Audeline escrita por Jardim Selvagem


Capítulo 10
Capítulo 8


Notas iniciais do capítulo

Música: Villainous Thing - Shayfer James



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Apesar das insistências permanentes do filho, Billy Black não queria saber de parar de trabalhar tão cedo. Para que passar panos quentes na realidade, meu filho? Estava velho, aquilo era inegável — os pés de galinha ao redor dos olhos lembravam-no do fato toda manhã no espelho. Mas o que mais poderia fazer se não trabalhasse? Morava sozinho em Portland. Recusava-se a contratar alguém para ficar aí em casa e ajudar nos afazeres domésticos, pai. Desnecessário. Posso estar velho e coxo, mas ainda estou vivo. Vivo e lúcido, e isso é o que importa de verdade, meu filho.

Sem Sarah para beijar-lhe a testa pelas manhãs e sem Duque para lamber-lhe a face à noite (que Deus os tenha), Black precisava de algo que o ocupasse diariamente. Algo que o distraísse da verdade amarga: já passara da metade de sua vida, e dali para frente não lhe restava muito mais tempo.

A distração era sua rotina, que ele seguia com rigor científico. Acordava às seis em ponto — velhos como eu dormem pouco e têm o sono leve, acordamos com sussurros da morte nos ouvidos —, mancava até o banheiro e fazia a toalete, ajeitando os fios grossos com a mesmíssima pomada de quando garoto.

Arrastava-se até a cozinha e preparava o café, a fumaça da água fervente embaçando a visão. Depois de um gole no café amargo, ia esquentar o pãozinho, tirando o miolo e passando dentro a geleia de morango sem açúcar (diabetes, meu filho, diabetes). O líquido vermelho sempre acabava escorrendo. Um pão francês ensanguentado para o café da manhã.

Assim que terminava a refeição, pegava a maletinha de couro, arrumada na noite anterior com os documentos necessários e os cadernos pretos das investigações, e saía porta afora.

Também não queria saber de táxi. Preferia andar até o escritório, mesmo que depois a perna esquerda protestasse a decisão. Ele parava na banca de sempre e comprava um exemplar do jornal estadual e outro francês antes de atravessar a rua e subir os lances de escada até o escritório no quinto andar.

Seria preciso acontecer algo muito insólito para perturbar aquela estrutura diária meticulosamente arquitetada pelos dedos precisos e enrugados de Billy Black.

Pois naquela manhã, na segunda quarta-feira de abril, uma anomalia fez com que Black escolhesse não as suas leituras típicas, mas sim, imagine só, uma revistinha de fofocas qualquer.

Uma revistinha de fofocas que acusava seu último cliente de agredir mulheres.

— Eu ainda não consigo acreditar que entramos voluntariamente num ninho de vampiros.

— Eu ainda não consigo acreditar que troquei saliva com um deles…

Leah bufou, olhando os pontos da costura recente em seu pulso. E eu não acredito que quase fui o jantar de todos eles. Mas, apesar do flerte com a morte, ela se forçava a ver a situação pelo lado positivo: ao menos conseguiram mais informações sobre a primeira vítima, além de descobrirem que o Bar 54 era um ponto de encontro vampiresco — com direito à praça de alimentação e tudo.

Rosalie ficou de bruços na cama, levantando a cabeça para olhar as outras duas.

— Sabem o que eu acho? Acho que Lauren sabia muito bem com quem e onde estava se metendo. E não devia dar a mínima se era a porra do lanchinho noturno deles. Mas ficou tão fraca e desnutrida que depois não servia pra mais nada, e a ruiva e o tal do Laurent decidiram se livrar dela como se ela fosse um suco de caixinha fora da validade. — Rosalie terminou seu discurso com um sorrisinho de superioridade no rosto.

Leah ponderou sobre o assunto durante alguns minutos.

— Me vejo obrigada a concordar com a sua teoria. Lauren Mallory deve ter se tornado a fonte primária da dupla que a acompanhava. Mesmo assim, não podemos descartar a possibilidade de que outra criatura seja responsável por sua morte.

Os olhos atônitos de Bree pulavam do rosto de Leah para o de Rosalie.

— Esperem aí um momento… Então existem outros seres humanos que não só sabem da existência de vampiros como também oferecem a eles o próprio sangue? — As mãos de Bree tremiam. — Isso é loucura.

