Audeline escrita por Jardim Selvagem


Capítulo 11
Capítulo 9


Notas iniciais do capítulo

Música: Psycho Killer - Talking Heads



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O cheiro de queimado flutuou pelo corredor, adentrando o escritório e o nariz de Billy Black. Ele virou a corcunda e se levantou, apoiando-se na mesa para oferecer suporte à perna debilitada. Andou calmamente até a cozinha — para que pressa com o estrago já feito? — e abriu o forninho enferrujado. A fumaça negra invadiu-lhe a cara. A comida requentada tinha as bordas escuras e viscosas. Ocupou-se tanto com o trabalho que sua mente varreu para os fundos preocupações mundanas como o jantar.

O relógio da cozinha avisava que dali a quatro minutos seriam onze horas da noite. Ele já esperava a mensagem do filho mandando-o parar de trabalhar e ir para a cama. Os olhos cediam aos encantos do sono, mas a cabeça permanecia acordada como se ele tivesse injetado cafeína direto nas veias. Quando leu a matéria sobre James, Billy sentiu a necessidade premente de verificar o que o texto dizia. O conteúdo aparentava ser muito crível e real: as imagens em cores vibrantes e a descrição minuciosa das agressões pareciam irrefutáveis, construídas com a solidez de ferro e a consistência de cimento.

No início da tarde, enquanto ele analisava a matéria, delegou ao filho a tarefa de pesquisar com mais profundidade a vida de James Witherdale. Os resultados apareciam agora em seu computador.

Despejou a comida no prato de porcelana com desenho de limões sicilianos — Sarah e sua mania de limões, que Deus a tenha, minha querida — e pegou os talheres. Em vez de se dirigir à pequena mesa das refeições, levou o prato consigo de volta para o escritório.

Na tela do computador, o relatório de "Black Investigação Particular". Os olhos cansados voltaram a acompanhar o texto. Conforme ele vasculhava todos aqueles processos e rodava as imagens no seu programa de ampliação, sua bússola moral apontava uma conclusão desagradável. A veracidade dos abusos de James Witherdale era suficiente para inaugurar o cultivo dos inevitáveis questionamentos em seu cérebro. Será que ele fez isso com —

Ele atendeu o telefone no segundo toque.

— Acho que você já deve estar sabendo da…

Black reconhecia aquele tom rude sem dificuldades.

— Matéria?

— Isso. — A voz de James saiu abafada, como se ele cerrasse os dentes. — Liguei para avisá-lo de uma coisa importante. Sei quem mandou as informações. Foi ela.

Billy recostou-se na cadeira. Não tinha mais tanta certeza de quem era a presa e quem era o predador.

Bree poderia esquecer e Rosalie se fazer de desentendida, mas Leah lembrava cada palavra daquela noite no Bar 54. A última frase de Rosalie grudara-se no fundo de seu cérebro, um incômodo impossível de ignorar.

Era o último.

Naquela sexta-feira, assim que Bree colocou os pés na rua, Leah arrastou Rosalie para o pequeno depósito nos fundos da cozinha.

As estantes abarrotadas de latas de milho, atum, sacos de feijão, arroz, farinha e açúcar cercavam-nas como um mercadinho claustrofóbico. Rosalie parecia muito relaxada, ainda sem perceber a expressão austera no rosto de Leah.

— E aí, a gente vai jantar o quê? — Rosalie perguntou, as mãos girando uma lata de molho de tomate.

— O que você fez?

Rosalie parou.

— O que eu fiz o quê?

Leah respirou fundo. Rosalie tinha 22 anos, mas às vezes agia como uma criança que aprontou uma e agora tentava inutilmente esconder a verdade da mãe.

— Aquilo no Bar 54. Antes de desmaiar, você disse "era o último".

— Ah, isso… — Forçou uma risadinha nervosa. — Digamos que a gente está… Hmm, como dizer… Numa situação não muito vantajosa nesse momento.

— Dá para ser mais específica?

— Sabe aquele negócio que a novata jogou para eles? Era…

Não me enrole, Rosalie.

— Sangue. Obviamente.

Rosalie suspirou e então sorriu como quem pedia clemência.

— Não era sangue, Leah.

O silêncio cobriu o depósito por um longo e interminável minuto.

Eu não acredito que aquele era o último frasco! Você é uma verdadeira… — Leah parou e respirou fundo, tentando controlar o tom da voz. Fitou-a com uma expressão condenatória. — Quanta irresponsabilidade, Rosalie. Por que não me disse antes que o estoque estava acabando? Isso é tarefa sua. Você tem sequer ideia do que nos meteu agora? Tem a mínima ideia da gravidade da situação em que nos encontramos?

