Blades of Chaos escrita por Madame Andrômeda


Capítulo 8
O Colar




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Efervescência desenfreada calibrava minha palpitação acelerada. O ar expelido pelos meus pulmões pesava, e pouco contribuía para a quietação da minha aflição. Os resquícios de manchas de sangue espesso, os cortes aplicados em pele alva e os olhos celestes sem vida de Serena Wells impregnavam minha mente. “Revelações estarão esculpidas em mármore”, as palavras transcritas no bilhete apontavam.

Adormecer enquanto sentia o redemoinho irrequieto da minha ânsia de desvendar aquele chamado incitado provou-se ser uma tarefa dissoluta. Não poderia sair do meu dormitório agora que recém havia retornado a ele, fora que meu corpo traiçoeiro demandava descanso. Saber que não existia um prazo para que fosse verificar a tal revelação no local mencionado era me acalmava um pouco. Pois precisava me organizar a todo custo. Ser menos imprudente ajudaria-me a compreender a origem – e a razão – desse mistério absurdo.

A sensação pertinente cultivada por mim mostrava-se ser a de paranoia pelo pressentimento tortuoso que alguém estava a observar meus atos, tudo dada a informação concedida no bilhete anterior. Algum indivíduo sabia quanto meu comparecimento naquele horário na noite do cemitério. E isso só poderia indicar que estava a ser alvo da vigilância alheia. Quis me inviabilizar para desviar dessa invasão.

Afundada no abrigo aconchegante dos meus cobertores, mantive o novo bilhete um tanto amassado aprisionado ao meu punho cerrado. Logo, o sono venceu a minha turbulência mental. E meus sonhos me conduziram para o único lugar onde almejava estar – o último lugar que havia encontrado Serena enquanto ela ainda estava viva.

~

O inverno se aproximava. As baixas temperaturas traziam a ameaça de uma nevasca carregada para a continuidade dos dias a seguir. A se destacar dentre meu campo de visão, somente os tons brancos glaciais do hospital o qual vim a ser consultada mostrava-se evidenciado. E aquela ambientação regada de morosidade do meu leito de recuperação me desgastava severamente.

As sessões com especialistas determinavam a concordância de que meu estado era permanente. Foi-me desaconselhado que praticasse esgrima profissional, ou qualquer esporte de impacto direto, visto que ao fazer isto, estaria deteriorando mais a movimentação do meu braço, e assim ocasionando no acúmulo de dores mais agudas. Neste dia em especial era quando ocorria minha liberação.

Aguardei por longas e cansativas horas para que meu pai viesse me buscar. Mas ele não compareceu, simplesmente comunicou ao hospital a autorização para que eu fosse liberada sozinha, pois ele tinha um outro imprevisto urgente para tratar.

Ocorrências de ausência parental assim já não me incomodavam mais. Minha angústia residia na limitação que me foi imposta. Já não tinha lágrimas para derramar sobre qualquer outra dor resguardada nas profundezas do meu peito abatido e derrotado.

Ao ter sido emancipada para sair da minha estadia hospitalar, decidi logo de imediato não retornar para casa. A monotonia caseira me irritaria. Permanecer em repouso me massacrava. Então mesmo com meu braço enfaixado, segui rumo até um jardim frente à praia – este que ficava na divisa entre as cidades Northways e Bullworth, respectivamente.

A distância do hospital ao meu destino não era longínqua, por isso consegui chegar nos âmbitos expansivos do parque próximo a enseada, em questão de poucos minutos de caminhada. Creio que essa facilidade de locomoção deva ser atribuída como um dos únicos benefícios de se habitar uma cidade pequena. Transitei por tais redondezas arborizadas à beira-mar, e optei por sentar em um assento recluso ao ter alcançado a parte do jardim com a vista perfeita para o mar.