— Ah, novata, tem tanta coisa sobre esse mundo que você ainda não sabe…

— E o que exatamente seria essa fonte primária que vocês mencionaram? O que isso sig…

— Você acha que ela acessava o fórum? — Rosalie perguntou à Leah, ignorando os questionamentos de Bree como se ela nem estivesse ali.

— Que fórum?

— Aposto que os amiguinhos vampiros têm perfil lá, devem ter mostrado pra pobre coitada e tudo. Hmmm, qual será o nome do perfil dela…

Meu Deus, que fórum?

— …Será que é alguma coisa tipo LaurenPescocinhoGostoso666?

— QUE FÓRUM?

Leah suspirou. Às vezes esquecia que Bree só estava com elas há menos de cinco meses. Ela ainda nem conseguia manusear uma estaca direito. Ainda não sabia como fabricar o veneno. Talvez por isso Rosalie insistisse em chamá-la de novata, injetando afeto e ao mesmo tempo condescendência no apelido. Leah observou Bree, o jeito como seus ombros encolhiam-se e tremelicavam quando o assunto era vampiros. Sim, o medo apoderava-se de seu corpo, mas não escalava os olhos. Os olhos carregavam uma resignação obstinada, como se dissessem a si mesmos para reprimir as lágrimas e aceitar a dura tarefa de permanecerem abertos, bem abertos, pois o inimigo escondia-se nas sombras.

— Rose, vamos mostrar a ela.

Bree olhou para a tela por sobre o ombro de Rosalie. Nunca a vira tão concentrada como agora. Seus dedos delicados digitavam com habilidade, e, após reiniciar o computador, ela acessou a internet por um programa que Bree não conhecia: um tal de "Tor Browser".

Rosalie então digitou um endereço estranhíssimo — um amontoado aparentemente sem sentido de letras, que terminava não em "ponto com", mas sim "onion" — e, após longos minutos de carregamento, surgiu uma página de fundo branco e diversas seções com links. Uma Wikipédia às avessas: ali o nome era "The Hidden Wiki". No canto direito da tela, havia diversas seções. Redes Sociais, Serviços Financeiros, Serviços Comerciais, Blogs, Fóruns, Livros, Drogas, Pornografia e inúmeros outros tópicos.

Bree deu uma olhadela em Leah. Ela tinha sua habitual expressão de tédio, já acostumada ao que quer que fosse que Rosalie estava fazendo.

— Hmmm… O que é isso tudo? — Bree perguntou.

Rosalie girou na cadeira para encará-la. Abriu os braços e agitou as mãos como se estivesse em uma apresentação de teatro.

— Bem-vinda à dark web, novata!

Dark web? A expressão parecia vagamente familiar.

— Sabe como é, a parte obscura e ilegal da internet, blá blá blá, vamos ao que interessa.

O mouse voou pela página, as palavras e links transformando-se num borrão diante dos olhos de Bree, até que pousou na seção de fóruns e blogs. Havia um site chamado "Dark Creatures".

— Tá vendo isso aqui? Isso, novata, é o principal site sobre vampirismo na dark web.

Está de brincadeira…

Ela clicou no link — novamente um emaranhado ilógico de letras e o fim com "onion" — e uma página rudimentar com fundo preto e letras vermelhas preencheu a tela. Ali havia de tudo — desde a história do surgimento de vampiros até guias ilustrados de como esconder corpos humanos. No título principal, lia-se: "Manual Prático de Vampirismo". Bree teria rido se não soubesse a verdade. Aquilo soava como um daqueles livros pesados de capa dura típicos das livrarias comerciais: manual prático de etiqueta, de moda, de culinária. Em uma versão mórbida, ela quase esperava encontrar ali uma receita adaptada de morcela. Você vai precisar dos seguintes ingredientes: 4 xícaras de sangue humano fresco…

Rosalie clicou na chamada "Lista de Classificados". A nova página tornou-se branca, assustadoramente comum. A tal lista de classificados nada mais era do que uma lista de voluntários. Um grande e anônimo banco de doação de sangue.

— Nem todos os vampiros usam essa lista, muitos ainda preferem o método old school de caçar ao vivo e coisa e tal, mas pelo menos aqui eles já encontram fontes de alimentação. E de graça — Rosalie disse.

