Cactos & Girassóis escrita por Sali


Capítulo 8
Sete




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Terça-feira | 28 de Junho

Junho passou com partes iguais de frio e stress.

Naquele colégio, no terceiro ano do ensino médio, não havia mais trabalhos, e os 100 pontos de todo o ano letivo eram distribuídos somente em provas. Assim, àquela altura do fim do semestre, Helena se sentia afogar entre avaliações, simulados, provas surpresa, testes e redações pontuadas ─ a ponto de nem mesmo se incomodar tanto com a sua turma como antes.

No entanto, ela também já estava abrindo mão de alguns dias do treino de muay thai, das séries e filmes que costumava assistir, dos rolês com os amigos e, inclusive, da frequência das conversas com Marina, pois ─ era óbvio ─ estavam em situações parecidas.

E, assim, ela só podia concluir que não havia nada mais próximo do inferno que o último ano do ensino médio.

─ Lena, eu tenho certeza que você já tá preparada pro simulado… mas agora você também precisa descansar.

A voz de Daniel era tão suave que a garota despertou sem sobressaltos de sua péssima posição, espalhada sobre a escrivaninha. Suas costas doíam levemente, fórmulas químicas pareciam dançar ao redor de sua cabeça, e ela sentia um formigamento na bochecha esquerda, onde o espiral da apostila havia marcado.

Olhou para o relógio do celular, ainda meio zonza: já eram quase duas da manhã.

─ Obrigada, pai… eu vou. Perdi a noção do horário aqui ─ ela suspirou e, depois de fechar os livros de qualquer jeito, se jogou na cama sem nem vestir o pijama.

─ ─ ─

No dia seguinte, suas olheiras já estavam tão grandes que ela parecia doente.

Bom dia, Lena!
Tá tudo bem? vc parece abatida

Helena acabou deixando escapar um sorriso quando recebeu a mensagem de Marina, logo que chegou à sala de aula.

Àquela altura do semestre, os professores haviam tentado reorganizar o lugar dos alunos da sala, para diminuir um pouco das conversas paralelas ─ o que, obviamente, foi recebido da pior maneira possível e não resolveu nada. No entanto, agora Helena e Marina se sentavam perto, ambas no fundo, a uma carteira vazia de distância uma da outra, e podiam trocar olhares, breves risadas e mensagens sem muitas consequências.

Lena desviou o olhar pro lado e deu um sorrisinho pequeno.

Bom, dia Mari :) Tá sim…
só dormi tarde por causa do simulado, mas tô suave
e vc, tudo bem?

Marina olhou novamente para ela, mas agora com um pequeno sorriso aliviado.

Fora o stress desse mês? suave tb
Mas um saco o terrorismo q o Marcos fez c a gente ontem
quase n dormi direito

Helena revirou os olhos. Em seus dois horários de aula do dia anterior, o professor de Química havia falado tanto sobre o simulado que soava como se, caso a sala tirasse, nele, qualquer valor abaixo de 80%, poderia desistir de ter chance com o Enem. Era como se o objetivo do colégio fosse justamente gerar pânico para alcançar o resultado esperado e ficar com uma posição legal no ranking de escolas pela nota do vestibular. E isso irritava a garota.

Marcos fala demais…
acho q é pra assustar a galera da sala q n estuda pra nada
mas vc tá mt boa nas matérias. vai dar tudo certo ;)

─ Beleza, gente, já deu a hora. Agora guardem rápido os celulares na mochila, só lápis, caneta e borracha na mesa e eu já vou entregar o simulado ─ Olívia, a professora de Redação, cortou o burburinho da sala com sua voz alta e começou a romper os envelopes que guardavam as provas.

Marina se abaixou para enfiar o celular na mochila e, pouco antes de receber o caderno de prova, ergueu a cabeça para Helena e lhe soprou um “boa sorte”, movendo os lábios sem emitir som. Ela meneou a cabeça; “você também”.

─ ─ ─

A prova teria duração de três horários, estendendo-se do início da aula até a hora do intervalo. Quem terminasse antes seria liberado mais cedo para lanchar, mas a turma ainda teria os três horários finais de aula normal.

E, ao longo das horas seguintes, as letras se embaralhavam diante dos olhos de Helena. Sim, ela havia enviado palavras tranquilizadoras para Marina antes do simulado, mas isso não significava que ela estivesse tranquila. O discurso exagerado do professor de Química também havia entrado em sua cabeça, por mais que ela lutasse contra ele, e a curta noite de sono agora cobrava seus débitos.