Fiquei a contemplar a linha do horizonte, atenuando-me a cada quebra de onda e inalando a fragrância congênita da maresia, imaginando meu corpo sendo envolvido pelas águas. Minha mente divagara interruptamente e essa forma de dissociação durou até o pôr-do-sol dar lugar ao advento da noite no vale vasto dos céus.

Devido o foco que despendi no oceano, pouco reparei na multidão que se reunia para a celebração de algo, notavelmente próxima da área a qual me encontrava. Barracas de alimentos e jogos estavam a serem erguidas, tendo a iluminação de luzes pisca-piscas servindo de auxílio com os postes de luz do parque. E fora ali que presenciei a figura virtuosa de Serena Wells, acompanhada por suas fiéis escudeiras – ou melhores amigas, por assim dizer. Serena estava a estar cumprimentada por diversas pessoas nesse curto período que mantive a observá-la em distância razoável. Estas pessoas indicavam estar parabenizá-la, e recebiam seu sorriso mais cortês ao agradecê-las.

A presença majestosa da líder do time feminino de esgrima de En Garde me atraia como se fosse o magnetismo insistente de um imã. Erguei-me do meu assento e caminhei para cair sob a órbita de Serena, tal como usualmente tanto fiz no passado.

Não demorou muito para que ela me fitasse e, de imediato, aos os olhos cristalinos daquela se fixaram na minha forma, a expressão a se apossar de seu semblante normalmente ponderado era a da faceta mais crua e nítida da lástima.

Frente a frente a ela, o impasse silencioso do nosso duelo instigava aflição em nós duas. Uma parede de gelo nos separava, a manifestação explícita dos pesares de origens diferentes nos distanciava e nos congelava na mesma frequência.

— Parabéns por ter ganho o campeonato. — Mencionei, sendo a primeira a quebrar a quietude instalada no ar. Senti uma leve satisfação pelo meu timbre ter ressoado bem menos encovado do que de fato esperava manifestar.

As amigas que acompanhavam Serena trocavam olhares curiosos em minha direção, mas se mantinham de escanteio, evitando se referirem a minha pessoa. E Serena se aproximou de mim, sua essência irradiando um ímpeto a se acalorar à medida que perdurava seu olhar em cada detalhe meu persistentemente – com o apego de quem estaria perante a algo que poderia desaparecer a qualquer instante.

— Walsh, escute-me. — Pediu, demonstrando-se afoita. — Foi um acidente. Você rebateu tão rápido ao meu ataque...

A postura descomposta de Serena revelava de modo mais agudo a sinceridade presente de seu testemunho. Lembro-me de ouvi-la repetir “Me desculpe, me perdoe, por favor, esteja bem...” logo após ter desferido seu golpe fatal na arena de duelos, isso mesmo antes de saber que minha condição seria permanente. E claro, por se tratar de uma cidade minúscula onde todos sabem do paradeiro dos outros com muita facilidade, todos em Northways já deveriam saber quanto o meu estado atual.

— Sei disso. E fico satisfeita de ao menos, a minha última batalha tenha sido contra você.

Abaixei a cabeça para evitar enxergar mais a fundo o meu reflexo refletido na translucidez de suas órbitas oculares claras. A pressão da parede de gelo entre nós duas compressava meu âmago, e fez com que me afastasse da capitã do time de esgrima.

— Thea... — Um arrepio assombrou meu corpo diante do proclamar do meu nome. E este tremor veio a ser complementado pela mão gélida que alcançou o meu braço enfaixado. — Existe algo que possa ser feito para remediar essa situação?

Serena tentava estilhaçar o gelo a nos rodear com os próprios punhos, estendendo seu toque a mim sem a contenção repreendedora que estabelecia antigamente. Impactada pelo seu gesto inesperado, permiti minha mão desenfaixada repousar sob a dela.

Direcionando meu olhar para ela mais uma vez, fiz questão de aplicar firmeza no meu segurar em sua mão ao respondê-la.

