Cactos & Girassóis escrita por Sali


Capítulo 17
Dezesseis


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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Sábado | 6 de Agosto

Às vezes, Marina invejava Jordan. Mais especificamente, desejava ter sua tranquilidade para lidar com as coisas e a vida, como se nada nunca o abalasse profundamente. Apesar de ser quatro anos mais jovem, ela se lembrava de quando foi a vez dele de sofrer com o terceiro ano: havia sido estressante, sim, mas o rapaz era tão inteligente que conseguia tirar notas incríveis sem nunca realmente se sentar por mais de uma hora para estudar ─ uma característica que ela também via em Helena. No Enem, ficara com uma nota incrível ─ e escolhera cursar Jornalismo. E, desse conflito, especificamente, a garota se lembrava muito bem.

O fato era que Jordan parecia saber muito melhor como lidar com a mãe deles. Alícia, por mais carinhosa e doce que fosse, também tinha um lado especialmente exigente: queria o melhor para os filhos, ainda, que, às vezes, isso significasse perder um pouco da sensibilidade em relação ao que eles queriam. Sempre havia sonhado com uma carreira brilhante para os dois ─ e, quando o rapaz empunhou sua ótima nota do Enem e afirmou, categoricamente, que seria jornalista, as coisas não ficaram muito tranquilas.

Mas aí residia a principal diferença entre os dois irmãos. Jordan era do tipo que resistia com tranquilidade; ele compreendeu os anseios da mãe, mas não se dobrou a eles; e, com um jogo de cintura invejável, atravessou suas reprimendas, conflitos e discussões até lhe fazer entender que não mudaria de ideia ─ e que, sim, respeitar sua vontade também era fazer o melhor para ele. Marina, entretanto, se considerava do tipo que aceitava com inquietude; não apenas se achava incapaz de impor suas vontades, como também levava praticamente tudo com apreensão e ansiedade; tinha um medo enorme de não ser aprovada pela mãe, ainda que isso significasse sufocar algumas de suas escolhas.

Por isso, naquela tarde de sábado, encarando o caderno de Física e o celular, Marina sentia, ao mesmo tempo, um aperto no estômago e uma vontade quase irresistível de chorar. E tinha de lutar contra o impulso de pegar o aparelho ─ não para procrastinar, ou se distrair nas redes sociais, mas para mandar alguma mensagem para Helena, qualquer coisa: um comentário sobre os exercícios de Física, sobre a escola, um pedido de desculpas… 

─ E aí, Nina? ─ a voz de Jordan, então, entrou pela porta aberta e afastou da cabeça da garota os pensamentos que já se embolavam. ─ Você vai comigo no aniversário da Jade? A galera já tá super empolgada com a burgueria lá.

Marina soltou um suspiro e girou na cadeira de rodinhas, para olhar para o irmão.

─ Acho que não vou, baby… preciso estudar ─ ela encolheu os ombros, indicando com a cabeça os cadernos, e começou a se balançar na cadeira. ─ Principalmente porque semana que vem começa o intensivo que a mamãe insistiu pra eu entrar… 

Jordan, porém, entrou no quarto e se jogou na cama dela, puxando uma das almofadas para apoiar a cabeça.

─ Tem certeza? Relaxar também faz parte da rotina de estudos… 

Marina deu uma risada baixa, mas se manteve em silêncio, deixando que o quarto todo fosse preenchido somente pelo leve rangido da cadeira, enquanto ela se balançava e mordia a tampa de uma caneta que ainda estava entre os dedos. O rapaz apenas continuou ali, batucando os dedos no abdome e encarando os detalhes em gesso do teto pintado de azul clarinho.

Até que, um pouco depois, ela mesma rompeu a quietude com um suspiro.

─ Como você fez, hein?

Jordan voltou o olhar para a irmã, e não precisou de mais palavras para entender do que ela estava falando.

─ Acho que é questão de ir com calma. Uma coisa de cada vez, saca? Não precisa ser tudo de uma vez… Dá pra estudar uma matéria a cada dia.

A garota apoiou o rosto numa mão, ainda olhando para Jordan, e se deixou mergulhar em outro silêncio, um pouco mais breve, digerindo o que acabara de ouvir.