— Meu Deus. — Bree sentiu vontade de vomitar. — Por que alguém em sã consciência faria is…

— Alguns esperam que os vampiros acabem transformando-os também, mas normalmente o que acontece é o definhamento gradual, a perda da vitalidade humana — Leah explicou em tom acadêmico.

O site mostrava inúmeros usuários, todos com nomes falsos, é claro, e, junto às descrições e informações para contato, havia pequenos quadrados com imagens de peles, veias inchadas e feridas sangrentas. Um dos perfis revestia-se de uma doçura mórbida: o nome "Lucy Westenra", uma alusão à personagem da obra de Bram Stoker, tinha a foto de um pescoço pálido e fino, como o de um cisne, com mechas loiras ao redor da pele, envolta por um laçarote de gorgurão preto. No texto, ela oferecia o "raro e delicioso sangue A negativo" em troca da companhia de um "vampiro culto, belo e que saiba respeitar uma mulher". Ah, sim, é mesmo um grande gesto de respeito sugar o sangue e tirar a vida alheia aos poucos. Gente maluca. O status do perfil havia mudado para indisponível no fim de janeiro. Pelo jeito Lucy Westenra encontrou o tal vampiro culto e belo.

Aquilo tudo era doentio. Bree quis sair do cômodo imediatamente, para longe daquela tela perturbadora. Mas os pés continuaram firmes no chão, os dedos contorcendo-se dentro das pantufas rosas, como se quisessem rebelar-se contra a ordem do cérebro. Enquanto isso, Rosalie e Leah não pareciam nem um pouco afetadas pelo que viam.

— Encontrou alguém que possa ser Lauren? — Leah perguntou.

Rosalie chegou ao fim da página.

— Acho que não. — Ela voltou para o site principal de vampiros. — Mas tenho certeza que ruivinha e companhia acessam isso aqui.

— Por quê?

Rosalie clicou na seção de recomendações e entrou na lista de Phoenix. Ao lado de diversos outros lugares, lá estava o Bar 54.

James não se importou nem um pouco se parecera desesperado aos olhos de Black quando ligou para sua assistente agendar um voo para Phoenix o mais rápido possível. Para que perder tempo quando ele finalmente tinha algo de concreto sobre Giulia?

A cabeça ainda em chamas não tinha elaborado nenhum grande plano quando reservara a passagem de avião. Não sabia o que faria quando desembarcasse. Ela poderia estar em qualquer rua da cidade. James tinha a mira da espingarda apontando no escuro. Mas daria um jeito de acertar o alvo.

Black o aconselhara a permanecer em Portland, pedira que esperasse algumas semanas até que conseguissem mais informações. Dane-se o que pensa aquele velho. Vou encontrá-la nem que tenha de percorrer esta maldita cidade de joelhos.

Respirou fundo. Precisava acalmar-se. Ignorou pela quarta vez a ligação de seu agente — a última coisa que queria pensar naquele momento era no trabalho. Foi até o banheiro do aeroporto e jogou uma água fria no rosto. As olheiras pareciam mais profundas do que nas semanas anteriores. Respirou fundo mais uma vez. Giulia instalou-se nele de tal forma que afetou a qualidade de seu sono, de sua pele. Sua aparência atual era apenas uma amostra da corrosão interna.

Quando voltou para o banco próximo ao terminal dois, percebeu um mar de olhos hostis, agarrando-se a ele como se quisessem afogá-lo. Estranhou. Esperava receber os costumeiros pedidos de fotos, autógrafos, abraços e elogios.

Olhou para o relógio. Ainda tinha bastante tempo de espera antes da chamada para o embarque. Resolveu ir até uma banca não muito longe dali e comprar um jornal. O celular mal começou a tocar (seu agente, de novo) e ele desligou. Quando entenderiam que James não desejava ser importunado naquele dia? Não dava a mínima para as reuniões e futuros contratos de trabalho.

Ao entrar na loja, sentiu mais olhares condenatórios perfurando suas costas. O que cargas d'água estava acontecendo? Havia se visto no espelho e não encontrara nada de anormal.

Procurou o exemplar do jornal que costumava ler. Quando encontrou, sentiu a pele em chamas. Não pelo conteúdo de seu jornal favorito, mas pela capa da revista de fofocas ao lado.