— Não se permita ser derrotada. Seja a melhor esgrimista conhecida internacionalmente. Me prometa isto, e estaremos quites. — Ordenei-a, emanando convicção na minha demanda. Ver Serena prosperar agora não era algo que me feria mais – tudo o que mais queria era estar bem aqui, vendo-a ganhar o que vim a perder.

Mas não podia. Nem devia. Aquela não era mais minha realidade. As competições não me pertenciam. E eu não pertencia a lugar algum. Permanecer só me machucaria. Teria que torcer por ela me mantendo em uma distância segura.

Serena, por sua vez, me surpreendeu de novo. E interrompeu a distância que eu visava implementar ao trazer uma de minhas mãos até seus lábios roseados, para assim depositar um beijo acalentador e prolongado na minha pele em um resplendor reverencial – bem diante de suas amigas e todas as pessoas presentes naquele festival.

Quando os lábios daquela se afastaram da minha mão, uma súbita ventania soprou contra os cabelos dourados da capitã de esgrima e fez com que o coque o qual prendia suas madeixas douradas se afrouxassem. 

Ali, de rosto erguido para me encarar, tendo as mechas de cabelos levemente soltas a demarcarem sua face a modo que lhe conferia uma impressão angelical, Serena me concedeu o amparo mais precioso possível. E o seu sorriso desenvolto, recheado de confiança recarregada junto a sua afirmação convicta acentuou a resposta declarada, esta que veio abrasar da minha alma de forma imensurável:

— Eu prometo. Dou minha palavra.

~

O gosto amargo de uma promessa encerrada antes de sua hora retalhara meu coração palpitante e rompeu meu estado de sonolência de maneira abrupta. Lágrimas inconvenientes caíam dos meus olhos sem minha permissão, mas logo as pus a cessarem a partir da limpeza ríspida manuseada pelas minhas mãos trêmulas.

Acabei assim por despertar mais cedo do que meu relógio e mais cedo até mesmo que o próprio sol. Meu corpo temente de tanto estresse absorvido doía, e meu braço lesionado pungia visceralmente do ombro até toda a extensão do meu antebraço. 

Utilizei minha dor física para intensificar a urgência da circunstância que me atormentava. Debrucei-me para sentar na cama e averiguar o bilhete mais uma vez, com a euforia um pouco mais centralizada. Eram cinco da manhã e as informações escritas em papel continuavam as mesmas. Tentei me atentar as letras e identifiquei que se tratavam de fato da mesma caligrafia usada no bilhete passado – eram letras de forma, rústicas, com uma separação excessiva nas suas sequências de formação. 

Até que me dei conta de um detalhe deixado despercebido, não a respeito do bilhete, mas dos meus arredores. Pinky não estava em nosso quarto. Ao ter virado para mirar sua cama, aquela já estava perfeitamente arrumada, com os lençóis bem dobrados.

Fiquei a questionar onde ela poderia estar e também se a tal teria estado presente no quarto quando se foi inserido o bilhete de baixo do meu travesseiro. Movida por uma resolução repentina, me levantei com cautela redobrada e caminhei até a parte do quarto que pertencia a Pinky. Inspecionei o local com o intuito de encontrar qualquer coisa que tivesse a escrita daquela transpassada para comparar com a do bilhete. 

Sob qualquer outra instância, iria repudiar até mesmo o pensamento de violar a privacidade alheia. No entanto, precisava verificar minha teorização antes de qualquer pressuposição precipitada. E por isso, fixei minha observação na escrivaninha incrivelmente organizada da preppie em questão.

Vim a encontrar bem acima da mesa de estudos daquela um caderno fechado de tamanho mediano, com um tom azul claro reluzente. Hesitei por um segundo cronometrado a ação de abri-lo, mas minha convicção inicial retornou e me conduziu a analisar suas páginas sem me atentar ao seu conteúdo, e sim, a caligrafia.

