falou com a voz baixa.

Kenshi sorriu e conseguiu segurar a mão da japonesa na sua. Ficou segurando-a e Tatsuo não relutou ficando com seu rosto um pouco mais próximo com o dele. Ela podia sentir a respiração dele contra a sua.

— Por que reluta, Tatsuo? – ele perguntou com sua voz mais baixa.

Ela ficou calada e estudava cada detalhe do seu rosto com a ajuda do luar. Passou a mão na barba de Kenshi e em seguida em seus lábios. Aproximou mais seu rosto do dele e pensou: “Não tenho mais como fugir.”. Em seguida colou seus lábios nos dele em um beijo casto e cálido. Surpreso ele ficou, pois pensava que seria por sua iniciativa o primeiro beijo.


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