— Como se eu tivesse alguma escolha naquele bar, Leah! Que merda você queria que eu fizesse, hein? Deixasse você morrer? Deixasse Bree morrer?

Eu não vou limpar a sua sujeira, Rosalie. Você vai resolver isso. Estou falando sério.

— Para de me tratar como se eu fosse uma criança!

— Então pare de se comportar como uma! Precisaremos suspender as investigações enquanto estivermos sem a garantia do veneno para nos manter seguras. — As linhas na testa de Leah eram fundas. — Estamos de mãos atadas agora.

E a culpa é sua, Rosalie.

— Relaxa. Vou dar um jeito nisso tudo, prometo. E quando você menos esperar… vamos ter um estoque novinho em folha, beleza?

Rosalie não esperou uma resposta, saindo — fugindo — do depósito com a lata de molho de tomate nas mãos.

Leah permaneceu lá dentro, frustração e irritação combinando-se em uma mistura explosiva no seu estômago. Rosalie não levou a conversa a sério. Como sempre. Ela agia como se aquela tarefa fosse fácil. Mas era atuação pura; na verdade as duas sabiam muito bem que o trabalho seria tudo menos fácil. Se quisessem destruir mais uma daquelas criaturas, precisariam de no mínimo três litros de sangue humano. Mais precisamente — sangue humano fresco.

Rosalie bufava sozinha na escuridão do quarto, a tela do computador iluminando seu rosto. O único som no cômodo vinha do tec tec tec do teclado, que, ao invés de acalmá-la como geralmente fazia, só a enervava cada vez mais. Leah é uma exagerada, isso sim. Maníaca por controle. Mandona do cacete.

Lá estava ela, agindo como a mulher responsável que era — sou sim muito responsável, porra, quem ela pensa que é pra me chamar de irresponsável — em plenas duas horas da manhã, enquanto navegava nas profundezas da internet. Leah que a ignorasse o quanto quisesse, quando Rosalie conseguisse a solução, esfregaria sua vitória na cara dela.

Isso vai ser fácil. Só precisava atrair mais um pobre coitado iludido daquele fórum de oferta de sangue. Bastava um humano para o preparo de um exemplar do veneno. Rosalie optava pelos mais pesados, de forma que pudessem oferecer os tais três litros e ainda saíssem relativamente vivos e bem, embora ficassem inconscientes por um tempo. Ela evitava contatar os humanos mais leves, que poderiam facilmente morrer se perdessem tanto sangue de uma só vez.

O sol agora ameaçava surgir no horizonte. Rosalie passou horas e mais horas naquele fórum, o mouse indo até o fim da página e voltando, como se em poucos segundos fosse aparecer um novo usuário. A tentativa revelou-se infrutífera. Não havia nenhum doador disponível com mais de oitenta quilos.

Tentando afastar de sua mente o nervosismo súbito, resolveu (como a mulher responsável que era) fazer o mais sensato. E isso não envolvia contar a verdade para Leah, é claro.

Saiu do fórum e acessou uma das inúmeras lojinhas ilegais da deep web. Encheu o carrinho virtual com balas de prata, identidades falsas, sementes de acônito, revólveres e estacas de madeira.

Bree não gostava nada daquela ideia, mas foi a única que parecia razoável. Seus olhos queriam se fechar e o corpo voltar para a cama, mas a cabeça já tinha decidido seguir em frente com o plano.

Desde o ocorrido no Bar 54, Bree pensou que agora elas realmente avançariam nas investigações. Afinal, descobriram que os amigos vampiros de Lauren também estavam em Forks. Em sua mente a próxima etapa era óbvia: elas precisavam encontrá-los. Talvez Victoria e Laurent nem fossem os assassinos, no fim das contas, mas alguma culpa tinham no cartório, Bree estava certa disso. Eles arrastaram Lauren Mallory para o abatedouro sem hesitação. Duas criaturas que levam uma humana indefesa para submundos monstruosos não são exatamente anjinhos com as melhores e mais puras intenções.

Mas as próximas semanas, carregadas de apatia e inércia, trouxeram mais decepção do que alívio. Leah e Rosalie não pareciam se esforçar nem um pouco, como se de repente o trabalho não mais importasse. Bree então concluiu que, se elas não fariam nada, era seu dever — dever moral, um compromisso perpétuo com o que ela era, com o que se tornara desde que entrou naquela casa — dar o próximo passo, embora seu desejo mais profundo fosse regredir.

Tinha esperado o dia todo para acessar o computador de Rosalie. Leah se levantava às seis para fazer o café e ia para a cama pontualmente às dez horas da noite. Já Rosalie adotava um padrão insano: acordava depois de meio-dia e dormia depois de duas horas da manhã.