Sua estratégia nesses casos consistia em beber água, lavar o rosto e tentar aproveitar os picos de energia, para se recompensar, depois, com um cochilo. Normalmente, ela fazia rápido suas provas: primeiro, trabalhava as questões que sabia; depois, tentava decodificar as que não sabia; e, enfim, chutava as que lhe pareciam impossíveis.

Entretanto, com tantos números e fórmulas rodando diante de seus olhos, só no meio do terceiro horário ela finalmente se viu livre das 90 questões de múltipla escolha, já com a mão doendo de tanto colorir bolinhas no gabarito. Havia feito a revisão de forma sucinta ─ àquela altura, o cansaço a perturbava mais que o terrorismo do professor ─ e, com uma espreguiçada final, juntou os papéis e os deixou sobre a mesa.

Marina pareceu ouvir sua movimentação e ergueu os olhos no mesmo instante, com uma expressão meio aflita.

“Vai dar tudo certo” Lena garantiu, movendo outra vez os lábios, sem emitir qualquer som. “Fica calma”.

A novata abriu um sorriso pequeno e voltou a atenção à avaliação. Helena não sabia quanto da prova ela já havia feito, mas, enquanto tombava a cabeça para frente, pronta para tirar um cochilo sobre a mesa, riu para si mesma ao perceber que estava torcendo por ela.

─ ─ ─

Lena despertou de súbito, meio assustada, mesmo que não tivesse dormido profundamente nem por muito tempo. Primeiro pegou o celular, que ainda estava no bolso do casaco, e concluiu que seu cochilo havia durado apenas quinze minutos. Depois, olhou em volta: a sala continuava silenciosa, ainda que bem mais vazia que antes; a professora continuava sentada na mesa, concentrada em um livro, mas também atenta a possíveis colas; e, enfim, Marina estava com a cabeça abaixada, aparentemente focada na prova.

No entanto ─ e isso foi percebido apenas com mais alguns segundos de observação ─, os ombros da garota nova estavam se movendo de um jeito meio estranho. Helena respirou fundo e escolheu ignorar o risco de ser acusada de cola. Levantou-se e, cruzando a distância de uma carteira, se abaixou ao lado da mesa de Marina.

─ Mari. Tá tudo bem?

─ Eu não consigo… ─ a novata levantou um pouco a cabeça, e Lena se sentiu estranha ao perceber que sua suspeita estava correta: o rosto dela estava sério e molhado de lágrimas.

Ela travou por uma fração de segundos. Uma parte de sua mente sabia que era meio egoísta pensar em si naquele momento, mas ela não conseguiu deixar de lembrar de momentos diferentes ao longo de seu ensino médio em que já havia chorado daquele mesmo jeito, no fundo da sala, sem que ninguém parecesse se importar. E, naquele momento, ela só desejava que a novata sorridente não passasse pela mesma coisa.

─ É só uma prova ─ as palavras, em tom contido, saíram da boca de Helena antes que ela pensasse muito bem no que dizia. ─ Sério, são só dez pontos. Isso não significa nada na sua média. Isso não significa nada pro Enem. A gente ainda tem quase seis meses, isso são quase duzentos dias. Você ainda tá se adaptando. Não precisa saber tudo agora… 

As frases não tinham coesão entre si, mas Lena as emitia seguidamente, como pequenos torpedos, rápido o suficiente para que ela pudesse dizê-las quase todas antes de o resto da turma entender a pequena movimentação no canto mais afastado da sala.

─ Gente, o que tá acontecendo? Tá tudo bem aí atrás, Helena? ─ a professora, então, se levantou, e Lena se viu grata por ser ela a aplicadora naquele momento. Entre os docentes daquele colégio, Olívia era uma das mais gentis.

Marina secou rapidamente o rosto e olhou para frente, mas não conseguiu encontrar o que dizer. Helena também não era a melhor pessoa com as palavras naquele momento e torceu os lábios. Como não podia deixar de ser, a atenção dos poucos alunos que haviam sobrado ao final do último horário estava totalmente voltada para elas.

Um silêncio estranho tomou toda a sala.

─ A gente pode sair? ─ Lena perguntou, sem saber muito bem de onde havia tirado aquela ideia e a coragem, e, por alguns segundos, apenas passou pela sua cabeça o alívio de ver que não havia traço de Isabella, Letícia, Caio ou Rafael dentro da sala.

Olívia entendeu o que havia acontecido e confirmou com a cabeça.

─ ─ ─

─ Você quer ficar sozinha? Tá tudo bem se você quiser.

Marina terminou de secar o rosto com o papel-toalha áspero do banheiro e se encostou na pia, abindo um sorriso curiosamente sincero sob o rosto inchado.