 

Querido diário, hoje a desgraçada da Lola conseguiu ir a um encontro com a Thea! Estou tão furiosa que poderia estapear a Lola assim que a visse de novo. Ela sabe bem que gosto da Thea desde sempre... Eu simplesmente odeio tanto a Lola!

Mas minha nossa, de contraponto positivo, a Thea me confessou gostar de garotas! Significa que posso ter uma chance?

Céus, eu já nem sei...

Derby me chamou para um encontro no cinema depois de amanhã. Papai quer muito que eu vá, ele disse que formaríamos um casal exemplar. Ver papai me incentivar a algo com tamanho entusiasmo me consola do fato dele estar renovando os votos de casamento com a bruxa da minha madrasta. Chego a odiar essa mulher quase tanto quanto odeio a Lola.

Queria tanto saber gostar de Derby tanto quanto gosto da Thea...

Queria não me sentir tão suja. Tão sozinha, mesmo quando estou em meio à multidão de amigas que talvez nem fossem falar comigo se soubessem da minha realidade.

Queria tanto poder voar para longe desses sentimentos de inconveniência. Tal como um pássaro livre faria [...]”

 

A letra de Pinky era cursiva, cheia de adorno na pontuação e pequena – esbanjava uma delicadeza formidável. E a vulnerabilidade evidente de suas palavras de desabafo traziam à tona a veracidade do que Lola havia me revelado em nosso encontro. Senti minha garganta apertar em remorso. Tanto pelo conhecimento da situação passada por Pinky, quanto por ter violado a intimidade daquela dessa forma.

Levando em conta as diferenças da caligrafia de Pinky com a presente nos bilhetes, era justo considerar que talvez ela não fosse a responsável em transcrevê-las. Contudo, onde estaria a garota em questão, neste exato momento? Ainda mais nesse horário.

Sons de água vaporizada colidindo no chão ressonaram ao meu alcance.

Atentei minha escuta até desvendar a origem daquele barulho vindo do banheiro e suspirei pesarosa ao me dar conta finalmente do paradeiro de Pinky. De imediato, tomei todo o cuidado que pude para fechar o diário propriamente e deixa-lo no exato ângulo que este se encontrava antes da minha invasão. 

E me afastei do canto do quarto daquela, retornando ao meu.

Ponderei se deveria pergunta-la se ela avistou alguém adentrando nosso quarto. Mas não queria arriscar divulgar para percepções alheias sobre o que estava a passar, devido ao risco de comprometer na investigação do responsável pelos bilhetes. 

E meu almejo ressequindo por respostas me afligia, queimava-me, pulsava por dentro de mim mais profundamente do que a dor a se alastrar pelo meu braço inteiro.

Tentei realizar um alongamento nos braços para reduzir a pressão incômoda a qual me esmagava. Ainda faltavam algumas horas para o meu horário de tomar o remédio entorpecente, e não podia antecipar ou atrasar, visando não cortar os efeitos dele.

A única forma que conseguia pensar para relaxar meus músculos seria através da água quente. Por alguma razão eclipsada, considerar isto fizera meu corpo esquentar.

Pinky estaria lá. E as palavras que vislumbrei em seu diário ecoavam na represa dos pensamentos disparados. A confirmação do que ela sentia por mim trazia à tona emoções soterradas as quais não queria contemplar em meu interior tumultuado.

Engoli seco e tentei ignorar as margens aleivosas a perpetuar minhas reflexões, recolhi um short de pijama que não pude colocar ao ter retornado muito tarde no dormitório e após trajá-lo, pus uma toalha em meu ombro para seguir o trajeto ao banheiro.

Adentrando a área de banho, o território estava bastante iluminado pela luz branca das lâmpadas potentes, e o calor emitido pelo único chuveiro ligado irradiava e reconfortava meu corpo mesmo antes de pudesse mesclar-me as águas. A divisória entre os chuveiros continha uma porta como exclusiva forma de privacidade. 