─ Às vezes eu sinto que não vou ter coragem. De ir lá, fazer o Enem… de escolher o meu curso. De falar com ela “olha, eu quero isso pra mim. Eu falava que minha primeira opção era Arquitetura, Biomedicina, sei lá, só pra te agradar. Eu quero fazer História. É isso que eu quero pra mim”.

O rapaz deixou um sorriso pequeno se desenhar no canto do lábio; mesmo que diversas variáveis separassem sua situação de três anos antes e a de Marina naquele momento, ele conseguia, de certa forma, entender o que ela estava sentindo.

─ Sei que não é o melhor conselho de todos, mas eu vou insistir nele: isso aí que você citou, nada disso vai vir de uma vez só, tipo uma grande bola de neve. Primeiro tem o Enem. Na verdade, antes dele, primeiro tem um tempão ainda pra estudar pra ele. Aí depois vem o Enem. E só depois é que você vai pensar em realmente escolher seu curso. E, sei lá, às vezes, ao longo desse tempo, você vai descobrindo o melhor jeito de falar sobre isso. Só não precisa ser agora.

Ela mordeu de novo a ponta da caneta, dessa vez com o olhar meio perdido, como se estivesse, momentaneamente, submersa nas palavras do irmão.

Por fim, sem perceber, acenou calmamente com a cabeça.

─ Mas, hein, já deu de estudar por hoje… Vamos, sério. Você me disse essa semana que tava com vontade de comer algo diferente ─ Jordan, enfim, rompeu o silêncio; e, como se não fosse suficiente, arremessou a almofada em que estava deitado diretamente na cabeça da garota. ─ Caralho, arrasei, cesta de 3… 

Marina revirou os olhos, mas havia um sorriso no canto do seu lábio quando ela lançou a almofada de volta ─ e também acertou o rosto do irmão. 

─ 3 a 3 então, Michael Jordan ─ ela provocou e, enfim, deixou escapar uma risada.

─ ─ ─

─ Meu nome começa com M?

A mesa, até então barulhenta, caiu num silêncio profundo quando Marina fez aquela pergunta, e, sobre as porções de batata-frita, era possível ver rostos confusos por todos os lados, encarando o nome “Amy Winehouse” escrito no papel preso à sua testa.

─ Ela… descobriu? Espera, você quis dizer “Amy”, o nome, ou a letra M? ─ Isabel, a moça de cabelos castanhos curtos e lisos, com as pontas coloridas, franziu a testa.

─ Não, Bel! ─ Davi, que estava ao lado dela, atalhou, quase ao mesmo tempo. ─ Você vai dar dica pra ela!

Marina, no entanto, parecia ainda mais confusa.

─ Quê?

O pequeno grupo explodiu em risadas.

O restaurante especializado em burgers artesanais que Jade escolhera para comemorar seu aniversário de 19 anos era novo na cidade e estava ficando famoso principalmente porque, além da comida, oferecia um cardápio de jogos. Entretanto, numa das mesas longas, os amigos de Jordan e Marina preferiram uma brincadeira por conta própria, e, àquela altura, tinham todos o nome de algum famoso pregado à testa.

─ Vocês são ruins demais nesse jogo ─ Dandara, enfim, revirou os olhos, com uma risada no canto do lábio, e se voltou para a garota. ─ Não, Mari, seu nome não começa com M. Resolvido?

Marina riu e agradeceu à moça sentada seu lado, sem deixar de sentir uma sensação morna no estômago ao ser ajudada por ela. Dandara, amiga e colega de estágio de Jordan, na realidade, era o mais próximo de um role model e inspiração de vida que ela podia pensar: era linda, com os cabelos raspados e platinados e uns óculos dourados de aro fino que combinavam com o rosto redondo; inteligente, com seu diploma de Design e o curso pela metade de Jornalismo; e extremamente gente boa. E Marina a encarava com uns olhos de fã, aprendiz ou irmã mais nova ─ ou isso tudo junto.

─ Valeu ─ ela, enfim, sorriu, e voltou os olhos para Jordan, que estava do outro lado. ─ Sua vez, baby… 

E a brincadeira continuou rodando.