─ Não, tá tudo bem… ─ ela suspirou, encarando a bolinha de papel que tinha nas mãos como se fosse algo que precisava de muita atenção. ─ Obrigada, Lena. Você foi incrível lá na sala.

Helena respondeu com uma risada pelo nariz e um movimento de ombros; preferiu mudar de assunto.

─ Eu acho que a gente devia fazer alguma coisa. Sei lá. Falar com a coordenação… é um absurdo que os professores estejam fazendo esse nível de pressão psicológica na gente.

Marina ergueu as sobrancelhas, genuinamente surpresa. Já conhecia Helena há alguns meses, mas nunca a vira falar assim, de uma forma tão… revolucionária. Ela abriu um sorriso pequeno.

─ O ensino médio é o inferno. ─ definiu, com um movimento dos ombros. ─ Não precisa se preocupar, Lena, sério. Eu vou ficar bem ─ completou, e a confiança no seu tom, sem perceber, despertou ainda mais admiração na outra garota.

É nesses momentos que as pessoas se abraçam nos filmes? foi o que passou pela cabeça de Helena, uma dúvida sincera, mas ela nem teve tempo de pensar em responder, porque o rangido agudo e comprido da porta do banheiro atravessou o silêncio do ambiente.

─ Isso que dá, andar com a surtada da escola. A pessoa acaba surtando também…

“Surtada da escola” não era novo para Lena. Ela já conhecia a expressão e não permitia que ela a incomodasse mais do que por alguns instantes. No entanto, a covardia de provocar uma pessoa que estava no meio de um momento horrível a irritava de uma forma diferente.

O “vai se fuder, Isabella” já estava na ponta da língua.

Mas aí a bolinha de papel fez um barulho surpreendentemente alto ao bater no fundo da lixeira.

─ É insegurança?

Isabella se surpreendeu. Helena também.

─ Sério, Isabella, é insegurança? Ou é medo? Falta de amor dos pais? Ou você só precisa de terapia mesmo? Qual é sua desculpa pra ser tão escrota com gente que não te fez porra nenhuma? Eu não faço ideia do que seja, e acho que você também não, mas por favor, por favor, tira a empatia do cu e para de achar que você é a Regina George. Meninas Malvadas parou de fazer sucesso quando a gente tinha 8 anos.

E aí a porta bateu outra vez, enfatizando a saída quase cinematográfica de Marina do banheiro.

Lena cobriu a boca para segurar a risada de surpresa e aproveitou o choque do momento para sair também.

Nenhum de seus devaneios em sala de aula a tinha preparado para a cena que acabara de presenciar.

─ ─ ─

─ …você tem a autorização pra sair sozinha? Ótimo. Não precisa preocupar, eu vou conversar com a coordenação, ok?

Quando voltou para a sala, Helena ouviu apenas o final da conversa entre Olívia e Marina, e sorriu para si mesma ao ver o abraço acolhedor que a jovem professora iniciou. A garota nova também parecia mais estruturada, e aquilo lhe trouxe certo alívio.

Pouco depois, as duas estavam novamente no fundo da sala vazia, Lena sentada sobre a mesa, com seu sanduíche, e Mari juntando o material escolar.

─ Vai ser bom você descansar ─ Helena meneou a cabeça.

Marina encolheu os ombros e abriu seu sorriso pequeno.

─ A Olívia me falou isso também. Disse pra eu tomar um sorvete e deixar os cadernos fechados hoje.

Lena sorriu de leve.

─ Eu te disse que ela era legal… 

Aquilo arrancou uma risada baixa de Marina. Ela passou os braços pelas alças da mochila e ajeitou a camisa xadrez que vestia sobre o uniforme.

─ Qualquer coisa me avisa, ok? Eu ouvi falar que o sorvete de pistache daqui de perto é ótimo…

A garota nova franziu o nariz com a recomendação de Helena. Elas já haviam passado por essa discussão: “é verde, é esquisito” havia sido seu argumento, e, em sua própria opinião, era um raciocínio impecável.

De toda forma, aquela terça-feira já estava recoberta de comportamentos incomuns e surpreendentes. Se continuasse assim, Marina poderia até provar sorvete de pistache, no fim das contas, Lena pensou. E, então, deixou o sanduíche de lado, pulou da cadeira e deu um abraço breve e meio desajeitado na amiga. 

Depois, observando o formato de nuvem de seu black enquanto ela se afastava, Helena percebeu que não dava a mínima para qualquer possível represália que Isabella pudesse inventar no resto daquele dia.


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