Escolhi por me deslocar até a última porta de escanteio próxima a parede. Pinky ainda estava com a sua porta fechada, desfrutando da chuveirada do expositor do meio.

O privilégio do local que selecionei para meu banho era que na entrada dele, existia um auxílio encostado na parede para repousar alguns pertences, como roupas e a toalha. Só que no mesmo segundo que estive com as mãos segurando as bordas da minha camiseta regata para erguê-la e propriamente retira-la, o som do chuveiro de Pinky foi-se encerrado e a porta onde a garota estava a se banhar se abrira.

Uma névoa de vapor foi-se expelida neste instante. E Pinky sairá de lá, seu corpo desnudo com respingos d’água a evidenciar suas curvas reluzia sob a claridade do ambiente. Mesmerizada por aquela visão celestial durante uma boa fracção de segundos, acabei sentindo minha face fervilhar ao manter-me a contemplá-la.

Exercitando a decência inerente do meu pudor, com uma certa urgência, acabei por desviar o foco do meu olhar de sua figura e centralizei minha ótica em seu rosto, este que se encontrava a exibir uma feição simpática tão característica daquela.

— Oh, Thea, é você! — Saudou na mesma instância em que recolheu a toalha pendurada na porta onde se banhava, e assim, veio a envelopar o tecido aveludado em sua moldura primorosa, se encobrindo da minha contemplação contida sem nenhuma pressa aparente. — É a primeira vez que a vejo acordando cedo.

— Bem, é que eu... — Um tanto embaraçada, retratei minhas mãos que estavam ainda segurando minha camiseta e as resguardei para que uma delas fosse bagunçar meus cabelos em ato palpável de um nervosismo. —, tive um pesadelo desconcertante.

Pinky havia terminado de se ajustar em sua toalha e sua atenção perdurou-se inteiramente em mim. A emoção que pressenti ser transmitida através da natureza de seu olhar era de apurada comiseração. Meio a isto, a garota moveu-se um pouco para frente, aparentando endossar sutileza em seus passos voltados a minha direção.

— Um pesadelo? Tadinha. — Lamentou, ternura tangível escapulindo por sua fala. Essa brandura foi passada em sua questão a seguir. — Veio tomar banho para relaxar?

Por vezes, pressentia a presença de Pinky semelhante ao envolver aquecido de cobertores macios. Sentia-me aconchegada só de estar diante dela. E isso significa muito, levando em conta que sou totalmente desacostumada com afetividade em geral, tendo em vista a minha criação desprovida de acolhimento.

Levei minha mão para puxar meu braço flagelado para próximo do meu corpo e assim adotei uma postura acoita para enfatizar o estorvo que me assolava no momento.

— Sim. Água quente tende me consolar e ajuda na dor do meu braço também. — De maneira franca, repliquei a pergunta daquela. Inevitavelmente, uma sobrecarrega de emoções encapsulavam-me tal as águas de um rio impetuoso fariam – isto devido a aproximação de Pinky, esta que continuava a se incrementar em gradualidade.

O olhar amistoso que a preppie despendia ao meu alcance possuía um intendo atentivo as minhas reações. Os lábios roseados levemente repartidos daquela chamavam minha atenção toda vez que ouvia sua voz ressoar, e o detalhe irrevogável do seu busto permanecer notavelmente acentuado mesmo com o acobertamento da toalha trazia à tona um rubor beligerante a se apossar do meu rosto.

— Também encontro muito conforto em banhos quentes, mesmo sem nunca ter tido muitas dores corporais ou pesadelos. Costumo acordar cedo em dias que seleciono para lavar o cabelo. Assim, tenho bastante tempo para prepara-lo antes das aulas. — Explicou de maneira descontraída, gesticulando para seu cabelo molhado jogado para trás.