E foi assim que, tentando se encaixar entre as rotinas antagônicas das duas, Bree se viu ligando o computador em plenas e gloriosas quatro horas da manhã.

Aquilo não seria complicado, repetia para si mesma. Lembrava-se do que Rosalie fizera para entrar na dark web e passou a manhã lendo tutoriais na internet. Só precisava acessar a lista de ninhos de vampiros em Forks, anotar os endereços e depois comprar o rastreador. Simples. Fácil. Indolor. Não era como se ela fosse interagir com algum vampiro num daqueles fóruns bizarros.

Quando a tela do computador se iluminou, ela clicou no tal Tor Browser e entrou no Hidden Wiki. Acessou o site principal sobre vampirismo e logo foi para a seção de recomendações, procurando a página sobre Forks. Analisou todos os lugares na lista, buscando um no mesmo estilo do Bar 54. Assim que viu a foto de uma boate antiga num bairro obscuro, soube instantaneamente. Este. Anotou o endereço no bloco de notas da mesa.

Depois voltou para o Hidden Wiki, em busca de alguma loja que vendesse rastreadores. Após a compra, desligou o computador e saiu do cômodo na ponta do pés.

Deu tudo certo, pensou, sem saber que tinha acabado de estragar o computador de Rosalie.

James era um fantasma em Phoenix. Evitava multidões, usava apenas táxis com janelas escuras quando queria sair e almoçava e jantava ou no próprio hotel ou num restaurante exclusivo e fechado para o público em geral, lugares onde ninguém tentaria fotografá-lo. Até agora aquela estratégia vinha dando certo — seu agente estava satisfeito com seus esforços, e a mídia não tinha mais notícias suas há algumas semanas.

Assim, ainda seguindo o plano, escolheu jantar naquela noite em um dos melhores e mais caros — e consequentemente mais vazios — restaurantes da cidade. Agora encontrava-se sozinho numa das mesas mais afastadas do lugar, acompanhado apenas de uma taça de vinho português e do prato com os restos do risoto de limão siciliano.

O restaurante estava calmo. O leve zumbido das conversas dos clientes e o farfalhar dos movimentos dos garçons pareciam embalá-lo num confortável estado de sonolência. Ainda não eram nem onze horas da noite, mas talvez chegasse a hora de voltar para o hotel — antes que ele dormisse ali mesmo. Chamou um dos funcionários e pediu um licor junto com a conta.

Estava prestes a se levantar para ir embora quando vislumbrou um casal nos fundos, não muito longe dali. As costas nuas da mulher estavam viradas para ele, os cabelos escuros reluzindo contra a luz do teto. Sua companhia era um homem bem-apessoado. Os dois conversavam baixo, e, pelas mãozinhas pálidas dela sobre as dele, James arriscaria dizer que aquilo ali era um encontro.

Ele se levantou. E teria saído do restaurante se não fosse por um movimento sutil e imprudente da mulher. Ela tinha ficado de pé para ir ao banheiro. Andava tranquilamente até que desviou de um dos garçons e então ele viu. O nariz reto, a pele pálida e os lábios em forma de coração.

O mesmo rosto que James memorizara desde a primeira vez que meteu os olhos nela.

Sentiu o impulso de gritar seu nome, correr até ela, prendê-la em seus braços, levá-la consigo para a suíte do hotel e fazê-la entender de uma vez por todas que ela pertencia a ele. Mas tão logo o ímpeto surgiu e já desapareceu de seus pensamentos. As palavras do agente ecoaram em sua cabeça: sem escândalos.

Sem escândalos, repetiu para si mesmo. Teria então de agir nas sombras.

Andou como se seguisse para o banheiro masculino, mas fez uma curva acentuada e precisa para o toalete das mulheres. Invadiu sem cerimônias o local e bateu em todas as portas, angariando reclamações e tentativas de brigas que ele ignorou sumariamente. Giulia não estava ali.

Saiu do banheiro e olhou ao redor com desespero. Não poderia perder Giulia agora. Não conseguia vê-la, mas sentia sua presença, logo ali, tão perto dele, mas fugaz como éter, dissipando-se nas sombras do restaurante.

Ela não voltou para a mesa; seu acompanhante parecia impaciente com a demora. As portas de entrada e saída continuavam fechadas. Só lhe restava procurar na cozinha.

Não quis racionalizar sua ação quando começou a correr para lá. Tampouco se importou como os olhares curiosos dos clientes e as expressões confusas dos garçons. Um dos funcionários já tentava alcançá-lo, pedindo que parasse o que quer que fosse que ele estava fazendo, mas James não deixaria Giulia escapar de novo.

Não desta vez.

 


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Notas finais do capítulo

Obrigada por ler! Comenta por favorzinho! *olhar pidão*



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