Na chamada principal, lia-se: "James Witherdale: abusador de mulheres? Confira os bastidores das relações conturbadas do ator de 'Crepúsculo."

Comprou aquela porcaria e saiu da banca apressado, dentes trincando, dedos amassando as bordas da revista. Escolheu desta vez o banco mais afastado dos passantes antes de sentar-se e abrir a matéria.

O celular tocou novamente. As pessoas encaravam-no como se ele fosse um inseto repugnante que invadiu suas casas. Apertou o botão para falar com seu agente.

— Dale, por que não me atendeu antes? Tenho algo urgente para falar com v…

— Já comecei a ler a matéria.

James ouviu uma respiração pesada do outro lado da linha.

— Escute. As notícias não são boas. O diretor do próximo filme retirou o convite para sua participação.

— Estou muito preocupado com essa…

— E ligaram agora há pouco para cancelar os contratos publicitários deste e do próximo ano, Dale.

— Me poupe dos detalhes, Richard, não quero s…

Preste atenção. Estamos no meio de uma crise de imagem aqui. Uma crise de imagem gravíssima. Tentarei contornar as coisas, mas não será tarefa fácil, Dale. Quero que faça…

— Não vou fazer retratação pública nenhuma, essas acusações são absurdas, minha vida pessoal não é da conta de ninguém, está me ouvindo?

— Ao contrário. Não quero que se pronuncie, aliás, não quero que faça nada. Preciso que você desapareça da mídia nas próximas semanas. Não chame a atenção para si mesmo. Tome cuidado ao sair de casa, evite os paparazzis, evite qualquer companhia humana, se possível.

— Posso fazer isso.

— Você não pode, você vai fazer isso enquanto não arrumo as coisas, certo? Por favor, Dale, me ajude aqui. Estou correndo contra o tempo.

— Já entendi, Richard, já entendi. Quer que eu desapareça? Vou fazer isso. Agora, se me der licença, tenho uma matéria para ler, sim?

E desligou sem esperar uma resposta.

Abriu a revista na página 21, seu próprio rosto encarando-o de volta no papel. Era irônico como no início do ano ele também estava num aeroporto, vendo a si mesmo estampado nas capas de revista. Os editores eram mesmo umas raposas. Antes escolhiam uma foto sua sorridente, descontraído, as linhas na testa suavizadas digitalmente. Agora mostravam um James carrancudo, boca fechada, rugas fundas na testa, manchinhas de sol na pele, olhos frios e cruéis. Ele segurava as folhas com tanta força que amassou as margens.

Conforme lia, aumentava dentro dele a vontade de cuspir nas páginas, rasgá-las e depois queimá-las até sobrarem apenas as cinzas em suas mãos. O texto não só revelava cada detalhe não muito agradável de sua vida pessoal e de seus relacionamentos anteriores, como também o pintava como uma espécie de psicopata cujo hobby principal era agredir indivíduos do sexo feminino. Quanto exagero. James nunca viu tantas distorções juntas de uma só vez.

E as fotos? As malditas fotos… Como a tal de — olhou o nome no canto da página — Angela Weber conseguiu aquilo? As imagens eram terríveis. Aqueles filhos da mãe, devem ter editado tudo para aumentar o contraste e a saturação, tornar as fotos vivas, pulsantes, fazer a coisa toda parecer mais grave do que realmente era. Os hematomas, as antigas ordens de restrição e os contratos de sigilo, todos acenando para ele como velhos conhecidos que se esbarram depois de um longo tempo afastados.

Como Angela Weber conseguiu isso? A pergunta letal acoplou-se à sua mente, teimando em permanecer enquanto não obtivesse uma resposta.

Olhou de novo para as fotos. Franziu o cenho. Uma em particular chamou sua atenção. O fundo exibia um piso de mármore negro, os veios finos e dourados atravessando a superfície lisa. E, no centro da foto, um acervo admirável de fragmentos de perfumes, os cacos reluzindo em meio ao líquido cor de…

Bala de caramelo.

Bala de caramelo e resina de benjoim. Impregnadas na pele de boneca, nos cabelos macios, no lenço de seda e no travesseiro do hotel. Se ele fechasse os olhos, poderia sentir o cheiro penetrando suas narinas e rodopiando em seus pulmões.

Giulia.

 


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Notas finais do capítulo

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