A umidade de suas madeixas castanhas fazia com que um tom mais escuro do que o habitual interferisse na coloração que compunha seus fios. Mas confesso ter considerado adorável o modo como o rosto dela parecia mais polido e cândido por conta desse detalhe. Pinky emanava uma elegância formidável mesmo nesse estado.

O que me chateava era saber quanto o motivo por trás dela ter acordado tão cedo. Esse fato fez com que me sentisse mais culpada por ter ido conferir o diário dela com a suspeita de que ela poderia ser a responsável pelos malditos bilhetes misteriosos. 

Cabisbaixa, adverti meu olhar do dela afim de recuperar um fôlego que não percebi ter prendido, somente para ter minha atenção retomada a ela quando senti meu corpo turbinar sob o polegar suave que veio erguer meu queixo para encará-la mais uma vez.

— Ei, Thea. — Retirando-me dos meus pensamentos penalizadores ao utilizar tanto seu toque quanto a sua voz acalentadora, Pinky levantou seu questionamento com seus olhos caramelados me fitando com preocupação dedicada. — Fiquei sabendo da sua corrida contra o Johnny Vicent. É por isso que está tão tensa?

— Pois é. Ele é um arrogante infeliz que me desafiou a isto. — Sem poder revelar a razão pela minha abrasão, tive de atribuir a corrida como a fonte da minha ansiedade.

Pinky estava tão próxima e eu estava enfeitiçava pelo seu contato. O polegar dela se deslocou do meu queixo e seus dedos delicados trilharam a extensão do meu pescoço até repousarem em meu ombro enrijecido pela dor – aquele toque úmido e acalorado conseguia relaxar meus músculos tensionados de forma tão deleitável, que poderia deitar-me sobre o conforto afável de sua palma e demorar a me desvencilhar.

— Isso tem algo a ver com a Lola? — A voz de Pinky soou ferida, até mesmo um tanto mimosa. O brilho de seus olhos entregava a presença de um ciúme pouco contido, o qual parecia engrandecer-se diante da hipótese que ponderava ao ter me interrogado. 

Vim a alargar meus olhos com uma certa urgência em consolá-la. 

— Meu desafio contra Johnny não tem nada a ver com Lola. Digo, a motivação dele é sem dúvidas se exibir para ela. Mas eu simplesmente quero derrotá-lo por ele ter me menosprezado, fofocado coisas que só dizem respeito a mim e também por ele ter ameaçado bater no meu amigo. — Reafirmei ao mesmo tempo em que trouxe uma de minhas mãos para acariciar com leveza o pulso dela em um gesto apaziguador. 

— Meu Deus, que babaca. Não consigo ver o que as outras garotas acham de tão atrativo nele. — Hostilizou, já liberta do desagrado que veio a abalar antes.

Antes que eu pudesse concordar com o seu comentário. Pinky continuou a declarar:

— Mas saiba que estarei torcendo por você. Inclusive, já que está aqui, quero te conceder uma espécie de amuleto da sorte. — Enquanto se pronunciava, ela se moveu de modo que veio a remover sua mão repousada em meu ombro; consequentemente também afastando-se do meu contato em sua pele.

— Meu pai me comprou esse colar quando visitou Milão e lembrou de mim. Ele disse que me levará lá para fazermos compras juntos no fim do ano letivo.

Sua voz acetinada continuou a informar, dessa vez com os olhos para o horizonte. E tendo as suas mãos reunidas a segurar o colar dourado enfeitando sua clavícula.

— Desde que me entendo como pessoa, lá se tornou o meu “lugar seguro”. Sempre quando estou muito estressada ou chateada, tento me imaginar transitando pelas ruas daquela cidade somente por fechar os olhos e segurar nesse colar.

Ilustrando a invocação mental que estava a compor, Pinky cerrou os olhos suavemente ao dedilhar carícias no pingente de que tinha uma pedra azul celeste no núcleo. Sua entrega para descrição do que havia me revelado era genuína o bastante para me transportar para lá junto a ela. Nem que fosse por somente alguns segundos.