Marina, apesar de se considerar péssima no jogo, foi a terceira a adivinhar quem era, e pôde passar o resto do tempo apenas comendo as batatas e rindo dos chutes e perguntas quase sem lógica do resto dos amigos e conhecidos da roda. Jordan foi um dos últimos a acertar ─ mas, em sua defesa, Angus Young, do AC/DC, estava bem distante do seu repertório de referências.

E então, quando os sanduíches chegaram, a brincadeira acabou e foi substituída por uma calmaria pontuada por conversas e risadas. Marina, concentrada na comida, não se incluiu em nenhum dos grupinhos e apenas deixou seu olhar apenas vagar pelo salão, que era amplo, com uma iluminação âmbar, e repleto de decoração temática da cultura pop.

Até que, enfim, seus olhos pararam na entrada do local, quando ela teve o vislumbre de cabelos num tom de vermelho escuro, presos num coque displicente, e de um moletom verde ─ e bastou isso para seu coração disparar e, subitamente, se impregnar com uma mistura meio inquietante de excitação, nervosismo e expectativa.

Marina ainda segurava seu sanduíche, sem colocá-lo no prato nem levá-lo à boca, quando viu a garota se aproximando, junto a um grupo relativamente grande de pessoas, na direção de uma mesa vazia perto da sua. Seu pulso ainda estava acelerado, e pela sua cabeça passavam tantos pensamentos que, se perguntassem, ela não achava que conseguiria identificar nenhum.

A distração da garota durou o suficiente para que, quando ela finalmente voltou sua atenção para o salão, o grupo estivesse consideravelmente mais perto. A pessoa foco de seu olhar estava próxima, ainda de pé ─ e, naquele momento, Marina percebeu que ela parecia alta demais, esguia demais e com uma curvatura dos ombros que nem de longe se assemelhava à de Helena.

Pareceu que tudo dentro de seu estômago, junto a seus pensamentos todos, esfriou de uma vez só, num misto de frustração e alívio em que a primeira sensação predominava. De repente, percebeu que sentia falta de Helena; não fosse todas as complicações, dentro e fora de sua cabeça, ela poderia estar ali, sentada numa cadeira ao seu lado, as mãos se tocando às vezes, trocando risadas e dividindo as batatas fritas.

Com um suspiro, Marina deixou o sanduíche no prato e limpou as mãos num guardanapo. A animação que sentia até então parecia ter desaparecido, e agora um mal-estar se espalhava pelo seu estômago. Ela sentiu vontade de ir embora.

─ Você tem que falar sobre isso é com a Marina… ela é mestre no assunto, né, Nina?

Os pensamentos da garota foram bruscamente interrompidos por Jordan ─ e, então, ela estava de volta à mesa da burgueria.

─ O quê?

─ Eu perguntei se alguém já leu os livros do Sherlock Holmes. É que eu comecei a ver aquela série na Netflix e fiquei curiosa… 

Marina voltou toda a sua atenção para Dandara quando ouviu suas palavras, e o mal-estar teve que ceder parte de seu espaço para a animação nova que começou a brotar.

─ Sherlock Holmes?! Do Doyle?

─ Você leu?

 Jordan riu pelo nariz.

─ E eu li junto, porque se depender de todos os trechos e comentários que ela queria compartilhar… ─ ele comentou, num tom afetivo, sem qualquer ideia de crítica.

─ E você gostou? ─ Dandara mantinha sua atenção em Marina. ─ Eu ouvi falar que a série é cheia de referências… tem alguma coisa inclusive no primeiro episódio, não é isso?

A irmã de Jordan concordou com a cabeça e abriu um sorriso leve.

─ Tem várias, na verdade… porque o primeiro livro que o Doyle lançou sobre o Sherlock era Um estudo em vermelho, que inclusive é quando o Sherlock conhece o Watson e tudo mais… ─ ela começou a falar, diante da expressão interessada da outra moça, e, aos poucos, a conversa foi se estendendo para o resto da mesa.

Marina também voltou a comer, e, sem que ela percebesse, o mal-estar foi cedendo.

Até, enfim, sumir completamente.


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Notas finais do capítulo

As tretas começam a acontecer, e dessa vez no ponto de vista da Marina. Vamos ver o que os próximos capítulos guardam hehe



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