— Sei que todos nós temos o nosso lugar seguro – o local onde mais nos sentimos em paz mesmo perante tempos difíceis. Te emprestando esse meu colar seria minha forma de incentivo para que que você tivesse um lembrete do seu próprio lugar especial, mesmo em sua corrida contra o Johnny Vicent. — A serenidade presente em suas palavras me abrandava a prumo colossal. E quando os olhos dela se abriram novamente, o seu sorriso afável que iluminou sua face preenchia-a de graciosidade.

Dentre toda essa reflexão sobre qual era o lugar que mais me sentiria segura, acabou sendo impossível de conter a realização a permear minha mente; a qual acentuava a imaginar que, se Pinky fosse um lugar – um ambiente em que pudesse habitar, tal seria onde me encontraria mais abrigada perante as correntezas imprevisíveis da vida.

Mas, havia um lugar de fato que sempre ia quando precisava restaurar minhas energias vitais. O mar, em toda sua magnitude, era onde sentia-me mais ancorada. E era lá que me imaginaria quando os apuros daquela corrida estivessem a me sobrecarregar.

Saindo do transe das minhas contemplações mentais, percebi Pinky removendo o fecho da corrente que enlaçava seu corpo. Tendo-a tirado de si, ela anulava ainda mais a distância entre nós ao trazer o colar aberto para encobrir o meu pescoço.

— Pinky, você não precisa-...

Jazei o toque de minha mão em seu pulso mais uma vez a prol de dar ênfase ao meu rogo entrecortado. Ignorando meu embaraço, através de uma presteza provinda do hábito de colocar joias em si mesma, Pinky rapidamente fixou o colar em mim. Suas palmas agora um tanto mais secas repousaram nas laterais do meu pescoço com delicadeza, parecendo admirar a maneira como o colar recaia sob mim.

— Bobagem. Confio em você, confio no seu potencial e acredito que virá a me devolver o colar com um título de vencedora a te acompanhar. — Assegurou sem hesitação, a certeza a respeito da minha vitória esculpia mais o encanto refinado de seu sorriso e trazia-lhe um brilho no olhar que enchia meu peito de convicção.

Reivindicada pela confiança que ela depositava na minha pessoa e ao mesmo tempo arrepiada pela proximidade mantida de nossos corpos, tomei um impulso inesperado de puxá-la pelo pulso para que colidisse contra mim e assim, abracei-a com meus braços envoltos em sua cintura. Tentei mimicar a gentileza que ela tanto utilizava quando me tocava, a textura de sua toalha passava umidade morna para minha forma. E fui de imediato retribuída em meu gesto por intermédio do afago vindo daquelas mãos brandas na minha coluna.

Quando desvencilhei-me do nosso abraço e a encarei novamente, seus olhos transmitiam um aspecto ébrio, sua expressão parecia rendida as emoções ociosas e extasiadas.

A margem que nos dividia era recheada de palavras não ditas e toques regados de suavidade. Não era uma parede de gelo tal qual existia entre eu e Serena no passado. E ainda que pouco soubesse ao certo sobre a extensão do que eu poderia sentir por Pinky – sabia que não deveria interferir no processo individual dela em respeito seus próprios sentimentos e o modo como vinha a lidar com sua sexualidade. Estaria lá para ouvi-la se um dia ela estivesse pronta para isso.

Jamais iria violar a privacidade dos pensamentos dela de novo. E identificaria o responsável por trás dos bilhetes sem prejudicar ninguém ao meu redor. Pelo menos, assim espero.

Abastecida de confiança, e esbanjando um sorriso que poderia denotar esse meu estado afirmativo. Ofereci minha gratidão a garota embevecida a minha frente:

— Muito obrigada, Pinky. Cuidarei do seu colar com carinho. E a retornarei em breve.


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